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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.28 Lisboa dez. 2010

 

A política energética no contexto das dinâmicas globais

 

João Nuno Mendes

Director de Inovação, Desenvolvimento de Negócios e Sustentabilidade da Galp Energia. Entre 2002 e 2007 foi Chief Financial Officer (CFO) das empresas do sector da hotelaria e imobiliário do Grupo Amorim. Foi secretário de Estado do Planeamento e assessor económico no gabinete do primeiro-ministro. Exerceu ainda funções de docência no Instituto Superior de Economia e Gestão e de auditoria e consultoria no sector financeiro na empresa Arthur Andersen.

 

RESUMO

O Estado português aprovou recentemente a Estratégia Nacional para a Energia e o Plano Nacional de Acção para as Energias Renováveis com o horizonte do ano 2020, dispondo desde 2008 de um Plano Nacional de Acção para a Eficiência Energética. Actualmente, é reconhecido que a coordenação internacional das políticas energéticas entre os diferentes países é decisiva para se conseguir combater eficazmente a ameaça das alterações climáticas, correspondendo às legítimas preocupações ambientais das sociedades. Partindo deste pressuposto, o artigo debate as estratégias energéticas de Portugal no quadro das interdependências económicas globais.

Palavras-chave: Portugal, política energética, recursos energéticos, alterações climáticas

 

The energy policy in the global dynamics scenario

ABSTRACT

Portugal has recently approved the National Energy Strategy and the National Action Plan over Renewable Energies, enjoying since 2008 of a National Action Plan on Energy Efficiency. Nowadays it is recognized that the international coordination of the energy policies among the countries is crucial to fight climate changes in line with the environmental concerns of societies. In this way, the article discusses the Portuguese energy strategies in the framework of global economic interdependencies.

Keywords: Portugal, energy policy, energy resources, climate changes

 

 

Os objectivos da política energética

A política energética deverá procurar reflectir o equilíbrio entre um conjunto de objectivos diversos, tais como:

•  A segurança de abastecimento energético.

•  A minimização dos impactos ambientais associados e o combate às alterações climáticas.

•  A razoabilidade dos custos energéticos suportados pelo tecido económico e social. • o aproveitamento dos recursos energéticos endógenos.

•  A promoção da utilização de energias renováveis.

•  A obtenção de um padrão de eficiência energética crescente da economia.

•  A participação económica dos agentes económicos nacionais nas indústrias e tecnologias que fazem parte da cadeia de valor internacional do sector energético.

Contudo, a estratégia de realização destes objectivos não poderá ser perspectivada numa base estritamente nacional, exigindo quer uma visão internacional que considere as dinâmicas da oferta e da procura, nomeadamente de recursos energéticos fósseis, quer uma visão sobre o desenvolvimento tecnológico no sector energético, o qual se tem revelado extraordinário.

É actualmente reconhecido que a coordenação internacional das políticas energéticas entre os diferentes países é decisiva para se conseguir combater eficazmente a ameaça das alterações climáticas, correspondendo desta forma às legítimas preocupações ambientais das nossas sociedades.

 

Algumas tendências de fundo e as suas consequências sobre a política energética

Neste contexto, salientem-se algumas tendências de fundo, que deverão ter implicações importantes sobre a formulação das políticas energéticas; sem a pretensão de as enumerar exaustivamente podemos assinalar algumas. De acordo com a agência internacional de energia (AIE)1, os combustíveis fósseis deverão representar no ano de 2030 entre 80 e 68 por cento da procura mundial de energia primária, consoante consideremos o «cenário de referência»2 ou o designado «cenário 450»3, respectivamente. Se atendermos a que a referida importância se situa actualmente em 81 por cento, concluiremos que os combustíveis fósseis continuarão a ter uma importância primordial na cena energética mundial nas próximas décadas, sendo pois incontornáveis na definição de uma estratégia energética nacional.

O fortíssimo crescimento económico que se regista de forma sustentada nos designados países emergentes e a tendência de crescimento populacional no planeta representam uma pressão muito significativa, do lado da procura, sobre os recursos energéticos, em particular sobre o petróleo e o gás natural, o que se reflecte numa expectativa de crescimento dos preços no médio e longo prazo. Apresentam-se neste contexto dois exemplos significativos. O primeiro, no sector dos transportes. As vendas de veículos automóveis ligeiros de passageiros no continente asiático deverão atingir 52 milhões de unidades no ano de 2025, multiplicando por três o valor registado em 2005, e ultrapassando em 2025 o conjunto formado pela Europa e pela América do Norte. Esta dinâmica assume implicações muito substanciais sobre a dimensão do sistema de transportes mundial, o qual se encontra ancorado em termos energéticos no petróleo.

