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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.28 Lisboa dez. 2010

 

Compreender a pluralidade da China contemporânea

 

Helena Ferreira Santos Lopes

Licenciada em História pela FCSH– UNL e mestranda em Estudos Chineses na School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres.

 

 

Peter Hays Gries e Stanley Rosen (eds.), Chinese Politics: State, Society and the Market, Londres, Routledge, 2010, 280 páginas

 

«O chefe do partido que veio colectar o dinheiro desvalorizou o pedido com a frase: “Não creio que uma pulga possa virar um cobertor.” Insultado e humilhado, Zhong respondeu: “Pois é precisamente isso o que eu quero ver acontecer”» (p. 95). Este relato do confronto de um líder de protesto rural com as autoridades locais na província de Sichuan parece ilustrar uma ideia de contestação social das autoridades chinesas contemporâneas que se alinha com tendências recentes notadas na comunicação social, como as greves de trabalhadores fabris no Verão de 2010. Será que a maneira como a sociedade chinesa se relaciona como o seu Estado‑Partido está a mudar? Estamos a assistir a alterações significativas na forma como a política interna chinesa é vivida ou trata-se apenas de casos isolados empolados pela imprensa estrangeira?

Editado por dois académicos americanos, Peter Hays Gries e Stanley Rosen, Chinese Politics: State, Society and the Market reúne doze ensaios da autoria de vários nomes cimeiros dos estudos políticos chineses da actualidade. Tomando como ponto de partida as efemérides e tendências de 2008 e 2009 (como os vinte anos dos protestos de Tiananmen ou os relatos cada vez mais frequentes sobre a degradação ambiental e corrupção), este volume propõe analisar, em diferentes vertentes, quais os objectivos da contestação política na República Popular da China (RPC) da actualidade, a forma como o Partido Comunista Chinês (PCC) legitima a sua autoridade e quais as dinâmicas de mudança nas relações Estado-sociedade (p. 1).

Procurando evitar e rebater argumentos parciais e alarmistas que dominam boa parte das notícias sobre a China, este grupo de académicos debruça-se sobre diversas esferas da política interna chinesa para propor uma abordagem mais plural e solidamente fundamentada sobre temas tão propensos a análises extremistas como a sobrevivência do PCC como partido dominante, os crescentes protestos no meio rural, a censura na internet ou as relações Han-minorias étnicas.

 

O PARTIDO E AS GENTES

Nos dois capítulos iniciais, «Dilemmas of party adaptation: the CCP’s strategies for survival» (pp. 22-40) e «Legitimacy crisis in China?» (pp. 41-67), Bruce J. Dickson e Vivienne Shue,  espectivamente, analisam facetas do percurso do PCC após a «Reforma e Abertura» de 1978. Dickson, professor na George Washington University e um reputado investigador sobre a evolução política do PCC na RPC e do Guomindang em Taiwan1, procura explicar neste artigo a forma como o primeiro tenta manter a sua matriz leninista ao mesmo tempo que procede com medidas de privatização da economia. Dickson conclui que há vários factores que mantêm o PCC na posição de partido dominante na China, e que o mais importante não é a coerção. De facto, o partido não só soube fortalecer-se com o impressionante crescimento económico pós-Reforma, como soube manter duas importantes ideias que lhe garantem apoio popular: a de que a revolução comunista de 1949 foi implementada por vontade popular e não imposta por uma potência exterior e a de que «é a melhor e única salvaguarda contra o desmembramento nacional e instabilidade política» (p. 25). Guiado pela nova situação económica das últimas décadas, o PCC afastou-se da sua associação primordial com o proletariado e procurou abrir-se às elites tecnocratas, que procuram na pertença ao partido a obtenção de benefícios profissionais. No entanto, o risco que advém de basear a sua legitimidade política na performance económica, ao mesmo tempo que queixas sobre a desigualdade na distribuição da riqueza gerada se repetem, tem levado, argumenta Dickson, a uma suave mudança estratégica por parte da liderança de Hu Jintao-Wen Jiabao. Esta parece advogar uma redistribuição mais equitativa da riqueza e permitir alguma resistência – à má implementação das políticas emanadas do centro mas nunca ao centro em si – impedindo a emergência de qualquer alternativa viável ao PCC. Shue, actual directora do Contemporary China Studies Programme em Oxford, parte do caso da ameaça que um culto popular como o Falun Gong representa para as ideias-base de legitimação do PCC. Fazendo uma análise histórico-política dessa legitimação do poder, Shue conclui que esta não está em crise mas que as percepções populares sobre essa legitimidade são múltiplas e ambivalentes.

