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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.29 Lisboa mar. 2011

 

A Índia e o grande jogo do poder*

 

Sunil Khilnani

Foi nomeado director do recém-criado India Institute do King’s College, em Londres. É Starr Foundation Professor e director dos Estudos da Ásia do Sul na School of Advanced International Studies da Universidade Johns Hopkins em Washington DC. As suas publicações incluem The Idea of India, traduzida para várias línguas, e, mais recentemente, para o árabe.

 

RESUMO

Com este artigo pretendemos reflectir sobre a possibilidade de a Índia se tornar uma grande potência nas próximas décadas, bem como sobre o tipo de poder que a Índia deve aspirar a ser, e quais as consequências para o mundo e para a Índia. O nosso argumento defende que a questão da superpotência tem menos a ver com a Índia do que se pensa normalmente; pelo contrário, esta questão está mais relacionada com transformações ao nível do grande jogo do poder.

Palavras-chave: Índia, Estados Unidos, política externa indiana, grandes potências

 

The Great Power Game: India in the New World

ABSTRACT

In this article we analyse whether India is likely to become a major power in the next few decades, what kind of power it ought to aspire to, and what that might mean both for the world and for India. We argue that the superpower question has much less to do with India than is popularly – and sometimes wishfully – thought, and more to do with the changing terms of the great power game.

Keywords: India, United States, Indian foreign policy, great powers

 

I

Em 1948, numa noite de Inverno, teve lugar uma conversa em Nova Deli entre Jawaharlal Nehru, o primeiro-ministro do país recém-independente, e um respeitado teórico militar, um alemão emigrado nos Estados Unidos. Sempre interessado em ouvir as opiniões dos intelectuais, Nehru convidara o teórico para jantar e não tardou a bombardeá-lo com perguntas: O que pensava da China comunista? E do futuro da energia atómica? E do papel do poder naval? Finalmente, Nehru colocou a questão em que matutara a noite toda: Qual era a opinião do seu convidado acerca do futuro da Ásia? Durante muito tempo, Nehru acreditara na solidariedade entre os colonizados, mas ultimamente começara a suspeitar que esta unidade se revelaria frágil. Nehru previa que os quatro poderosos blocos asiáticos – a China, a Índia, o Médio Oriente e a Rússia Asiática, então unidos na sua oposição ao Ocidente – acabariam por se virar uns contra os outros. Nehru insistiu com o seu interlocutor: «Neste caso, o que é que um estadista deve fazer, em termos práticos, para resolver o problema?» Seguiu-se um silêncio embaraçado. Depois de tanto esforço para acompanhar as perguntas, o teórico alemão não sabia o que responder. Nehru, um cicerone sempre cheio de tacto, tentou levar o seu convidado para territórios mais familiares. Talvez ele quisesse avançar uma opinião acerca do futuro da Alemanha?

Esta conversa é reveladora em termos históricos, uma vez que corrige a ideia generalizada segundo a qual Nehru teria ideias simplistas e românticas acerca da unidade anticolonial. Ao mesmo tempo, nas circunstâncias actuais, esta troca de ideias não deixa de ser curiosa. Quando foi a última vez que um ocidental se mostrou relutante em aconselhar um indiano acerca do futuro da Ásia – ou do papel da Índia nesse futuro?

Thomas Friedman, o guru da globalização, afirma que a Índia, o «centro de inovação» do mundo, será no futuro uma superpotência – a tartaruga que acaba por vencer a corrida. O secretário-geral da NATO considera a Índia uma estrela em ascensão na constelação de segurança, enquanto que a publicação New Scientist olha para este país como uma futura «superpotência do conhecimento».

Também na Índia é possível encontrar ecos deste optimismo. O Times of India apresenta histórias dos sucessos internacionais da Índia sob o título geral «A Índia toma conta do mundo» – seja a notícia de que um homem de origem indiana se tornou presidente do Conselho de Administração do Citibank, ou de que uma beldade de origem indiana é a nova Miss Grã-Bretanha.

Apesar de todo este entusiasmo ser exagerado, a Índia encontra-se de facto em rápido crescimento económico. Um sistema financeiro altamente regulamentado e uma relativa falta de dependência em relação a exportações contribuíram para mitigar os efeitos da crise e recessão globais. Para além disso, a taxa de crescimento da Índia – uma das mais altas depois da chinesa – irá ser suportada no futuro por o que os economistas acreditam serem condições estruturais sustentadas. As taxas de poupança encontram-se neste momento acima dos 35 por cento do PIB e com tendência para aumentar, o investimento aproxima-se destes níveis e a explosão demográfica ainda vai tardar cerca de uma década até se reflectir na população activa. Não há outra grande economia, nem mesmo os Estados Unidos e a China, que tenha actualmente estas condições estruturais tão bem alinhadas.