O segundo é relativo ao domínio da electrificação. As próximas décadas assistirão a um grande esforço de aumento da cobertura nos países emergentes, atendendo a que ainda existem cerca de 1,5 mil milhões de pessoas no planeta sem acesso a electricidade no ano de 2008. O investimento de electrificação potenciará o consumo de gás natural e carvão, representando ainda oportunidades de desenvolvimento para os sectores das energias renováveis e da energia nuclear, em termos globais.

Os processos de desenvolvimento tecnológico deverão desempenhar um papel de grande importância na configuração do sistema energético futuro e as políticas energéticas deverão potenciá-lo. Uma das características dos tempos que vivemos é precisamente a aceleração dos ciclos de desenvolvimento tecnológico. De seguida, apresentam-se alguns exemplos que ilustram a importância da tecnologia para o sector energético.

•  A área da eficiência energética constitui hoje um dos pilares das políticas energéticas dos países, consubstanciado, por exemplo, em exigências legais dirigidas aos diferentes sectores – dos edifícios, das indústrias e dos transportes. Há especialistas que consideram que a concretização da eficiência energética em toda a sua plenitude e transversalmente a todos os sectores de actividade permitiria reduzir em mais de metade o volume de emissões de CO2 que seria necessário anular para garantir um combate eficaz às alterações climáticas. Repare-se que têm nascido empresas no mercado exclusivamente vocacionadas para conceber soluções de eficiência energética destinadas ao tecido empresarial, cujo papel e importância já foram expressamente reconhecidos pela Comissão Europeia, e que são conhecidas por «ESCO» (Energy Service Company).

•  Ao nível do sector eléctrico, cumpre destacar a importância crescente da componente renovável de geração eléctrica, sustentando o aparecimento de novas indústrias globais nos segmentos eólico e solar com padrões de produtividade cada vez mais competitivos. a sua afirmação no panorama energético mundial como indústrias globais em crescimento acelerado traduz o perfil de rápida penetração conseguido no espaço dos países da OCDE e nalguns dos próprios países emergentes. Por outro lado, o desenvolvimento acelerado da indústria dos sistemas de informação e comunicações potencia a introdução de novos patamares de «inteligência» na gestão da rede eléctrica (o conceito de Smart Grids), e que simultaneamente poderão permitir um novo nível de serviço aos clientes individuais e empresariais. O objectivo de médio e longo prazo das políticas europeias é pois o de assegurar a progressiva «descarbonização» do sector eléctrico, estando já prevista a realização de um número significativo de projectos-piloto de «CCS – Carbon Capture and Storage».

•  A produção de biocombustíveis destinada ao sector dos transportes representará já no ano de 2020 uma percentagem de incorporação de 10 por cento na União Europeia (UE), ao passo que a investigação e desenvolvimento em curso na área dos biocombustíveis de segunda geração e nos processos tecnológicos conhecidos por «Biomass-to-liquid» representam a próxima «fronteira de desenvolvimento».

•  No sector dos transportes, constata-se um claro objectivo de lançamento comercial de novas soluções tecnológicas ao longo dos próximos anos, nomeadamente – os veículos híbridos (combinam o motor convencional de combustão interna e o motor eléctrico), os veículos eléctricos com bateria, os veículos híbridos com plug-in (ou seja, que acrescentam à fórmula híbrida a possibilidade de carregamento da bateria através da ligação à rede eléctrica), os veículos eléctricos a pilha de combustível (que utilizam o hidrogénio) –, sendo ainda de sublinhar o previsível aumento substancial da eficiência energética dos motores convencionais (cujo padrão de eficiência neste último caso deverá aumentar 30 por cento até 2020 de acordo com alguns especialistas). Neste contexto, recorde-se que na UE foi assumido um objectivo muito ambicioso de emissões de CO2 de 95 g/km para o ano de 2020 no que respeita aos veículos ligeiros de passageiros vendidos, que compara com um valor de 140 g/km no ano de 2009. Sublinhe-se que nalguns fóruns se assiste a uma aproximação entre as empresas do sector petrolífero, do sector automóvel, do sector dos gases industriais e ainda do sector eléctrico para reflectir sobre o futuro da mobilidade e as suas implicações energéticas e em termos de sustentabilidade.

