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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.28 Lisboa dez. 2010

 

O império que nunca existiu. O expansionismo oportunista de Franco

 

Rui Aballe Vieira

Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, mestrando em História pela FCSH – UNL.

 

 

Manuel Ros Agudo. La Gran Tentación: Franco, el Imperio Colonial y los planes de intervención en la Segunda Guerra Mundial. Madrid, Styria, 2008, 414 páginas

 

Manuel Ros Agudo, investigador doutorado em História Contemporânea pela Universidade Complutense de Madrid, tem concentrado a sua atenção na história dos serviços secretos e dos jogos de bastidores nos anos da Guerra Civil de Espanha e da II Guerra Mundial, quando Franco vacilou entre a não beligerância e a participação no conflito com o Eixo. Autor do aclamado La Guerra Secreta de Franco (1939-1945) (Barcelona: Crítica, 2002) e, com o historiador dinamarquês Morten Heiberg, de La trama oculta de la Guerra Civil: los Servicios Secretos en España, 1931-1945 (Barcelona: Crítica, 2006)1, a sua produção caracteriza-se pelo cotejo rigoroso de fontes primárias. Em La Guerra Secreta de Franco o autor expôs as actividades clandestinas desencadeadas pelo regime espanhol contra os Aliados, em estreita sintonia com os serviços secretos alemães. Na mesma obra, são igualmente abordados os planos de conquista arquitectados pela cúpula militar do regime, cuja escala, a par da ausência de uma obra de teor monográfico, persuadiu o autor a empreender uma investigação mais exaustiva, alicerçada em fundos documentais entretanto desclassificados. O objecto da presente recensão partiu dessa premissa. Em La Gran Tentación, Manuel Ros escalpeliza os sonhos imperiais do primeiro franquismo, da vitória nacionalista aos planos de participação na II Guerra Mundial.

 

ÂMBITO DO TRABALHO

Após um preâmbulo em que faz o ponto da situação sobre a bibliografia directa ou indirectamente consagrada às ambições imperiais do franquismo dada ao prelo nos últimos vinte anos, Ros optou por dividir a obra em duas grandes partes. Na primeira, são analisadas a questão de Tânger e a ocupação da praça pelo Exército espanhol, enquanto primeiro passo na estratégia de construção imperial desenhada a partir de Abril de 1939, com o cuidado de referir não ter sido sua intenção estudar os anos de ocupação espanhola da cidade, ou o papel desempenhado por Madrid em Marrocos nos anos da II Guerra Mundial. Na segunda, o autor processa os frutos do seu trabalho em vários arquivos espanhóis2, descrevendo-nos preparativos situados entre a queda da França e as últimas semanas de 1940, quando Franco deu por perdida a oportunidade de construir um novo império colonial, na ausência das garantias que esperara de Hitler para se juntar a alemães e italianos como beligerante.

Ros estabelece uma clara distinção entre reivindicações de teor irredentista (um «irredentismo colonial», p. 40), e novas exigências francamente imperialistas, de tipo conjuntural, que ganham alento após a capitulação francesa. Conduzem, em primeiro lugar, a planos concretos de invasão do Marrocos francês, considerados a partir de Junho de 1940, ao mesmo tempo que eram encetadas negociações com Vichy, Londres e Berlim, tendentes a satisfazer o apetite imperial de Madrid, mas ajustadas consoante o interlocutor. Assim, se com os alemães foi solicitada carta‑branca para partir à conquista de vastas extensões territoriais a sul, núcleo do futuro império colonial espanhol, na capital britânica argumentava-se em favor de reajustes fronteiriços mais comedidos.

 

TÂNGER, CHAVE DE MARROCOS

Nos anos 1930, Tânger e a zona limítrofe, sob administração internacional desde 1923, formava um enclave incrustado em pleno Protectorado Espanhol3. A isto acrescia o facto de em 1912 terem sido atribuídos à França cerca de 80 por cento do território marroquino, englobando praticamente todas as zonas viáveis para a agricultura e o melhor quinhão das jazidas minerais, uma afronta para a casta de oficiais africanistas que veio a constituir o grosso dos golpistas em 17 de Julho de 1936.