Este crescimento está a produzir efeitos bastante desiguais na sociedade indiana, e o seu carácter é igualmente problemático. O crescimento indiano não está a produzir empregos em quantidade suficiente, está a acentuar as desigualdades regionais e sociais e a criar tensões a nível político. Ainda assim, a Goldman Sachs prevê que, antes de meados deste século, o PIB indiano (com paridade de poder de compra em dólares) irá ultrapassar o dos Estados Unidos, tornando-se a Índia a segunda maior economia mundial.

Talvez inevitavelmente, este crescimento tem vindo a fomentar uma autoconfiança economicista. As nossas elites políticas e de negócios tendem a ver o desempenho económico como a identidade fundamental da nação, sucumbindo dessa forma ao «Síndroma do Mundo Plano», um mundo guiado por um GPS virtual no qual Bangalore está ao lado de Palo Alto, e no qual as trocas económicas e a interconectividade são forças de pacificação e harmonia. No entanto, gostaria de sugerir que esta é uma visão politicamente míope do mundo real – bem como do lugar e das opções futuras da Índia nesse mundo.

Desde a sua génese – um Estado pobre, recém-criado –, a Índia independente tem sempre tido ambições internacionais marcadamente ambiciosas. Estas aspirações além-fronteiras basearam-se em parte na grande escala humana e na riqueza civilizacional da Índia – mas também se ficaram a dever a uma visão ou imaginação profundamente políticas: uma ideia do futuro da Índia moldado pela legitimidade das suas escolhas e actuações. Reflexos desta visão são a luta não-violenta de Gandhi pela liberdade face ao domínio britânico, e a subsequente construção de um Estado que – apesar de muitas perturbações – continua a ser uma democracia constitucional secular, um dos poucos grandes triunfos da modernidade fora do Ocidente. Estes exemplos são expressões da auto-imagem da Índia moderna enquanto projecto político: um país que lutou para se concretizar através das capacidades e do discernimento humanos – e não entregando-se ao poderio económico ou militar, a uma ideologia ou ao providencialismo histórico para assegurar o seu futuro.

Tagore, Gandhi, Nehru: todos eles tinham uma visão a longo prazo para a Índia. Personificaram, por assim dizer, a ideia de «futuros imaginados» do grande historiador alemão Reinhart Koselleck. A sua percepção do presente da Índia, bem como das causalidades passadas que haviam criado esse presente, era moldada pelas perspectivas que tinham em relação ao futuro da Índia. As suas escolhas e compromissos orientaram-se pelo horizonte do futuro – e não apenas pelas pressões e exigências do presente. Este era um futuro imaginado em termos políticos, um futuro dependente do discernimento político. Se é verdade que o futuro que eles imaginaram difere do futuro que hoje em dia podemos imaginar, também é certo que existem elementos na sua visão que, na minha opinião, continuam a ter força e relevância, à medida que a Índia se reformula face a novos futuros imaginados.

Pretendo reflectir sobre a forma concreta que esses futuros podem assumir, ou seja, se é provável que a Índia se torne uma grande potência nas próximas décadas, que tipo de poder a Índia deve aspirar a ser, e quais as consequências para o mundo e para a Índia. Abordo esta questão não com o objectivo de fazer qualquer tipo de profecia, mas sim como um exercício de discernimento político acerca da melhor forma de agir numa situação que é ao mesmo tempo opaca, cheia de constrangimentos, mas também recheada de possibilidades – e uma que se reveste de um carácter de especial urgência. Neste contexto, a primeira coisa que gostaria de defender é que a questão da superpotência tem menos a ver com a Índia do que se pensa normalmente – e, por vezes, com uma certa dose de voluntarismo. Pelo contrário, esta questão está mais relacionada com transformações ao nível do grande jogo do poder.

 

II

Há alguns anos atrás, por um breve momento – e num gesto pouco habitual –, a Administração Bush revelou-se de uma forma transparente ao declarar que a política oficial dos Estados Unidos passava por «ajudar a Índia a tornar-se uma grande potência no século XXI». O momento mais marcante desta intenção foi o acordo de cooperação nuclear civil entre os Estados Unidos e a Índia – para o Presidente Bush, um investimento estratégico que visava garantir o estatuto da Índia enquanto aliado norte-americano na Ásia. A estratégia do Presidente Barack Obama para a Índia não é assim tão clara. A sua visão é, por um lado, mais retórica e, por outro, mais voltada para a obtenção de acordos específicos. O estilo é sedutor, recheado de gestos elegantes: sintomáticos desta tendência são o convite de Obama ao nosso primeiro-ministro para o seu primeiro jantar de Estado, bem como a sua recente visita. Depois de muitas dúvidas no lado indiano, julgo poder concluir-se que as acções de Obama configuram, de um modo geral, a continuação da abordagem adoptada na era Bush. Claro está, a frase «ajudar a Índia» é contingente. Frequentemente, as potências existentes aceitam ceder uma parcela de poder às potências emergentes, mas só quando estas se mostram dispostas a moldar-se à imagem daquelas. No entanto, a atenção actualmente prestada à Índia é demonstrativa não tanto das «esperanças» dos Estados Unidos, mas mais do reconhecimento, por parte destes, da fragilidade do poder do Ocidente.