•  No sector da exploração e produção de petróleo, a ultrapassagem de sucessivas fronteiras do conhecimento e da tecnologia permitiu que a produção petrolífera offshore represente actualmente cerca de um terço da produção mundial, projectando-se que num prazo relativamente curto possa atingir metade dessa produção total (a operação de blocos offshore não ultrapassava a profundidade no mar de mil metros em 1994, tendo-se já praticamente atingido os três mil metros). Esta evolução reflecte e procura compensar o progressivo declínio da produção dos grandes campos de produção onshore. Por seu turno, também os valores crescentes dos designados «factores de recuperação» de hidrocarbonetos conseguidos nos projectos em desenvolvimento, reflectem a acentuada evolução tecnológica que vivemos, ao passo que a experiência deste sector poderá ainda revelar-se de grande importância para o sucesso do «CCS – Carbon Capture and Storage».

•   O sector da exploração e produção de gás demonstra claramente que as grandes mudanças também podem ocorrer rapidamente no sector energético, como revela o recente boom registado no desenvolvimento do shale-gas, com impacto no panorama energético global, em particular nos Estados Unidos, em virtude dos avanços tecnológicos registados na fracturação hidráulica e na perfuração horizontal, e que está a ser seguido com grande interesse em outras regiões do mundo. A própria capacidade de liquefacção de gás natural tem conhecido aumentos significativos, contribuindo para a efectiva «globalização» do mercado de gás natural. Recordemos que nas projecções conhecidas da agência internacional de energia, no âmbito do «cenário 450», o gás natural é o combustível fóssil que apresenta o maior potencial de crescimento, atendendo a que é o mais «limpo» dos combustíveis fósseis.

 

Portugal: os objectivos energéticos estabelecidos para o horizonte de 2020

O Estado português aprovou recentemente uma estratégia nacional para a energia e ainda um Plano nacional de acção para as energias renováveis com o horizonte do ano 2020, dispondo-se já de um Plano nacional de acção para a eficiência energética desde o ano de 2008. Alguns dos objectivos e acções fundamentais estabelecidos pelo estado português para o ano de 2020 são os seguintes:

•  Atingir 31 por cento do consumo final bruto de energia e 60 por cento da electricidade produzida, com origem em fontes renováveis, nomeadamente «hídrica», «eólica» e «solar» (que compara com valores de partida de 20 e 40 por cento, respectivamente).

•  Atingir 10 por cento do consumo de energia no sector dos transportes rodoviários com origem em fontes renováveis.

•  Reduzir a dependência energética do exterior de combustíveis fósseis e reduzir em 25 por cento o saldo importador energético.

•  Promover os clusters industriais associados aos sectores das energias renováveis.

•  Reduzir as emissões de gases com efeito de estufa.

•  Aumentar a eficiência energética, através da concretização do Plano nacional de acção para a eficiência energética.

•  Estimular a produção descentralizada de energia, nomeadamente através de tecnologias de co-geração e de aproveitamento de fontes de energia renováveis.

•  Apoiar o aproveitamento energético da biomassa.

•  Promover a adopção do veículo eléctrico, nomeadamente através da criação de um modelo nacional e integrado para o seu desenvolvimento.

Trata-se de metas ambiciosas e que representam os objectivos assumidos pelo nosso país no contexto das políticas europeias de combate às alterações climáticas.

 

O mundo da energia potencia as interdependências globais

O mundo da energia, com as suas características, tendências e desafios, potencia, de facto, o aprofundamento das interdependências económicas entre países, entre empresas e entre blocos económicos. Apresentamos de seguida algumas das razões. Os recursos energéticos fósseis encontram-se desigualmente distribuídos do ponto de vista geográfico no nosso planeta, sendo esses recursos de importância primordial no sistema energético das próximas décadas (a título de exemplo, a Agência Internacional de Energia prevê que, em qualquer cenário, as receitas de exportação do petróleo dos países da OPEP aumentem pelo menos quatro vezes no período 2008-2030, por comparação com o período de 1985-2007, evidenciando uma parte significativa destes países desafios importantes de diversificação de actividades na sua economia nas próximas décadas). Por seu turno, a exploração e desenvolvimento dos referidos recursos exige quer as melhores capacidades de engenharia à escala mundial, recorrendo-se a campos muito diferentes do saber científico e tecnológico, quer níveis de investimento extraordinário, exigindo também a participação das multinacionais do sector e do sistema financeiro global.