O capítulo sobre Tânger (pp. 39-118) é introduzido por uma oportuna cronologia que permite seguir a evolução das reivindicações coloniais de Madrid até à ditadura de Primo de Rivera, com destaque para os anos de 1926-1928, quando a Espanha tentou forçar a incorporação da cidade no Protectorado. Apesar das ligeiras concessões conseguidas a custo pela ditadura militar, o problema arrastou-se nos anos seguintes, a ponto de se converter numa fonte de tensão com Paris, apenas mitigada durante a II República. Dois terços da população europeia de Tânger eram constituídos por espanhóis, facto que por si só servia para alimentar o ressentimento da opinião pública contra a França e a sua condição de potência hegemónica em Marrocos. De um ponto de vista puramente militar, persistia o temor de que os franceses, a sós ou conluiados com a Grã-Bretanha, pudessem servir-se da cidade e do seu porto para estabelecer uma sólida testa-de-ponte em caso de conflito armado, e daí ameaçar o território sob protecção espanhola. Durante a Guerra Civil, o Protectorado constituiu uma retaguarda vital para o esforço de guerra nacionalista, mas também fonte de constantes preocupações para os responsáveis no terreno, por se encontrar perigosamente desguarnecido (a maioria das tropas indígenas e da Legión estavam então a combater na Península, concentradas na frente de Madrid).

A personagem central neste capítulo da trama é o coronel Juan Beigbeder Atienza, arabista que sucedeu a Luis Orgaz Yoldi no cargo de alto-comissário para o território entre 1937 e 19394. Tal como muitos dos seus camaradas da geração africanista, movia-o um forte rancor contra a França, não como inimiga jacobina e liberal, mas sim enquanto obstáculo ao destino histórico da Espanha em Marrocos. Beigbeder fez os possíveis para evitar pretextos óbvios que pudessem justificar uma intervenção militar francesa na zona espanhola, com consequências potencialmente fatais para os nacionalistas na sua guerra contra o Governo de Madrid. Contudo, não poupou esforços encobertos para minar a administração colonial francesa, ao mesmo tempo que ventilava vagas propostas de autonomia. Este flirt com o nacionalismo marroquino estava longe de ser desinteressado. Beigbeder via no Marrocos «independente» – leia-se arrancado à influência francesa e de quaisquer outras potências – a ferramenta que melhor servia os interesses imperiais espanhóis a médio prazo, num quadro de domínio informal similar ao que fora posto em prática pelos britânicos (e pelos Estados Unidos): «“Claro está que ya nos arreglaríamos nosotros para que el que mandara en Marruecos fuera el Embajador de España en Fez y que Marruecos en el porvenir fuera una especie de Panamá, Nicarágua, Cuba o Egipto”» (p. 47).

Se o ponto de vista espanhol merece naturalmente uma análise cuidada, o empenho de Manuel Ros em iluminar a perspectiva francesa é apreciável. São-nos revelados detalhes sobre as medidas pensadas pelo résident général em Rabat, general Auguste Noguès, para a eventualidade de um conflito com a Alemanha e a Itália, com quem receava que a Espanha nacionalista alinharia.

Ros examina também diversos aspectos pouco conhecidos da actuação do Governo de Madrid, como o plano fantástico (imaginado em Janeiro de 1937 pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da República, Álvarez del Vayo) de renunciar a Marrocos em favor de franceses e britânicos, na condição de estes oferecerem à Alemanha territórios africanos subtraídos aos respectivos impérios coloniais, para assim convencer Hitler a abandonar os sublevados à sua sorte! Em 1938, Álvarez del Vayo tentou uma última cartada africana, desta vez mais realista: fomentar uma rebelião nacionalista, a ser chefiada por um velho inimigo do poder colonial espanhol, Abd-el-Krim.

