SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número28Ensaio bibliográfico. Estudos sobre política externa portuguesa após 2000O império que nunca existiu. O expansionismo oportunista de Franco índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.28 Lisboa dez. 2010

 

Vitória de Pirro

 

Pedro Aires Oliveira

Docente na FCSH – UNL e investigador do Instituto de História Contemporânea. Membro do Conselho Científico do IPRI–UNL. Autor de Os Despojos da Aliança. A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa 1945-1975 (2007).

 

 

 

Duarte Ivo Cruz. Estratégia Portuguesa na Conferência de Paz, 1918-1919. As Actas da Delegação Portuguesa. Lisboa, FLAD, 2009, 309 páginas.

Filipe Ribeiro de Meneses. Afonso Costa, Lisboa, Texto Editora, 2010, 206 páginas.

 

Em ano de centenário, tem sido magra a colheita de livros que se debruçam sobre os aspectos internacionais da I República portuguesa. Das muitas reedições dadas à estampa, e das novas obras de síntese publicadas até ao fim do presente ano, poucas são as que dedicam mais do que algumas páginas a essa dimensão histórica. Se entre as décadas de 1970 e 1990, questões como a da participação portuguesa na Grande Guerra ou as relações com a Grã‑Bretanha e a Espanha deram origem a estudos que desde então se tornaram obras de referência, ultimamente o foco da historiografia da I República tem incidido mais noutro tipo de problemas. Sem conseguir motivar novos investigadores, a história das relações internacionais da I República tornou-se um pântano estagnado. O que é uma pena – não só pelos inúmeros aspectos da acção externa do Estado que ainda estão mal estudados, mas, também, pela melhor contextualização dos processos e dinâmicas internas do regime republicano que o recurso a fontes diplomáticas estrangeiras poderia proporcionar. As duas obras aqui em análise, uma edição de documentos e uma biografia do mais representativo homem político da República, talvez possam aguçar o apetite dos investigadores por este domínio tão negligenciado.

 

DIÁRIO DE BORDO EM PARIS

Duarte Ivo Cruz, que conciliou uma longa carreira de serviço público com uma vida de investigação dedicada ao estudo da história da cultura em Portugal (com especial relevo para a história do teatro), levou a cabo a edição de uma fonte fascinante – as actas da delegação portuguesa à Conferência de Paz de Paris (1918-1919), uma espécie de diário de bordo dos enviados de Lisboa ao mais importante conclave diplomático realizado desde o Congresso de Viena.

Lavradas à mão num livro de grande formato, actualmente depositado no Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, essas actas correspondem ao registo das reuniões dos membros da delegação lusa durante a fase crítica das negociações de paz, o período compreendido entre Janeiro e Junho de 1919 (assinatura do Tratado de Versalhes). Através delas, é possível não só acompanhar as oscilações que a estratégia originalmente arquitectada pelo Governo de Sidónio Pais foi sofrendo, mas, também, as percepções dos diplomatas portugueses em Paris acerca dos desafios e ameaças com que tinham de se debater diariamente. É, em suma, um documento muito instrutivo acerca do tipo de adversidades que uma pequena potência estava condenada a enfrentar num contexto em que a Realpolitik imperava (não obstante o sopro idealista trazido pelo Presidente Wilson), e também muito revelador dos escassos recursos que os seus representantes poderiam mobilizar para acautelar os interesses nacionais.

Como já foi notado, na altura do armistício muita gente se interrogava se Portugal podia verdadeiramente ser incluído no campo das potências vencedoras. Economicamente devastado, o País somara desaires contra um minúsculo contingente alemão em Moçambique, vira o seu Corpo Expedicionário (CEP) ser dizimado numa única batalha na Flandres, e permanecia dilacerado por gravíssimas disputas internas. Para complicar as coisas, a cerca de um mês do arranque do conclave diplomático em Paris, o seu chefe de Estado, Sidónio Pais, seria assassinado em Lisboa, acontecimento que desencadeou uma espiral de confrontação com laivos de guerra civil. Foi com esta retaguarda caótica que a delegação portuguesa teve de contar durante as primeiras semanas da conferência, circunstância que, pelo menos, teve a vantagem de lhe proporcionar uma inesperada autonomia de actuação.