Em grande medida, a importância dada pelos Estados Unidos à Índia nos últimos tempos está relacionada com a volatilidade da região circundante – em particular do Paquistão. Porém, esta importância também reflecte a ascensão da China ao estatuto de verdadeira superpotência. Para o Ocidente, a Índia é uma espécie de antítese da China. Democrática, com uma elite anglófona, níveis de educação elevados, tecnologicamente avançada, virada para o empreendedorismo e agora com a economia em movimento, a Índia surge como um parceiro passível de ser persuadido, mais dialogante.

A primeira década do século XXI recordou aos Estados Unidos os limites que as concepções clássicas de poder enfrentam na conjuntura moderna. A ideia de um «domínio completo do espectro do conflito» exagerou a importância da força militar. A elevada rentabilidade financeira e o rápido crescimento empresarial revelaram estar assentes em alicerces precários. Hoje em dia, a distribuição global do poder, as suas hierarquias e «polaridades», bem como a sua composição concreta, tornaram-se questões rodeadas de uma controvérsia inusitada. Neste contexto, debate-se sobre se estaremos num mundo unipolar, multipolar ou apolar; estes debates são acompanhados por discussões acerca da importância das várias formas de poder: poder duro e suave, poder frio e quente, poder inteligente. Para mim, na sua maioria estes debates são exercícios «de think tank» em redor da distinção clássica entre força e legitimidade (à qual irei regressar). Ainda assim, demonstram um certo mal-estar global. O que significa deter o poder de forma segura? Esta é uma questão que desperta alguma ansiedade, em particular nos Estados Unidos, que continuam a ser o actor central no jogo de poderes do mundo actual.

Apesar de todas as vulnerabilidades recentes – o Iraque, a crise financeira, uma economia lenta e um espaço político polarizado – é preciso reconhecer que não há actualmente nenhuma outra potência no mundo como os Estados Unidos: uma potência que pode absorver tantos erros seguidos sem que ocorra uma grande perturbação ao nível dos ritmos da política interna. É difícil imaginar outro país em relação ao qual seja possível constatar o mesmo.

O que mudou foram os contornos do estatuto internacional. Para além de um défice comercial, Bush deixou ao seu país um grande défice de legitimidade a nível global – uma legitimidade que os americanos sempre consideraram uma propriedade natural. Isto ocorreu numa altura em que a legitimidade é mais importante do que nunca. Num tempo em que a opinião pública pode ser mobilizada como nunca antes, e em que imagens e histórias podem circular como um vírus por todo o mundo, a reputação das nações, acumulada durante anos, pode cair de um momento para o outro. De igual modo, numa era em que os recursos de poder podem ser adquiridos e configurados sem grandes custos, estados pequenos e relativamente pouco poderosos e mesmo actores não estatais podem ameaçar e causar dano aos poderes clássicos. Derrotar estes actores implica ir além das tácticas operacionais ou do comando de uma força militar esmagadora: é necessário sustentar crenças – ou seja, manter uma reputação – junto da opinião pública ou junto dos aliados.

Para além disso, e ao contrário da Grã-Bretanha no seu zénite imperial, a América depende de outros estados menos poderosos para sustentar a sua prosperidade económica. Necessita de importar bens, serviços, capital e pessoas para manter a sua dinâmica e financiar os seus níveis insaciáveis de consumo. Isto também requer uma espécie de crença – a confiança. O poder moderno tem um carácter fugidio: é um poder baseado em transacções e interdependências – algo que contradiz as noções clássicas de soberania, assentes num poder auto-suficiente e tangível. Hoje em dia, esta situação aplica-se a todos os estados poderosos com economias prósperas. Aplica-se à China e, cada vez mais, aplicar-se-á também à Índia. Actualmente, o poder depende em grande medida da legitimidade – a capacidade de sustentar uma crença, não só internamente mas também além-fronteiras.

Desta forma, os Estados Unidos vêem-se na necessidade de reparar danos causados a nível internacional. Procuram reduzir o envolvimento militar, contratar os compromissos de segurança, entregar os problemas de ordem pública às elites locais – o Iraque é um exemplo desta tendência, assim como a «afeganização» da guerra naquele país, que assenta na procura de colaboradores locais. No entanto, uma América mais contida não é uma América transformada profundamente – em termos dos seus objectivos ou das suas concepções de interesse próprio. A projecção de poder a larga escala, e a tendência para dominar que essa projecção implica, continuam a ser fundamentais para a identidade dos Estados Unidos.