 

VERTIGEM DE UM INSTANTE

Embriagados pela vitória, os nacionalistas passaram a ver em Marrocos a arena onde a nova Espanha poderia recuperar o lugar ao sol entre as potências. Os inquietantes desenvolvimentos internacionais dos últimos meses corriam de feição para as ambições de Madrid. O appeasement tentado por Paris e Londres perdera toda a credibilidade em Março de 1939, com a ocupação da Checoslováquia pela Wehrmacht. Neste cenário em que só a linguagem da força parecia valer, Beigbeder decidiu gizar um plano secreto para anexar a Zona Internacional de Tânger, que viria a ser implementado após o colapso da França no Verão de 1940. Até lá, o receio de uma acção conjunta franco-britânica nos primeiros meses do ano levou o Alto-Estado‑Maior franquista a reforçar o dispositivo militar nas Baleares, na zona do estreito e em Marrocos. Em Agosto de 1940, Beigbeder é nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros, sendo substituído pelo general Carlos Asensio Cabanillas no cargo de alto-comissário. Asensio manter-se-á fiel, no essencial, às linhas programáticas do seu antecessor. Estimular a instabilidade no Marrocos francês, de modo a gerar uma atmosfera insurreccional era a palavra de ordem. «España, si queria triunfar debía apoyarse en una rebelión interior de los propios marroquíes contra los franceses […]. Sobre esto razonaba Asensio ante su ministro: “[…] Este es el cuchillo a afilar, y yo ya he empezado los sondeos”» (pp. 97‑98). Ros consagra a parte final do capítulo à ocupação espanhola de Tânger (pp. 101-118), e às démarches de Beigbeder junto dos alemães, a quem revelou as reivindicações territoriais de Madrid: Gibraltar, Tânger, todo o Marrocos francês e a revisão das fronteiras na Guiné Espanhola. Paralelamente, na Espanha, as vitórias alemãs da Primavera de 1940 foram acompanhadas por uma violenta campanha antialiada, destinada a preparar a população para a participação na guerra. A declaração de guerra da Itália à França, a 10 de Junho de 1940, forneceu o pretexto ideal para os militares espanhóis agirem em Tânger. Além de precipitar a ocupação espanhola, a atitude oportunista de Mussolini encorajou Madrid a dar mais um passo no caminho para o abismo: a 13 de Junho a Espanha abandonou oficialmente a neutralidade, passando à condição de nação não-beligerante. No dia seguinte era desencadeada a ocupação de Tânger, descrita pelo autor como corolário de um processo conduzido com circunspecção, que abrangeu negociações com britânicos e franceses, protegidas pelos espanhóis com um véu de secretismo para dissimular o carácter essencialmente temporário da ocupação, distante da imagem de acto de força unilateral, fabricada para consumo de alemães e italianos. Embora a sua nomeação para a pasta dos Negócios Estrangeiros tenha beneficiado da aquiescência benevolente de Serrano Súñer, e apesar da actividade quase febril que desenvolveu em prol dos projectos imperialistas no cenário marroquino que tão bem conhecia, Beigbeder tinha contra si, aos olhos da Falange, uma moderada anglofilia e o facto de ser admirador confesso do sistema imperial britânico5. Será substituído pelo próprio Súñer. Quanto a Tânger, única «conquista» territorial do franquismo, a sua ocupação findou a 11 de Outubro de 1945, não sem que antes tivessem sido ensaiadas várias medidas de españolización do enclave.