As suas instruções, delineadas numa reunião ainda presidida por Sidónio Pais, e depois confirmadas pelo almirante Canto e Castro, eram curtas e claras: não reivindicar ou aceitar trocas de territórios; lutar por «indemnizações justas» para cobrir os «prejuízos e despesas» com o conflito; seguir as posições da Grã-Bretanha e defender o «princípio da defesa das pequenas nacionalidades» (p. 99). Integrada por vários elementos que se haviam oposto à estratégia intervencionista do Partido Democrático, como o médico Egas Moniz, ministro dos Estrangeiros e chefe da delegação, e o general Augusto Freire de Andrade, o titular daquela pasta em 1914, a delegação portuguesa teve uma actuação consistente com aquela orientação nos primeiros meses da conferência.

Se levarmos em conta a reputação problemática que a República granjeara junto das principais potências europeias, é difícil não reconhecer algum mérito ao desempenho de Moniz e dos elementos que o assessoravam. A delegação portuguesa foi capaz de garantir dois representantes na Conferência de Paz (um número idêntico ao da representação belga); uma participação em comités importantes, como o da redacção do Pacto da Sociedade das Nações, o das comunicações portuárias, ferroviárias e marítimas e o das reparações (esta arrancada a ferros); obteve a anuência britânica em relação à restituição do pequeno território de Quionga, no Norte de Moçambique (incorporado na África Oriental Alemã em 1894), assim como um compromisso para a devolução dos navios apreendidos aos alemães em Março de 1916, e entretanto postos ao serviço dos aliados.

O seguidismo em relação à Grã-Bretanha, porém, tinha o seu preço. Com efeito, embora os responsáveis portugueses não fossem estranhos à ideia de que uma importante redistribuição de poder à escala global havia sido posta em marcha pelo desgaste que o conflito provocara às potências europeias, durante os trabalhos da conferência a sua abordagem aos Estados Unidos foi, no mínimo, timorata. Essa timidez, que historiadores como Medeiros Ferreira apontam como uma possível causa da não eleição portuguesa para o Comité Executivo da Sociedade das Nações (SDN) (em benefício da Espanha neutra de Afonso XIII)1, tem aqui uma pista interessante. Ivo Cruz cita um telegrama do ministro de Portugal em Washington, visconde de Alte, onde é feita uma alusão à inconveniência das autoridades portuguesas autorizarem a manutenção de bases navais americanas nos Açores, em virtude de um possível encorajamento ianque aos separatistas do arquipélago (p. 47).

Seja como for, as razões da desconfiança portuguesa a respeito do colosso americano não terão adicado apenas nesse ponto. Na verdade, o tipo de visão que animava o Presidente Wilson no pós‑guerra colidia com aspectos tidos por inegociáveis pelos governantes portugueses, nomeadamente a intangibilidade da sua soberania colonial. Na reunião de 31 de Janeiro de 1919, o general Freire de Andrade, antigo comissário régio em Moçambique, e o perito em assuntos coloniais da delegação, foi bastante cândido a respeito da maneira como Portugal encarava as doutrinas baseadas no princípio do trusteeship, doutrinas que haviam ganho a adesão do residente Wilson e de influentes sectores da opinião internacional, muito especialmente no mundo anglo-saxónico. «Essas doutrinas», observava Andrade, «postas em prática, terão como resultado a perda das nossas colónias, porque tendem, como já tenho manifestado o receio, a, deixando-nos as colónias, nos porem em circunstâncias de nelas não podermos viver» (p. 123).