Os desafios que a sociedade coloca à ordem estatal são objecto de estudo em vários artigos deste volume. Em «Society in the state: China’s nondemocratic political pluralization» (pp. 69-84), Andrew Mertha analisa a emergência de funcionários insatisfeitos de agências governamentais, media e organizações não governamentais como «entrepreneurs políticos»: entidades que investem o seu tempo e recursos não só em opor-se a certas políticas mas em mudanças das mesmas. No entanto, segundo Mertha, a sua esfera de acção, longe de negligenciável, não constitui uma ameaça ao statu quo do PCC, correspondendo portanto a uma forma de mudar o sistema por dentro ou em colaboração com ele (p. 81). Fora do âmbito «oficial», o capítulo dos conceituados investigadores sobre protestos rurais na actualidade, Lianjiang Li e Kevin J. O’Brien, «Protest leadership in rural China» (pp. 85-108), parte de trabalho de campo na China para caracterizar as actividades dos líderes de protestos rurais e das motivações que os levam a assumir tal posição. Se é verdade que a emergência destas figuras organizadoras evidencia um descontentamento mais vasto na população rural chinesa, há uma confiança na «capacidade de o centro fazer justiça» (p. 95), com as críticas a serem direccionadas para os funcionários corruptos nas esferas inferiores da hierarquia do regime. E a repressão governamental com que estas acções têm sido recebidas tem resultados diferentes dependendo da localidade e personae dos envolvidos: pode terminar os protestos ou acicatar a resistência popular. Ainda no meio rural, mas desta feita olhando para os camponeses em geral, Teresa Wright chega a conclusões similares às de Li e O’Brien em «Tenuous tolerance in China’s countryside» (pp. 109-128):

«investigações sobre impostos rurais e  conflitos relacionados com a terra concluíram que o que tem encorajado os camponeses a empreenderem acções colectivas tem sido, em primeiro lugar, a sua crença de que as autoridades locais não têm aplicado as políticas centrais concebidas para proteger os interesses dos camponeses» (p. 119).

No entanto, e contrastando com o que se passou durante o regime de Mao, os camponeses têm pouca relevância na retórica actual do PCC e a sua filiação no partido é hoje irrisória. Passando do campo às cidades (embora o livro não siga essa ordem – talvez mais lógica), «A question of confidence: State legitimacy and the new urban poor» (pp. 243-257), de Dorothy J. Solinger, reflecte sobre as causas e efeitos do estabelecimento do «Programa de Rendimento Mínimo Garantido» (referido popularmente como dibao) em 1999. Medida destinada a fazer face à pobreza que se tornou cada vez mais visível nas cidades após a vaga de desemprego criada pelo plano de austeridade do vice-primeiro-ministro Zhu Rongji em 1993, o dibao é descrito por Solinger como uma medida dúplice, que tem talvez mais objectivos de garantir a quietude dos citadinos pobres (p. 246) do que de inserção social. No entanto, após descrever as complexidades da implementação do dibao, a autora fornece interessantes testemunhos de alguns dos beneficiários deste sistema. Segundo Solinger, «O Estado suspeita mais do indigente que este do Estado» (p. 243). Tal como os camponeses acima referidos, os citadinos pobres parecem ter uma enorme fé na benevolência do poder central (uma questão cujo enquadramento histórico Shue já referira no seu artigo). «É incrível como pessoas afastadas dos seus postos de trabalho por ordens do Governo continuam a procurar sustento no mesmo Estado que recentemente agiu contra os seus interesses» (p. 252).