 

«IMPÉRIO POSSÍVEL» NO NORTE DE ÁFRICA

A segunda parte da obra (pp. 119-346) desmonta alguns mitos caros à propaganda franquista, nomeadamente a tese que defende que a Espanha foi salva do conflito graças à sagacidade e aptidão negocial do Caudilho: qual astuto camponês galego, Franco teria ignorado os cantos de sereia do III Reich, evitando comprometer a sobrevivência do regime numa aventura militar potencialmente desastrosa. Manuel Ros fornece provas esmagadoras do contrário: Franco e as chefias militares planearam entrar na guerra quando as armas alemãs pareciam invencíveis. A oportunidade irrepetível para alcançar o «imperio posible» e assim consumar o regresso ao clube restrito das potências coloniais, sonho de muitos militares africanistas desde os anos 1920, havia chegado. Eis a grande tentação referida no título. Para a concretizar, a liderança franquista ponderou cuidadosamente a hora de agir. O país estava exangue após a Guerra Civil e a despeito dos delírios megalómanos de retorno às glórias do Siglo de Oro, a realidade era inescapável, mesmo para os falangistas mais empedernidos. Inspirados pela velocidade com que a Blitzkrieg esmagou em poucas semanas países inteiros, Franco e os seus generais concluíram que a Espanha podia tentar a sorte numa campanha de curta duração (até seis meses), suficiente para desferir um golpe decisivo ao inimigo sob a sombra protectora da Alemanha, a que todos os indicadores pareciam vaticinar uma vitória total a brevíssimo prazo. Tratava-se, portanto, de «no perder la ocasión si se presenta», de conseguir um império «instantâneo», com custos humanos e materiais reduzidos. Ao explicar a necessidade desta legitimação imperial, Ros situa a tentação franquista no espírito do «tempo dos fascismos», mas sem esquecer a matriz fundadora que irmanava a uma só voz os militares africanistas (Franco, Vigón, Millan Astray, Orgaz, Beigbeder, Varela, Asensio, Yagüe e outros), forjada nas campanhas contra as guerrilhas rifenhas em Marrocos: «El contacto con esa tierra y sus habitantes había generado en ellos un espiritú de grupo y una identidad común, que llevaba a Franco, por ejemplo, a admitir que no podia explicarse a sí mismo sin aludir de manera primordial a Marruecos» (p. 124). Esta mentalidade explica em larga medida a obsessão com Marrocos e o Norte de África imperante no seio do alto oficialato. Os postos mais elevados do novo Estado encontravam-se em mãos de oficiais africanistas: Franco (chefe de Estado e presidente do Governo), Jordana (Negócios Estrangeiros, logo substituído por Beigbeder), Varela (ministro do Exército), Yagüe (ministro do Ar) e Asensio (alto-comissário em Marrocos) partilhavam a mesma visão sobre o papel transcendental da África no destino da Espanha.

Antes ainda da derrota francesa, principal catalisador da ambição imperial de Madrid, Ros situa na primeira sessão da Junta de Defensa Nacional realizada após o final da Guerra Civil, em Outubro de 1939, o momento de viragem na história dos projectos expansionistas de Franco. Chegados a este ponto, é-nos apresentado o actor que desempenhará um papel central no planeamento subsequente: chefe do Alto‑Estado-Maior, o general Juan Vigón é descrito como um «monárquico realista» que soube manter-se fiel ao regime sem se enredar nos círculos que defendiam a restauração da monarquia borbónica6. Cérebro das operações que arrebataram a iniciativa ao exército governamental durante a Guerra Civil, Vigón exercia sobre Franco uma influência discreta mas constante, sem paralelo no generalato. Em seu entender, a Espanha devia permanecer neutral a curto prazo e reconstituir o tecido económico, mas sem descurar as Forças Armadas, que pretendia fortalecer através de um programa de rearmamento e modernização sem precedentes, que viria a ser aprovado pela Junta de Defensa Nacional. O plano, pensado em função de um prazo de dez anos, a cumprir até 1950, previa a modernização da força aérea em duas fases, findas as quais o Ejército del Aire deveria contar com 3600 aviões modernos.