Por seu lado, a Europa deixou de ser a principal arena do grande jogo do poder. Passou os últimos vinte anos a planear uma ideia mais expansiva de si mesma e a procurar integrar essa realidade. No entanto, a esperança de que a União poderia reforçar a sua autoridade internacional acabou por não se concretizar. Ao mesmo tempo que desfruta dos benefícios do comércio global, a Europa tem mostrado relutância em admitir as tensões e paradoxos criados por esse comércio. Em termos de segurança, a sua postura é confusa e descomprometida. Ainda que continue a ser um parceiro crucial para aqueles que procuram uma distribuição mais equilibrada do poder à escala global, há o perigo de que a atitude actual da Europa – fruto de uma visão introvertida, conservadora e proteccionista – venha a comprometer o papel que deveria desempenhar. A Europa tem-se mostrado bastante lenta a compreender que a natureza do poder está a mudar em todo o mundo – e que o palco do grande jogo do poder está a deslocar-se da Europa para a Ásia.

Esta deslocação deve-se à ascensão da China, um país que, em termos económicos, está a crescer mais rapidamente do que qualquer outra sociedade na história. A doutrina pública da China defende a «ascensão pacífica»: uma ascensão que beneficia todos, em que todos ficam a ganhar. De facto, o sucesso da China tem-se baseado numa profunda integração económica com o resto do mundo, e particularmente com os Estados Unidos. No entanto, esta interdependência está a tornar-se cada vez mais complexa: os interesses económicos dos dois países, supostamente harmoniosos, encontram-se agora em conflito directo (em matérias que vão da taxa de câmbio ao comércio, à procura interna e à estrutura das economias). Acima de tudo, a interdependência é ameaçada por rivalidades e potenciais ameaças militares: a China possui a maior máquina militar do mundo, o segundo maior orçamento de defesa e ambições internacionais que permanecem obscuras – inclusivamente, talvez, para a própria China. Deste modo, a China representa um grande dilema para o mundo e particularmente para a América.

A relação entre as duas grandes potências da actualidade é drasticamente diferente da situação que se verificou durante a Guerra Fria. Os Estados Unidos e a União Soviética nunca tiveram trocas comerciais. Cada uma das economias ignorava alegremente a do seu rival. Por conseguinte, uma questão central que irá definir a ordem internacional nos próximos anos é a de saber de que forma os Estados Unidos e a China irão equilibrar a interdependência económica e a competição estratégica. Será a China o mordomo da América – para usar a expressão de um artigo recente? Ou estará a América a pagar ao seu futuro carrasco? Esta questão, ao mesmo tempo delicada e decisiva, não teve até agora qualquer resposta.

Por enquanto, a política dos Estados Unidos face à China tem oscilado entre a contenção e o envolvimento – no momento actual, encontra-se (mais ou menos) na segunda modalidade. Porém, ao mesmo tempo que a Administração americana adopta um tom amigável em relação à China, permite especulação acerca de um eventual G2 e tenta agradar ao ministro das Finanças chinês, o seu sector da defesa tem vindo a incentivar a Índia a tornar-se um tampão contra a China. Com a estagnação do Japão, o fiel aliado dos Estados Unidos na Ásia, e com a incapacidade «europeia» do Japão de imprimir um verdadeiro significado internacional à sua enorme riqueza, a Índia tem vindo a ganhar uma nova importância para os Estados Unidos.

A Índia partilha com a América uma incerteza em relação à China. Décadas depois da guerra de 1962 entre os dois países, o contacto tem sido mínimo e o comércio insignificante. Tal como nessa altura, os modelos de desenvolvimento político e económico dos dois países continuam a ser fundamentalmente opostos. Ainda assim, nos últimos cinco anos o comércio entre a Índia e a China aumentou quatro vezes para 60 mil milhões de dólares. De facto, a China acaba de ultrapassar os Estados Unidos ao tornar-se o maior parceiro comercial da Índia. Esta tendência irá manter-se. Em termos militares, o vizinho setentrional da Índia projecta uma presença marítima nos oceanos Índico e Pacífico. Para além disso, e à medida que investe na África e na América Latina, a China está a alargar a sua influência a todos os vizinhos da Índia.

As opções da Índia são limitadas, mas reais. É certo que uma boa relação com os Estados Unidos é uma condição essencial para a Índia desempenhar um papel internacional mais importante. O comércio da Índia com os Estados Unidos e a sua dependência da tecnologia, educação e investimento americanos são cruciais para o desenvolvimento futuro da Índia. A proximidade com os Estados Unidos será igualmente uma alavanca importante para as relações da Índia com outros países. Ainda assim, ao mesmo tempo que aprofunda as suas ligações com os Estados Unidos, a Índia deve assegurar-se que não põe em causa a sua capacidade de determinar por si própria quais os seus interesses. Esta será uma tarefa árdua: trata-se de equilibrar os ganhos ao nível de interdependência económica com a necessidade de manter uma independência ao nível do discernimento político. Apesar de difícil, esta tarefa não é impossível: o exemplo da China demonstra isso mesmo.