No último capítulo do livro, Mark W. Frazier toma as pensões como estudo de caso para «discutir a volução da China em direcção a direitos de igual acesso a segurança social com base em cidadania» (p. 259). Partindo do desmantelamento do sistema de pensões nas empresas estatais a partir de finais dos anos 1980 e estendendo a sua análise até à situação actual dos trabalhadores migrantes, Frazier analisa como «compressão e expansão do sistema de segurança social podem ocorrer ao mesmo tempo e advir das mesmas causas» (p. 261). Segundo o autor, o caso da criação de um Estado-Providência chinês, em marcha desde os anos 1990, acompanha a implantação de medidas económicas capitalistas sem abandonar legados socialistas, que são adaptados pelo centro – como a ênfase social da construção de uma «sociedade harmoniosa» do actual Governo – mas que, pela expansão de direitos que representam, «podem gerar o seu próprio momentum político à medida que novos grupos são incorporados em programas e políticas de segurança social existentes» (p. 271).

Tomando como base dados estatísticos recolhidos numa sondagem elaborada por uma equipa de investigação que liderou, Martin King Whyte pergunta: «Do Chinese citizens want the government to do more to promote equality?» (pp. 129-159). Algumas das respostas podem ser surpreendentes, tais como «a visão convencional de que a maioria dos cidadãos chineses vêem as desigualdades nas quais vivem hoje como excessivas e injustas parece ser incorrecta» (p. 139) e que grupos menos privilegiados, como camponeses, são menos prováveis de expressar desejos de maior igualdade do que trabalhadores urbanos. Isto é explicável pelos antecedentes históricos pré-Reforma. Mao – ao contrário do que a retórica do regime pudesse fazer supor – «espremeu» os camponeses2 e beneficiou os trabalhadores urbanos das indústrias estatais, cujos privilégios têm vindo a ser erodidos nas últimas décadas, levando a que esses contestem as desigualdades actuais ao passo que os camponeses, que beneficiaram pouco, mas alguma coisa, das reformas de Deng Xiaoping em comparação com a sua situação anterior, não se exprimem tão abertamente.

Temas associados às novas gerações merecem dois capítulos neste livro. Stanley Rosen, no seu «Chinese youth and statesociety relations» (pp. 160-178), procura dar sentido à forma contraditória como os jovens chineses são classificados, concluindo que são mais materialistas e individualistas em tempos «normais» e mais patrióticos em alturas extraordinárias (p. 172). O autor refere como o PCC tem procurado oferecer alternativas aos modelos ocidentais – que eram enaltecidos de tal maneira pela geração da «Primavera de 1989» que se falou de «Ocidentalismo» – com algum sucesso, como parecem comprovar a valorização da filiação no partido (embora por razões não políticas mas de benefício pessoal). Nas páginas seguintes, Patria M. Thornton analisa «Censorship and surveillance in Chinese cyberspace: beyond the Great Firewall» (pp. 179-198), procurando rebater as ideias de que há um laço óbvio entre democracia e internet. Concentrando-se nas tendências de utilização da internet na RPC, Thornton conclui que a censura imposta pelo Governo não dissuade a utilização da rede (o número de utilizadores de proxies que permitem contornar a «Great Firewall» aumenta) mas que sondagens revelam que cerca de 80 por cento dos entrevistados consideram que deve existir censura na internet e que o Governo chinês deve ser o responsável por ela (p. 182). No entanto, a autora não ignora o poder mobilizador que a internet pode ter, por exemplo através dos «motores de busca humanos», grupos de netizens que se juntam para investigar certos incidentes.