O combate eficaz ao processo de alterações climáticas exige a coordenação internacional das políticas energéticas dos diferentes países, não apenas no âmbito dos países da OCDE, mas envolvendo necessariamente os países emergentes. A cooperação internacional e a compreensão mútua dos obstáculos sentidos são decisivas, na medida em que as imposições legais de redução de emissões têm consequências importantes na reestruturação de sectores de actividade, as quais terão de ser ponderadas. Os sectores energéticos dos países emergentes representam mercados de grande dimensão e com elevadas taxas de crescimento para as indústrias de equipamentos e tecnologias, seja no desenvolvimento da utilização de energias renováveis seja no desenvolvimento e melhoria do desempenho dos sectores da energia que utilizam fontes de energia fósseis (como é o caso do sector eléctrico, cujos níveis de rendimento têm aumentado significativamente em virtude dos avanços tecnológicos).

A dimensão «eficiência energética» tornou-se uma componente intrínseca da avaliação da qualidade de um produto ou de um equipamento, quer pela necessidade de minimização do respectivo impacto ambiental, quer pela consciência de que o custo energético da sua utilização ao longo da vida útil é muito relevante. Ou seja, a dimensão «eficiência energética» constitui-se cada vez mais como um factor de diferenciação competitiva nos mercados – veja-se, a título de exemplo, a publicidade aos automóveis (fazendo uso dos níveis de consumo e de emissões por quilómetro percorrido), dos computadores, dos equipamentos de utilização em casa (evidenciando a sua classificação energética de acordo com sistemas de classificação independentes), entre muitos outros casos que seria possível citar. Esta questão é transversal aos mercados dos consumidores individuais e das empresas, abrangendo o sector dos transportes e as vertentes eléctrica, de aquecimento e de arrefecimento. Um grande número de empresas, que representam uma massa económica muito relevante, afirma pois os seus produtos e equipamentos nos mercados globais através de uma vantagem competitiva assente em tecnologias mais avançadas que permitem a poupança energética.

Se é verdade que o mix energético dos países da OCDE e dos países emergentes será previsivelmente muito diferente nas próximas décadas em virtude de um estado médio de desenvolvimento económico distinto, a verdade é que ao nível global se assiste a uma progressiva convergência dos estilos de vida e a uma grande concentração populacional nas grandes cidades, quer nos países da OCDE, quer nos países emergentes. Esta convergência no processo de desenvolvimento deverá traduzir-se numa aproximação de soluções para os problemas energéticos e ambientais sentidos.

Estes exemplos ilustram oportunidades, e outros poderiam ser citados, para afirmar laços de cooperação económica e política e para reforçar as relações de comércio externo entre países e entre blocos económicos. A constituição de interdependências económicas, susceptíveis de criar valor para todas as partes envolvidas, a partir das necessidades sentidas no sector energético, é um desafio à estratégia e à inteligência económica das empresas e dos estados.

 

Notas

1 As referências efectuadas ao longo do texto à Agência Internacional de Energia reportam ao documento «World Energy Outlook 2009», disponível em: http://www.worldenergyoutlook.org/docs/weo2010/Weo2010_es_english.pdf

2 O «cenário de referência» representa a designada «baseline picture» relativamente à evolução do sistema energético global num contexto de políticas energéticas inalteradas face à situação actual. cf. Agência Internacional de Energia – World energy outlook 2009. Disponível em: http://www.worldenergyoutlook.org/docs/weo2010/Weo2010_es_english.pdf        [ Links ]

3 O «cenário 450» representa um cenário em que, fruto de uma actuação internacional concertada em termos de alteração das políticas energéticas, se conseguiria a limitação de concentração de CO2 em níveis compatíveis com a não ocorrência de alterações climáticas Agência Internacional de Energia – World Energy Outlook 2009. Disponível em: http://www.worldenergyou-tlook.org/docs/weo2010/Weo2010_es_english.pdf