De facto, no que diz respeito à relação triangular entre os Estados Unidos, a China e a Índia, cada um dos países beneficia de uma certa liberdade e espaço de manobra – pelo que esta relação não pode ser vista nos termos tradicionais do equilíbrio de poder. Por exemplo, há pouco mais de uma década, os Estados Unidos e a China coincidiram nas suas críticas aos testes nucleares levados a cabo pela Índia; mais recentemente, os Estados Unidos e a Índia têm demonstrado preocupação em relação ao papel da China na proliferação nuclear; por seu lado, a Índia e a China têm-se oposto aos Estados Unidos no que toca às negociações sobre comércio e alterações climáticas. É provável que se mantenha este padrão de alinhamentos temporários, de acordo com interesses diferenciados e mutáveis – por oposição a alianças estáveis e permanentes. Não está nos interesses da Índia ser recrutada para qualquer plano de contingência dos Estados Unidos contra a China.

 

III

Se à escala global a natureza do poder adquire novas complexidades, na região mais próxima da Índia a importância da força militar, definida em termos clássicos, continua a ser central.

Não obstante os mapas virtuais das elites económicas e dos seguidores de Friedman na «Escola do Mundo Plano», a localização da Índia não pode ser ignorada. Rodeada de estados instáveis ou autoritários – Nepal, Bangladesh, Birmânia, Sri Lanka, e principalmente o Paquistão – a Índia está bem no centro do ambiente regional mais ameaçador do mundo. Os conflitos internos destes pequenos países atravessam as fronteiras do subcontinente, impostas pelos poderes coloniais, e afectam a segurança interna da Índia, ameaçando as suas perspectivas económicas e a sua paz política e social. A Índia está forçada a reconhecer a tirania da geografia.

Ao imaginar o seu próprio futuro, a Índia terá de ter em conta o futuro do Paquistão. Os problemas deste país são graves. A sua população encontra-se em rápida expansão, de tal modo que é previsível que em 2050 o Paquistão seja o terceiro país mais populoso do mundo. Os seus indicadores sociais e humanos são desanimadores, e a sua taxa de crescimento está a recuar. Ao mesmo tempo, fortes e profundas correntes de auto-estima e honra atravessam a sociedade – correntes essas que são susceptíveis de passar por cima de qualquer cálculo de interesse racional e autopreservação.

Os melhores pensadores políticos indianos do século XX mostraram-se incapazes de antecipar a criação e subsequente caos do Paquistão. Ressentidos nem que mais não seja pela surpresa da sua criação, nós, indianos, nunca conseguimos adquirir a compostura intelectual e clarividência necessárias para pensar com objectividade sobre o Paquistão e as suas possibilidades futuras. A abordagem da Índia ao Paquistão tem-se baseado em pressupostos que deixaram de ser válidos: a ideia de que se trata de um Estado unificado e de que a Índia pode «subcontratar» aos Estados Unidos a sua política para o Paquistão. De facto, enquanto Estado o Paquistão encontra-se em desagregação. O poder político está dividido em quatro: entre uma elite política civil, as chefias militares, os serviços de informações e vários grupos extremistas – nenhum dos quais pode reivindicar poder soberano sobre a totalidade do território. Hoje em dia, a soberania no Paquistão reside unicamente naqueles que controlam o arsenal nuclear – e mesmo essa questão está longe de ser transparente.

Em resposta à instabilidade do Paquistão, os americanos têm optado essencialmente por «atirar» ajuda económica e equipamento militar (uma estratégia que poderia chamar-se «Kerry-Lugar + F16»). Os resultados têm-se revelado desastrosos – mais do que isso, os seus efeitos têm-se feito sentir fortemente na Índia. A Índia é um dos principais interessados no futuro do Paquistão, e terá de desenvolver uma abordagem mais criativa, orientada em primeiro lugar para a contenção. A alternativa é ficar sujeita às oscilações políticas das outras potências.

De igual modo, o futuro incerto do Afeganistão tem repercussões ao nível da esfera de possibilidades da Índia; também neste caso a Índia precisa de começar a pensar e a agir por si própria. O Afeganistão foi, no século XIX, o tabuleiro original do grande jogo do poder – na altura, um jogo de intriga e maquinação, cujo troféu era a Índia. Na sua reedição do século XX, este jogo foi mais sangrento, sendo o prémio a derrota do rival imperial dos Estados Unidos. Hoje em dia, não é tão fácil definir o que está em causa; no entanto, a Índia será inevitavelmente afectada qualquer que seja o resultado. Ainda que estejam a preparar a sua saída, nem os Estados Unidos nem os europeus têm para o Afeganistão qualquer plano claro e passível de ser aplicado. Ora, a Índia necessita de estabilidade regional para se manter no caminho do crescimento, e não pode admitir um regresso à década de 1990, quando o território afegão se tornou um viveiro de violência contra a Índia.

Qualquer que seja a abordagem adoptada pela Índia, as disfuncionalidades da região irão atrasar o seu progresso – desviando atenção e recursos, extraindo custos de oportunidade e prejudicando a integração económica do subcontinente. As crises destas sociedades são profundas, e a Índia não se encontra na posição de poder intervir e tentar resolvê-las. Porém, também não poderá manter-se alheada destes problemas – como aconteceu durante os grandes jogos entre as superpotências da Guerra Fria. A Índia não poderá escolher as suas batalhas. Quando muito, irá mitigar o impacto dessas batalhas no seu percurso.