Quanto à Marinha, sonhava-se com a construção de uma frota oceânica de «prestígio», composta por quatro couraçados, dois cruzadores pesados, 12 cruzadores ligeiros, 54 contratorpedeiros, 36 torpedeiros, 50 submarinos e 100 lanchas rápidas. Estes planos comprovam à saciedade as inclinações belicistas do regime e a intenção de participar na guerra como terceiro elemento do Eixo, corroboradas pelos planos de anexação do Marrocos francês (iniciados em Outubro de 1939, sendo por isso anteriores à ofensiva alemã a oeste). O ataque, planeado para 18 de Junho de 1940, só não se efectivou porque Vigón, enviado em missão especial a Berlim para solicitar apoio a Hitler, não conseguira arrancar ao Führer mais do que vagas promessas (p. 147). Uma segunda tentativa, prevista para o final de Junho7, foi abortada a poucas horas do início das operações devido à discordância dos alemães. Hitler desconfiava de movimentações que pudessem ameaçar a fidelidade da África do Norte francesa a Vichy. O desencontro entre Hitler e Franco acentuou-se ainda mais após a assinatura do Pacto de Aço por Madrid, na sequência do Protocolo de Hendaya (11 de Novembro de 1940). Embora à Espanha apenas faltasse, segundo este documento, decidir a data de entrada na guerra, a partir de 29 de Novembro Franco inflectiu na sua estratégia, por carecer de garantias palpáveis de Berlim para concretizar a sua visão imperial.

 

UM ESTADO DE ESPÍRITO EXPANSIONISTA: A INVASÃO DE PORTUGAL

A Espanha de 1940, tal como a descreve Manuel Ros baseado em documentação que permaneceu inédita durante mais de sessenta anos, era dominada por pulsões expansionistas, que só a debilidade conjuntural frustrou. No entanto, o Alto‑Estado-Maior espanhol continuou a elaborar planos ofensivos mesmo após Hendaya. É justamente o penúltimo que encerra a revelação mais sensacional do livro, pelo menos para a maioria dos leitores portugueses. Ao longo de onze páginas é-nos descrito o plano de invasão de Portugal submetido à aprovação de Franco a 18 de Dezembro de 1940 (pp. 269-280). Um cenário de guerra com a Grã-Bretanha, iniciado pelo ataque a Gibraltar (cuja planificação foi estudada pelo autor em trabalho já mencionado8), constituía o pano de fundo. O Alto-Estado-Maior franquista calculou que a reacção mais plausível dos britânicos seria um desembarque nas Canárias, seguido por uma operação de maior amplitude na costa portuguesa. Para prevenir esta eventualidade, a 1.ª Secção (Operações) do AEM entregou-se à tarefa de conceber um ataque preventivo, a ser executado em simultâneo com a operação contra Gibraltar. Designado «Plan de Campaña número -1-(34)», Ros apresenta-o como «absoluta novedad historiográfica». Elaborado entre meados de 1940 e o Natal, o documento é composto por oito secções que abordam «todos los aspectos importantes para una operación de esta envergadura, desde los antecedentes históricos de otras invasiones, hasta los efectivos com los que Portugal contaba para su defensa, pasando por un análisis geográfico-militar de su território o las fuerzas españolas a emplear y sus rutas de invasión» (p. 271). Ros confere especial atenção à que contém instruções destinadas às forças terrestres, aéreas e navais que deviam assegurar o sucesso da operação. Inicia-a uma nota do próprio Caudilho, que justifica o acto de agressão pela necessidade de negar o uso do território português às forças britânicas: «“Ante tal eventualidad, tan danosa para la seguridad e independencia de nuestra Pátria, he decidido: a) Preparar la invasión de Portugal, a fin de ocupar Lisboa, y el resto de la costa portuguesa […].”» (p. 272). Franco estava determinado a fazer tábua rasa do Tratado de Amizade e Não Agressão, celebrado a 17 de Março de 1939, e do protocolo adicional subscrito apenas alguns meses antes da conclusão do plano, a 30 de Julho de 1940, e a esquecer o auxílio proporcionado pelo Estado Novo durante a Guerra Civil9. Além de dissipar quaisquer dúvidas sobre a verdadeira natureza do regime franquista, afinal tão próximo dos seus parceiros ideológicos, e o valor circunstancial e precário atribuído pelo ditador espanhol aos tratados, este aspecto comprova quão deslocada está da realidade a tese que apresenta a neutralização da Espanha durante a fase inicial da II Guerra Mundial como um dos triunfos maiores da diplomacia do Estado Novo. Com condições objectivas mais auspiciosas, e esta é uma das convicções que o autor consegue transmitir-nos, Franco teria certamente jogado a cartada imperial.