Ora, para limitar o alcance da nova ortodoxia (políticas comerciais de «porta aberta», primazia do bem-estar das populações indígenas, escrutínio ou mesmo controlo supranacional das administrações coloniais), Portugal acabou por ter mais sorte do que noutras ocasiões em que a reforma dos impérios esteve na ordem do dia, e a sua «tutora», a Grã-Bretanha, se encontrou no outro lado da barricada (vide a polémica em torno da abolição do comércio esclavagista). Com efeito, tão arreigada se tornara a convicção de que os recursos imperiais eram vitais para a recuperação europeia, que praticamente não houve margem para que as doutrinas do trusteeship, já para não falar dos ideais de autodeterminação promovidos pela retórica wilsoniana, se generalizassem para lá dos territórios transformados em mandatos da SDN. E de resto, o facto de algumas dessas ideias terem ganho reconhecimento acabou por não ser inteiramente negativo para um pequeno país como Portugal. Boa parte das manobras que belgas, sul-africanos ou italianos esboçaram em Paris, com o intuito de lhe subtrair parte dos seus territórios em África, foi mal acolhida pelos decisores britânicos, para quem esse género de iniciativas pertencia a uma fase ultrapassada do imperialismo europeu. A legitimidade do controlo de territórios, populações e recursos na Ásia e na África pelos ocidentais não era questionada, mas havia agora a convicção generalizada de que essa dominação teria de assumir outras modalidades, e levar em conta um novo caderno de encargos em relação aos «povos submetidos».

 

A HUBRIS DE AFONSO COSTA

Se até Março de 1919 a delegação portuguesa parecia sensível à vantagem de não exorbitar as suas reivindicações, com a substituição de Egas Moniz por Afonso Costa, na sequência do regresso do Partido Democrático ao poder, todo o sentido de moderação se perdeu. A actuação do carismático líder republicano em Paris é um dos principais aspectos tratados no excelente ensaio que Filipe Ribeiro de Meneses lhe dedica, um livro originalmente escrito para uma colecção de perfis biográficos dos principais estadistas da Conferência de Paz de Paris, que uma editora britânica lançou há pouco tempo.

Se por vezes a distância temporal convida à reavaliação de figuras controversas, noutros casos a passagem do tempo pode ter o efeito contrário. É o que se passa com Afonso Costa. Meneses não procede aqui a um ajuste de contas póstumo, nem dá demasiado crédito às campanhas negativas que ajudaram a construir a «lenda negra» do líder democrático. Mas a sua excelente discussão de algumas das opções políticas fundamentais de Costa não deixa margem para uma qualquer reabilitação da sua actuação política. Ele emerge destas páginas como um tribuno de excepção, um virtuoso da manobra partidária, mas, simultaneamente, um político incapaz de construir o tipo de consensos e compromissos sem os quais nenhum projecto de fôlego pode singrar. Em apenas sessenta páginas, Meneses consegue contextualizar, de forma admiravelmente concisa, a ascensão e o apogeu político de Afonso Costa no Portugal do início do século XX. Baseando-se em fontes de arquivo pouco exploradas (a sua correspondência familiar, por exemplo), devolve-nos o retrato de um tacticista consumado, persistente e combativo como poucos, mas incrivelmente egocêntrico e, sobretudo, incapaz de aprender com os seus erros.

Figura de proa dos primeiros governos da República, Costa deixou o seu nome associado a alguma da legislação mais polémica do regime, como os decretos anticlericais de 1910 e a célebre Lei de Separação da Igreja e do Estado de 1911. A fuga para a frente era o seu modo de operação natural. Perante as adversidades, parecia acreditar que apenas subindo a parada se daria a indispensável separação de águas, a definição clarificadora de «amigos e inimigos» (havia qualquer coisa de schmittiano na sua maneira de actuar!). A sua aposta na participação portuguesa na guerra europeia continua a desafiar qualquer tentativa de explicação baseada em critérios de racionalidade, sobretudo se tivermos em conta que em 1916 eram já patentes os efeitos calamitosos do conflito nos vários países beligerantes. As circunstâncias dramáticas em que foi afastado do poder em Dezembro de 1917, na sequência do golpe sidonista, não o motivaram a empreender qualquer espécie de exame introspectivo. Uma vez restaurado o domínio dos democráticos, Costa voltou igual a si próprio – voluntarioso, aguerrido e autocentrado. Como Meneses sugere, a liderança da delegação portuguesa à Conferência de Paz oferecia-lhe uma oportunidade única para tentar um regresso triunfal à ribalta política. A máquina do Partido Democrático e o diário O Mundo davam-lhe todo o apoio que precisasse para capitalizar no plano doméstico os seus putativos êxitos em Paris. Mas a sua tarefa estava muito longe de ser fácil, por mais hábeis que os seus correligionários na imprensa fossem a manipular as expectativas junto da opinião pública portuguesa.