 

IV

Hoje em dia, a Índia tem mais opções do que antes para decidir que tipo de poder deve procurar. Anteriormente, as ambições globais da Índia eram inspiradas por uma ideia de legitimidade política mas temperadas pelo défice de poder económico e militar. Nos anos que se seguiram a 1947, a Índia viu-se portanto na necessidade de desenvolver uma definição alternativa de poder: uma concepção negativa, nas palavras de Nehru. Tratava-se de uma atitude de resistência, inspirada na convicção de Gandhi de que a fraqueza aparente se poderia transformar em força. O boicote de Gandhi simbolizou esta estratégia e provou ser eficaz na luta contra o maior império do planeta. Após 1947, Nehru transformou esse compromisso ético num princípio de política internacional. Durante a Guerra Fria, a Índia recusou participar em qualquer alinhamento; evitou tratados, incluindo o Tratado de Não Proliferação; e afastou-se dos mercados globais e do comércio internacional. Para a Índia, essas estruturas estavam viciadas a favor dos mais poderosos.

A estratégia de Nehru nunca foi puramente idealista – na verdade, assentava num diagnóstico bastante realista dos pontos fracos da Índia – e não deixou de produzir resultados. Possibilitou que a Índia atingisse um grau de autonomia e uma capacidade de ser ouvida bastante apreciáveis, dados os seus escassos recursos e os constrangimentos de um mundo polarizado à volta de duas superpotências.

Actualmente, com um poderio económico em expansão, a Índia tem a oportunidade de reforçar o seu perfil militar. De facto, face à crise no outro lado das suas fronteiras ocidentais e as intenções pouco claras do seu vizinho a Norte, terá porventura razões para fazê-lo. No ano passado, o orçamento para a Defesa aumentou um terço, para 30 mil milhões de dólares. Na próxima década, espera-se que a Índia gaste cerca de 100 mil milhões de dólares só em aquisição de armamento. À medida que os constrangimentos históricos se dissipam, a concepção negativa de poder defendida por Nehru vai perdendo força.

No entanto, é certo que num futuro próximo a Índia não tem capacidades para imitar o poder do Ocidente quer em termos militares, quer em termos económicos. Nesse contexto, a Índia não será, a curto prazo, uma superpotência. Ao mesmo tempo, a Índia não pode permitir que a sua busca de um poder mais abrangente seja determinada pelo poder militar que necessita para se proteger a nível regional, ou pela sua crescente capacidade económica. Na verdade, depender destes factores é uma armadilha.

Se, como acabei de defender, as ameaças regionais irão contribuir para atrasar a Índia, as suas próprias divisões internas também afectarão as suas capacidades. A dimensão humana, um dos factores que ajudam à crescente presença internacional da Índia, será também um importante freio. Os índices de privação humana são enormes, e mesmo que as taxas de crescimento anual se mantenham acima dos seis por cento nos próximos quarenta anos, o rendimento per capita da Índia em 2050 será de apenas 10 mil dólares. Uma vez que os governos indianos são eleitos, é pouco provável que – na ausência de uma guerra – tenham a margem de manobra para fazer os avultados investimentos em equipamento militar que seriam necessários para que a Índia se pudesse equiparar às principais potências (a Índia gasta cerca de 2,5 por cento do PIB com o seu orçamento de Defesa; a China gasta sete por cento).

Para a América e para o Ocidente, a integração da Índia na economia mundial é vista essencialmente como um processo de normalização. Em troca de um assento à mesa dos grandes poderes económicos, a Índia teria de adaptar-se. Teria de começar a ver-se como uma nação G20, e não como um membro do G77 (os não-alinhados), como anteriormente. É provável que o Ocidente não tenha conseguido entender que a definição e a busca de poder por parte da Índia são necessariamente marcadas pelas suas realidades e decisões políticas a nível interno – decisões e realidades que, na minha opinião, tornam possível a emergência na Índia de uma concepção distinta de poder.

O facto de a Índia registar a maior concentração mundial de eleitores abaixo do limiar de pobreza exige a criação de políticas internas adequadas. Porém, interpretar esta questão de forma simplista – isto é, como um problema doméstico que prejudica os interesses globais – significa perder uma oportunidade crucial. Penso que esta tensão pode fazer com que a Índia utilize a sua crescente influência global para introduzir os interesses dos pobres nas negociações internacionais.

Dadas as circunstâncias actuais, a Índia será um actor global pouco usual. Terá um Estado relativamente rico mas, por sua vez, esse Estado terá uma população predominantemente pobre. Tal como a China, a Índia terá uma grande riqueza nacional e um baixo rendimento per capita. Esta situação irá gerar tensões dentro da Índia (e também da China), e irá testar as capacidades dos líderes políticos. No que diz respeito ao argumento que aqui apresento, esta situação irá resultar na emergência, no contexto global, de um tipo de actor radicalmente novo. No passado, as populações pobres tinham normalmente estados pobres, cujas pretensões podiam ser ignoradas pelos estados mais ricos e poderosos. Hoje em dia, os casos da China e da Índia demonstram que populações pobres de grande dimensão estão a tornar-se actores globais muito importantes – através dos seus representantes, escolhidos de formas diametralmente opostas. Na Índia, responsáveis políticos eleitos são incentivados a introduzir os interesses de milhões de pobres nos mecanismos globais de tomada de decisões políticas.