O plano de invasão é ilustrado por um mapa esquemático, desenhado a partir de dados colhidos no documento original (p. 273). Dois exércitos avançariam em simultâneo, ao norte e sul do Tejo, descrevendo um movimento em pinça do interior para o litoral. A operação envolveria dez divisões de infantaria e uma de cavalaria, quatro regimentos blindados, oito grupos de reconhecimento de cavalaria e oito regimentos mistos de infantaria, perfazendo no total 250 mil homens. A ponta de lança do ataque seria a aviação, a arma que mais se modernizara na Guerra Civil. Ao Ejército del Aire, numeroso e ainda em plena forma em 1940, cabia a tarefa de obliterar a débil aviação militar portuguesa nos primeiros momentos do ataque, de preferência no solo. Se a operação se tivesse consumado, aos 32 caças10 da Arma de Aeronáutica teria cabido a pouco invejável missão de deter cinco grupos de bombardeamento (equipados com Savoia ‑ Marchetti S.79, Dornier Do 17 e Heinkel He 111), dois de caça, duas esquadrilhas de reconhecimento e dois grupos de assalto (dotados com Polikarpov I-15) e ainda as quatro esquadrilhas de caças Fiat CR.32, encarregues da cobertura aérea11. Além da supressão da oposição aérea portuguesa e das respectivas bases, esperava-se da aviação espanhola a interdição das vias de comunicação, bem como ataques a concentrações de tropas, coordenados com as forças terrestres. Expostas as opções estudadas pelo AEM de Franco em caso de contra-ataque britânico, com o que dá por concluída a análise dos preparativos contra Portugal, Manuel Ros interroga-se sobre as implicações políticas da operação: «¿La ocupación de Portugal por los españoles seria un hecho temporal, mientras durase la guerra, o bien escondía un plan de absorción por parte de España?» Face ao mutismo da documentação militar, prefere deixar a palavra a Serrano Súñer, citando a acta do célebre encontro com Ribbentrop em Berlim, ocorrido a 16 de Setembro de 1940: «“[…], uno no podía evitar darse cuenta al mirar el mapa de Europa que geográficamente hablando Portugal en realidad no tenía derecho a existir; Tan sólo tenía una justificación moral y política para su independencia en el hecho de sus casi 800 años de existencia”» (pp. 277-278).

 