 

DEFINIR O QUE É NOSSO

Em «The politics of art repatriation: Nationalism, state legitimation and Beijing’s looted zodiac animal heads» (pp. 199-221), Richard Kraus oferece, talvez, o mais original olhar do conjunto reunido neste volume pela forma como examina uma vertente associada à arte muitas vezes ausente de obras dedicadas a assuntos políticos. Partindo do «escândalo» gerado pelo leilão de 2009 de artefactos da Colecção Yves Saint Laurent que haviam sido roubados pelas tropas das potências (maioritariamente ocidentais) aquando da destruição do Palácio de Verão em 1860, Kraus analisa como a questão do «repatriamento de arte» tem acicatado paixões nacionalistas na RPC, sendo essencial na construção de um «símbolo de vitimização» (p. 203) que interessa ao PCC manter. E, olhando para lá do estreito da Formosa (numa dimensão comparativa, no geral, ausente deste volume), o autor nota como a transferência dos tesouros artísticos imperiais para Taiwan no final dos anos 1940 foi uma manobra necessária de legitimação da sobrevivência do Guomindang, com a colecção transferida, hoje no National Palace Museum de Taipé, passível de se tornar «uma moeda de troca à medida que Taiwan e a China continental resolvem a sua relação» (p. 208). Kraus reflecte sobre as dificuldades inerentes ao repatriamento de arte num contexto internacional (com mais de um milhão de artefactos chineses de grande qualidade em colecções estrangeiras) e os esforços que a RPC está a procurar fazer para estabelecer um concerto com outros países empenhados em reaver objectos pilhados (como o Egipto ou a Grécia), uma interessante dimensão de relações externas que tem passado, talvez, um tanto despercebida.

Assim como definir a quem pertencem os artefactos outrora pilhados em território chinês, também a questão de quão chinesa por direito é a terra ocupada por minorias étnicas na RPC é intrincada. No seu capítulo «Tibetans, Uyghurs and multinational “China”: Han-minority relations and state legitimation» (pp. 222-242), o australiano Colin Mackerras fornece uma boa síntese da complexidade do tema das minorias na China, procurando traçar as justificações históricas da República da China e da RPC para a definição do seu território e das diferenças existentes entre diversas minorias e até entre membros de uma mesma minoria. Referindo-se a casos como os Yi, os coreanos, os Hui ou os Zhuang (a maior minoria da RPC, criada nos anos 1950 a partir de vários pequenos grupos3), e contrapondo os seus casos aos dos mais célebres – porque tendencialmente independentistas – tibetanos e uigures, o autor conclui que a resposta para o que é a China «depende no quão fortemente o passado pesa sobre o presente» (p. 225) e que «membros de diferentes grupos étnicos têm muitas vezes atitudes diferentes em relação ao ser-se chinês» (p. 258). Mackerras também não considera iminente a dissolução das diferenças culturais entre minorias na China, embora aluda aos impactos erosivos de forças como a globalização dos mercados e o turismo. Algo, aliás, não exclusivo do caso chinês.

Como podemos observar, Chinese Politics: State, Society and the Market propõe uma análise multifacetada de diferentes dimensões da política chinesa actual, não apenas como ela é formulada pelo centro mas como é recebida por diferentes sectores da sociedade, eles próprios longe de serem blocos monolíticos. Se há uma ideia-chave a reter deste volume é a de que «a política na China contemporânea é pluralizada de uma tal forma que se torna impossível dizer algo definitivo sobre a política ou as pessoas como um todo» (pp. 122-123). Este livro é, pois, um bom contributo para uma necessária consciencialização desse relativismo e pluralidade de experiências da China contemporânea que importa ter em conta face à tentação das generalizações presentes em muitas análises actuais.

 

NOTAS

1 Veja-se, por exemplo, as suas obras Democratization in China and Taiwan: The Adaptability of Leninist Parties (Oxford: Oxford University Press, 1998) ou Red Capitalists in China: The Party, Private Entrepreneurs, and Prospects for Political Change (Cambridge: Cambridge University Press, 2003).

2 Expressão de Robert Ash no seu artigo «Squeezing the peasants: grain extraction, food consumption and rural living standards in Mao’s China». In The China Quarterly. N.º 188, 2006, pp. 959-998.

3 Para mais sobre a questão da «criação» dos Zhuang cf. KRAUP, Katherine Palmer – Creating the Zhuang: Ethnic Politics in China. Colorado: Lynne Rienner Publishers, 2000.        [ Links ]