Em termos de comércio internacional (em especial de produtos agrícolas), no acesso aos recursos naturais e no que diz respeito aos efeitos ambientais do crescimento económico, a Índia encontra-se bem posicionada para insistir em condições que sejam mais justas para os pobres, e para contribuir para uma globalização mais inclusiva. A Índia está bem posicionada para mudar o status quo.

As negociações de Copenhaga sobre alterações climáticas demonstraram que a Índia está disposta a fazer isto mesmo. Os Estados Unidos e a Europa viram a Índia como uma força de bloqueio, recusando um compromisso sobre limites vinculativos num tema de vital importância. A Índia sentiu que o seu desenvolvimento estava a ser restringido, uma vez que as suas emissões de dióxido de carbono per capita são muito inferiores aos valores registados no Ocidente. Este é um argumento bastante forte; em Copenhaga, a Índia, bem como o Brasil, a África do Sul e a China (que formam o chamado grupo BASIC), defenderam-no com sucesso. No entanto, no que diz respeito à resolução do problema concreto das alterações climáticas, esta defesa produziu resultados muito fracos – o que demonstra que a simples confrontação do status quo, através da afirmação do princípio da equidade, não é suficiente. A velha abordagem – o poder negativo, de recusa – já não serve.

Os Estados Unidos e a China são os dois países fundamentais para quebrar o impasse neste acordo. Esta situação dá à Índia a oportunidade, ainda não aproveitada, de propor um cálculo negocial – uma estratégia que ligue o desejo de equidade a medidas ambientais efectivas, e que consiga persuadir os Estados Unidos e a China. E porque é que a Índia pode desempenhar esse papel? Porque os seus interesses se localizam num espaço entre estas duas potências. A Índia partilha com a China e com os outros países do BASIC uma vontade de preservar o princípio de responsabilidade diferenciada pelos danos ambientais, princípio esse consagrado no Protocolo de Quioto – nem que mais não seja como uma forma pragmática de exercer pressão sobre os países desenvolvidos. Simultaneamente, as crescentes emissões chinesas constituem uma ameaça séria para o futuro da Índia: prevê-se que em 2020 sejam duas vezes e meia superiores às dos Estados Unidos (cerca de 60 por cento dos níveis americanos em valores per capita). Isto significa que a Índia também precisa de trabalhar com os Estados Unidos e outros países para exercer pressão sobre a China.

Em suma, esta é a oportunidade de a Índia demonstrar o que considero ser a sua futura formulação prudente de poder. A Índia não será, a breve trecho, uma superpotência em termos militares ou económicos; no entanto, a sua legitimidade aos olhos do resto do mundo – o facto de os seus governos, eleitos livremente, representarem cerca de 17 por cento da população mundial – é em si uma forma de poder. Em vez de ser um resistente, na tradição de Gandhi, a Índia poder ser mais criativa do que foi em Copenhaga e desenvolver argumentos que conjuguem os imperativos da justiça e da eficácia.

Nos anos vindouros, a Índia pode contentar-se em ser uma potência intermédia: um poder regional cuja força está dependente de alianças – veja-se o caso de Israel. Porém, se desejar ter um impacto no sistema internacional, a Índia terá de tirar o melhor partido das actuais incertezas acerca da definição de poder, bem como do carácter misto do seu próprio poder – de forma a combinar força e legitimidade numa nova concepção. Para que isto seja possível, necessitamos de um terceiro termo: chamemos-lhe poder de ligação, ou poder de construir pontes. Não há exemplos deste tipo de papel; ainda assim, baseando-se nas suas próprias experiências, a Índia pode inventá-lo para si própria. Afinal, ser uma grande potência implica também a capacidade não só de se reger por definições existentes, mas também de redefinir conceitos de poder e grandeza – tal como Gandhi fez no seu tempo.

 

V

Talvez seja altura de regressar a Nehru e à pergunta que encravou a conversa: «O que é que um estadista deve então fazer?»

Cada um dos desafios que referi – gerir as crises na nossa região, definir as nossas relações com a China e os Estados Unidos, lidar com as assimetrias do poder económico a nível global num cenário de alterações climáticas – obrigará a Índia a desenvolver um conjunto de abordagens complexas e práticas flexíveis. Implicará a rejeição de falsas dicotomias: por exemplo, entre ser uma «nação G20» ou uma «nação G77», entre aliar-se com o «Ocidente» ou ficar do lado de fora, entre ter de repudiar o uso da força convencional ou encarar a hipótese de um conflito nuclear. Não há uma identidade simples que a Índia possa ou deva projectar a nível global: a Índia é demasiado grande, complexa, aberta e irremediavelmente argumentativa para que se possa encontrar uma descrição adequada e unificada dos seus interesses. De igual modo, a Índia enfrenta um leque de ameaças de tal maneira abrangente que nenhuma concepção de poder as poderá abordar de forma adequada.