UMA EDIÇÃO PORTUGUESA AQUÉM DAS EXPECTATIVAS

A edição portuguesa, publicada em finais de 200912, não mereceria maiores comentários não fosse o registo sensacionalista que parece tê-la norteado. Esta suspeita é confirmada pela frase delirante impressa na contracapa – «Os planos secretos de Franco para dominar o mundo» (!) – corrigida na linha seguinte, em fonte mais pequena mas ainda em maiúscula, onde se resume correctamente o objecto central do trabalho de Manuel Ros – Franco na Segunda Guerra Mundial: a sua obsessão por conseguir um império colonial para a Espanha no Norte de África – ainda que com um deslize na construção frásica. Na capa, a editora, atenta ao interesse comercial das doze páginas consagradas ao plano de invasão de Portugal, preferiu inserir um subtítulo bastante explícito, em jeito de piscadela de olho a potenciais clientes: «Os planos de Franco para invadir Portugal». A impressão inicial sofre segundo revés ao descobrirmos a tradução, apressada e de qualidade irregular (realizada, segundo a ficha técnica, por um profissional coadjuvado por um revisor). O castelhano límpido e fluído do autor foi vertido num português desigual, que pouca justiça faz à escrita do original. Exemplos? As falhas explicáveis por uma deficiente compartimentação de dois idiomas vizinhos mas não equivalentes e por algum contágio que daí possa ter advindo, bem como equívocos que o crivo de uma revisão mais atenta teria filtrado. Eis alguns exemplos: «dois cruzeiros protegidos» (p. 119); a forma correcta seria “cruzadores”. O mesmo erro grosseiro é bisado adiante: «pois a Marinha não contava com meios suficientes, como cruzeiros [sic] ou destroyers» (p. 230). Descobrimos também erros inaceitáveis na tradução de um trabalho científico, tais como a «táctica delatora» de Franco, pérola detectada no título de um subcapítulo e no texto subsequente (p. 221)13. De resto, traços de uma sintaxe importada directamente do castelhano assomam por vezes no texto, sem que aparentemente o revisor tenha assinalado a sua presença: «uma integração ibérica de Portugal a Espanha» (p. 232). A expressão espanhola «la Roca», alusiva ao rochedo de Gibraltar, é mimoseada com uma bizarra tradução literal, «ambas as operações, uma contra a Rocha e a outra contra Portugal» (p. 225), que a esvazia de significado, além de soar absurda. Tivemos oportunidade de discutir com colegas a importância desta obra no panorama dos estudos sobre o primeiro franquismo e é com alguma pena que constatamos ter-se perdido um óptimo ensejo para produzir uma versão melhorada da edição espanhola, pela adição de dados não incluídos no original. É de lamentar que o aspecto literário tenha, ele também, sido descurado em função de imperativos comerciais, pouco condicentes com uma abordagem qualitativa do trabalho de edição.

O texto é completado por quatro mapas esquemáticos, dois cadernos com fotografias de protagonistas da «grande tentação», impressos em papel de boa gramagem, e um amplo apêndice documental, todos comuns às duas edições.

 

NOTAS

1 Na senda de dois trabalhos marcantes de Javier Tusell (Franco, España y la Segunda Guerra Mundial, entre el Eje y la Neutralidad. Madrid: Temas de Hoy, 1995) e Ángel Viñas (Franco, Hitler y el estallido de la Guerra Civil: antecedentes y consecuencias. Madrid: Alianza Editorial, 2001).

2 Archivo del Ministerio de Asuntos Exteriores (amae), Archivo del Servicio Histórico del Estado Mayor de la Armada (shema), Archivo Histórico del Ejército del Aire (AHEA), todos sediados em Madrid ou nas suas imediações, e o Archivo General Militar (AGM), em Ávila. Após numerosas tentativas, Manuel Ros conseguiu em 2005 autorização especial para consultar a documentação constante dos fundos do Alto Estado Mayor (AEM) e da Junta de Defensa Nacional, ciosamente defendida durante dezenas de anos por uma impenetrável muralha burocrática, que só muito recentemente começou a ser afrouxada. O autor refere ainda que, à data de publicação, o paradeiro da documentação vital da 3.ª secção (relativa às operações de inteligência e contra-espionagem) do AEM permanece desconhecido. O Ministério da Defesa não conseguiu – ou não quis – apurar onde se encontram os documentos da Junta de Defensa Nacional. Ros conseguiu ainda aceder ao arquivo pessoal do general Varela, ministro do Exército nos anos críticos de 1939 a 1942.