Como principal rosto da estratégia intervencionista, Costa teria de demonstrar que os terríveis sofrimentos e privações a que o País fora sujeito desde 1916 poderiam, de alguma forma, ser compensados pelos dividendos da paz. Ora, isso só poderia ser alcançado colocando mais alta a fasquia dos objectivos nacionais em Paris. Em vez de delinear prioridades, optou por jogar em várias frentes, quase sempre com pretensões exorbitantes. Embora tenha apreendido a importância da sugestão que os britânicos ofereceram a Portugal, no sentido de adoptar um figurino de governação imperial mais condizente com as expectativas criadas face à «missão civilizadora» das potências europeias (e daí o seu empenho na aprovação urgente do regime dos altos-comissários para Angola e Moçambique), envolveu-se numa luta inglória por um mandato sobre uma das ex-colónias africanas da Alemanha. Com uma reputação péssima como administrador colonial, uma campanha militar desastrosa em Moçambique, e sem quaisquer argumentos plausíveis para reclamar uma parte da «pele do urso», Portugal pôs-se a jeito para uma nova ronda de comentários cáusticos. No fim, Costa teve de se contentar com a restituição de Quionga que, com espantosa desfaçatez, a imprensa democrática tratou de celebrar como uma assinalável vitória. Outros reveses foram‑se sucedendo – a tentativa de suscitar a questão de Olivença, os magros ganhos na distribuição de algum material de guerra alemão, o chumbo a uma participação portuguesa na força de ocupação do Sarre e, sobretudo, a não eleição para o Conselho Executivo da SDN (porventura a derrota mais amarga de Costa). Houve um esforço para escamotear alguns destes dissabores e transformar a neutralização de certas ameaças em vitórias diplomáticas (as ambições sul-africanas sobre Lourenço Marques, por exemplo, foram apresentadas pelo líder democrático como «um terrível perigo, que por si só justificaria a nossa participação na guerra», p. 96), mas um político experiente como Costa sabia que não seria com esses argumentos que a sua estrela poderia recuperar algum brilho.

Em virtude da dramática situação financeira do País, a sua grande aposta passou a incidir na obtenção de reparações significativas junto da Alemanha. A percentagem que conseguiu garantir no final (0,75 por cento do total das indemnizações alemãs) foi, justamente, apresentada como a coroa de glória da actuação portuguesa em Paris. E, de facto, é difícil não reconhecer nessa manobra o talento de um grande advogado, que Costa indiscutivelmente era. Simplesmente, como a investigação de Meneses demonstra, até essa vitória se revestiria de um carácter eminentemente pírrico, na sequência das atribulações que marcaram os pagamentos das indemnizações impostas à Alemanha de Weimar. Por conseguinte, a sinuosa aplicação do Tratado de Versalhes acabou por negar a Costa o ensejo de regressar à política nacional pela porta grande (desejo que tendeu a atenuar-se após a «Noite Sangrenta» de 1921 e uma série de trapalhadas financeiras em que, inadvertidamente, se viu envolvido). A Némesis do regime que ajudou a fundar chegaria alguns anos mais tarde, sob a forma de um pronunciamento militar onde, ironicamente, se viria a destacar um dos comandantes do CEP – a grande aposta política de Afonso Costa.

 

Notas

1 Cf. FERREIRA, José Medeiros – Portugal na Conferência da Paz. Paris 1919. Lisboa: Quetzal, 1992.        [ Links ]