No entanto, ao definir-se a si própria como um poder de ligação, a Índia poderia ficar bastante bem colocada. Como tentei demonstrar, a sua posição intermédia entre os Estados Unidos e a China permitir-lhe-ia desempenhar não um papel de fiel da balança do poder (definido convencionalmente), mas um papel de ligação, em matérias que vão para além das alterações climáticas. A sua crescente importância em organizações como o G20, o FMI e o Banco Mundial, bem como a sua transição gradual de país recipiente para país doador de ajuda, permitem-lhe desenvolver um entendimento mais equilibrado dos imperativos e pressões sentidos pelos países ricos e pobres – e transmiti-los a cada uma das partes. Por exemplo, no que diz respeito ao tema da globalização, a Índia demorou muitos anos a tomar uma posição crítica, consciente dos seus efeitos negativos. No entanto, nos últimos anos, à medida que sectores da sua economia beneficiam das trocas globais, a Índia tornou-se uma defensora da globalização e uma crítica do proteccionismo. Na minha opinião, esta situação dá mais força aos seus argumentos críticos e positivos.

Sendo o segundo maior país islâmico do mundo, e uma das maiores democracias islâmicas, a Índia pode também adoptar um papel de ligação no contexto do tão falado «choque de civilizações»: o de aproximar sociedades islâmicas e não islâmicas. Veja-se, por exemplo, a questão da segurança. Embora a Índia seja regularmente alvo de atentados terroristas, partilhando dessa forma alguns dos interesses dos estados ocidentais, não procurou estabelecer uma ligação directa entre terrorismo e islamismo político militante. Pelo contrário, adoptou uma postura mais reflectida, recusando ver a retórica do islão como uma ameaça existencial.

Finalmente, enquanto democracia orientada para o valor da liberdade e para a construção da sua própria versão do ideal democrático, a Índia mantém-se céptica relativamente à possibilidade de espalhar um modelo único pelo globo. A Índia vê a democracia não como o destino providencial da história humana, mas sim como uma experiência complexa e frágil. As suas próprias experiências, que ocorreram em circunstâncias pouco propícias, podem conter lições para o futuro da construção da democracia noutros países. Deste modo, a experiência democrática indiana pode funcionar como uma ponte, através da qual outras sociedades poderão definir a sua própria liberdade e procurar alcançá-la.

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Este parece ser um novo mundo. Porém, as suas tensões e contradições podem ser reconhecidas – e mesmo exemplificadas – através da noção de «sociabilidade insociável» de Immanuel Kant: a ideia de que as forças integradoras e separadoras dos seres humanos, sejam indivíduos ou grupos, estão interligadas numa mistura volátil. Como Kant explicou, a utilidade, o «espírito comercial», os laços de comércio e trocas servem para unir uma humanidade dividida por diferenças de língua e religião; ao mesmo tempo, o desejo de honra e reconhecimento, o amor-próprio e a auto-estima contrariam esse processo a todo o momento e ameaçam desembocar em rivalidade.

Num mundo assim, seria errado sobrestimar as capacidades da economia, ou seja, acreditar que a economia pode transformar os interesses da honra – na sua forma actual de nacionalismo – nos interesses de uma lista de compras. De igual modo, seria errado pensar que o uso da força pode resolver ou abolir essas paixões.

Num mundo assim, seria para a Índia uma ilusão ver as suas opções como sendo, por um lado, debruçar-se sobre si própria – olhando para os seus vários problemas internos e deixando o mundo seguir o seu curso – ou, por outro, ver o futuro global em termos de alianças fixas e firmes, e da sua capacidade de imitar as definições de poder já existentes.

Termino portanto com uma concepção que não é romântica, no sentido de pretender construir unidades, atingir consensos estáveis ou reconciliar diferenças. Pelo contrário, é realista porque reconhece a persistência da divisão e do conflito; é realista também na sua análise dos limites da utilidade da força ou do progresso económico para resolver estas divisões. Esta concepção que proponho aceita que o desejo de reconhecimento entre os grupos irá contribuir para uma humanidade dividida – uma condição permanente. Aceita os limites – e, no caso da Índia, as frugalidades – do poder convencional face a esta condição. A acreditar em alguma coisa, esta concepção acredita nas capacidades políticas humanas, na sua inteligência e na sua capacidade de discernimento. Não é muito, mas é tudo o que temos.

Tradução: João Reis Nunes

 

NOTAS

* Este artigo resulta de uma conferência proferida em Lisboa, em Dezembro de 2010, no Instituto do Oriente, a convite do Prof. Narana Coissoró, a quem o autor deseja agradecer.