3 Documento inicialmente ratificado por três países, Espanha (segundo Ros, os governos que se sucederam até à Guerra Civil atribuíam a anuência espanhola à forte pressão exercida pelos franceses), França e Grã-Bretanha, aos quais depois se juntariam mais cinco (Bélgica, Holanda, Itália, Portugal e Suécia).

4 Embora o seu papel, sobretudo se comparado com o de Beigbeder, tenha sido menor, Orgaz foi o iniciador da política de relativa tolerância face ao que os próprios militares africanistas descreviam como «nacionalismo de conveniência», tendo em vista fidelizar as elites locais e garantir o fornecimento de soldados marroquinos para a guerra em solo peninsular. Orgaz voltaria a ocupar o cargo de alto-comissário a partir de Março de 1941, mantendo-se no lugar até Maio de 1945.

5 Embora Ros não o mencione, este facto constituiu o pretexto ideal para a sua súbita destituição (é substituído pelo germanófilo Ramón Serrano Súñer a 17 de Outubro de 1940), encorajada pela propaganda alemã, que descrevia Beigbeder como joguete dos interesses britânicos, a ponto de tornar pública a relação que o coronel mantinha com uma jovem inglesa acusada de espionagem. No dia seguinte à demissão, Beigbeder realizou uma importante démarche junto do embaixador britânico em Madrid, para a eventualidade de a Wehrmacht exigir direitos de passagem a Franco para atacar Gibraltar, tendo assegurado que o Exército espanhol e alguns sectores oposicionistas moderados adeririam à resistência contra os alemães, desde que pudessem contar com apoio britânico. Cf. Langhorne, Richard (dir.) – Diplomacy and Intelligence during the Second World War. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 137.

6 Juan Vigón Suero Díaz (1880-1955) fora ajudante-de-campo de Afonso XIII. Durante a II República, a chamada Lei Azaña obrigou-o a retirar-se do serviço activo com o posto de coronel. Ao estalar a Guerra Civil juntou-se aos sublevados, tendo participado nas campanhas da frente norte, no País Basco, Cantábria e Astúrias.

7 Coincidente com o armistício entre a Alemanha e a França, assinado a 25 de Junho de 1940.

8 Cf. Agudo, Manuel Ros – La Guerra Secreta de Franco (1939-1945). Barcelona: Crítica, 2002, pp. 55-65.        [ Links ]

9 Não deixa, no entanto, de ser significativo que neste período, caracterizado em Espanha por uma exaltada propaganda imperialista, o Exército português nunca chegue a perder de vista o «perigo espanhol» mercê dos alarmantes relatórios remetidos de Madrid pelo adido militar, coronel Abílio Passos e Sousa (que fora ministro da Guerra em meados da década de 1930), dando conta de preparativos militares desproporcionados. Cf. Faria, Telmo – Debaixo de Fogo! Salazar e as Forças Armadas (1935-1941). Lisboa: Edições Cosmos/Instituto da Defesa Nacional, 2000, pp. 225-230.

10 Em finais de 1940, os únicos caças razoavelmente modernos de que a aviação portuguesa dispunha eram os 30 Gloster Gladiator das esquadrilhas da Ota e Tancos, adquiridos em 1938 e 1939, mais ou menos equiparáveis aos numerosos Fiat CR.32 (o grosso da caça espanhola) e aos Polikarpov I-15 e I-152, mas claramente inferiores aos Messerschmitt Bf 109 e Polikarpov I-16 espanhóis.

11 Ficavam excluídas dos planos de invasão as unidades aéreas estacionadas em Marrocos, uma das quais – o 27 Grupo Mixto, com base em Melilla – dotada com monoplanos de caça modernos (Heinkel He 112 e Fiat G.50).

12 Agudo, Manuel Ros – A Grande Tentação: Franco, o Império Colonial e o Projecto de Intervenção na Segunda Guerra Mundial. Lisboa: Casa das Letras, 2009, 372 pp.

13 No original lê-se «táctica dilatória» (pp. 265-266).