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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.28 Lisboa dez. 2010

 

Portugal na União Europeia

 

João Marques de Almeida*

Integra, actualmente, a Equipa de Outreach do Bureau of European Policy Advisers (BEPA) da Comissão Europeia, sendo responsável pelo Grupo de Global Dialogue. Foi director do IDN entre 2004 e 2006, antes de se juntar ao gabinete do presidente da Comissão Europeia em Outubro de 2006. Foi professor de Relações Internacionais na Universidade Lusíada em Lisboa e na Universidade Católica Portuguesa. É doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics (2000) e mestre pela Universidade de Kent (1993). É membro do Conselho Científico do IPRI – UNL.

 

RESUMO

O artigo começa por discutir quais devem ser os pilares da política europeia de Portugal e, numa segunda parte, elabora sobre o modo como a União Europeia deverá servir de instrumento para ajudar a prosseguir outros objectivos centrais da política externa portuguesa. Os objectivos do artigo são, por um lado, compreender de que modo a crise financeira e económica da zona euro afecta a construção europeia e a política portuguesa na União e, por outro, quais serão as implicações geopolíticas e diplomáticas da crise económica da zona euro.

Palavras-chave: Portugal, União Europeia, política externa portuguesa, euro

 

Portugal in the European Union

ABSTRACT

This article starts by discussing the pillars of the European policy of Portugal, and then explores the way in which the EU might become an instrument of support in the implementation of the main Portuguese foreign policy goals. On the one hand, the article seeks to understand how the Eurozone financial and economic crisis influences the European construction and the Portuguese policy in the Union, and on the other hand, it looks at the geopolitical and diplomatic implications of the crisis in the Eurozone.

Keywords: Portugal, European Union, Portuguese foreign policy, Euro

 

 

Quando o novo Governo britânico tomou posse, um dos ministros encontrou uma pequena nota do seu predecessor: «receio dizer-lhe que não há dinheiro». Este exemplo brutal simboliza muito bem o estado das finanças públicas em muitos países europeus, incluindo Portugal. Levanta igualmente uma questão séria: de que modo a crise financeira e económica da zona euro afecta a construção europeia e a política portuguesa na União?

A ideia de que vamos atravessar um período passageiro de austeridade e depois tudo voltará ao «normal» não passa de uma ilusão. Por um lado, a governação económica da União, e em especial da zona euro, irá conhecer reformas impossíveis de prever com exactidão. Por outro lado, a crise estrutural e insustentável das finanças públicas exige profundas reformas no funcionamento da maioria dos estados europeus. As funções do estado, incluindo a política externa e a defesa, serão afectadas. Quais serão as implicações geopolíticas e diplomáticas da crise económica da zona euro? É neste contexto que devemos discutir a política europeia de Portugal.

Explicado o contexto, convém referir três pressupostos deste artigo. Em primeiro lugar, quando há menos dinheiro, exige-se uma estratégia melhor. Depois, em momentos de ruptura, devemos ser ousados no pensamento e nas propostas. Por fim, adoptando as políticas correctas, a integração europeia pode ajudar a lidar com as dificuldades impostas pela austeridade.

Na primeira parte, o artigo discute quais devem ser os pilares da política europeia de Portugal. Na segunda, elabora sobre o modo como a União Europeia (UE) deverá servir de instrumento para ajudar a prosseguir outros objectivos centrais da política externa portuguesa.

 

Portugal na União

GOVERNAÇÃO ECONÓMICA

Como resultado da crise financeira e económica de 2008-2010, a zona euro atravessa um momento de redefinição. No cenário mais provável, esta reformulação atingirá as regras da União Monetária, sem tocar na composição da zona euro. O objectivo de todos (dos estados-membros e das instituições europeias) é a preservação dos actuais membros na zona euro. No entanto, o realismo obriga-nos a reconhecer que a situação é incerta. Esta incerteza tem dado origem a especulações, mesmo entre responsáveis políticos. Por isso mesmo, convém fazer algumas clarificações.

É possível identificar três dimensões no euro: uma dimensão financeira, uma dimensão económica e uma dimensão política. A dimensão financeira tem dominado a maioria das discussões, o que aliás não deve surpreender. A crise iniciou-se com os problemas do sistema financeiro global e agravou-se devido à situação das finanças públicas de alguns estados-membros. Todavia, principalmente quando se começa a especular sobre os cenários mais radicais (como, por exemplo, uma hipotética divisão da zona euro, entre um «euro do norte» e um «euro do sul»), é importante abordar as outras dimensões do euro. Economicamente, a construção e o aprofundamento da zona euro foi benéfica para todos os países e não apenas para alguns (e para uns mais do que para outros, basta comparar os aumentos das exportações após o início do euro). Quando discutimos a dimensão económica do euro, afastamo-nos inevitavelmente do discurso que sublinha a divisão entre estados cumpridores e estados gastadores, da atribuição exclusiva da culpa da crise do euro a apenas alguns dos membros e, sobretudo, de uma suposta generosidade de alguns países mais ricos quando abandonaram as suas moedas nacionais. Principalmente, porque foram precisamente estes que mais ganharam economicamente com a criação do euro. Talvez valesse a pena referir este ponto com mais frequência.

A discussão das vantagens económicas da construção do euro tem ainda outra virtude. Mostra como o euro beneficiou, em geral, todos os seus membros, sendo assim do interesse de todos mantê-lo. Está ainda de acordo com um dos pressupostos fundamentais da integração europeia: o respeito pelos princípios da unidade e da igualdade das políticas centrais da construção europeia. A divisão do euro em duas categorias constituiria uma violação destes princípios.

Pode-se argumentar que, após as profundas alterações das condições económicas globais e europeias desde a criação do euro, alguns dos estados-membros poderão já não ter interesses económicos suficientemente fortes para se empenharem na manutenção da actual configuração da zona euro. A resposta a este argumento leva-nos à discussão da dimensão política do euro. O euro é uma construção central do projecto da integração europeia. Por isso mesmo, todos os estados-membros da UE, a não ser que tenham explicitamente optado por não aderir, têm a obrigação de se preparar para integrar o euro. Ou seja, o pressuposto é de que o euro constitui um mecanismo de integração e não um instrumento de exclusão.

A alteração deste pressuposto teria consequências da maior gravidade para a construção europeia. Levaria a divisões políticas que a prazo poderiam ser insustentáveis para a UE. Num plano mais concreto, podemos levantar duas questões que mostram as complicações políticas que adviriam de uma divisão da zona euro. Em primeiro lugar, de que modo isso afectaria a relação entre a Alemanha e a França, central para a política europeia das últimas cinco décadas? Em segundo lugar, tendo em conta a dimensão política de uma divisão do euro, quem consegue garantir que os hipotéticos membros do «euro do norte» partilhassem os mesmos interesses e objectivos políticos? A divisão do euro não é uma questão financeira; é uma questão política. E contas públicas saudáveis, apesar da sua importância, não são suficientes para construir um projecto político comum.

A curto prazo, os esforços de qualquer governo português devem concentrar-se em evitar a fragmentação da zona euro. No plano interno, fazer todas as reformas necessárias, de modo a adiar (para sempre) uma situação em que a decisão teria de ser a reformulação da composição da União Monetária para preservar o próprio euro. No plano externo, deve concertar-se com os estados-membros que tudo farão para evitar a divisão ou a fragmentação do euro.

Os próximos anos da política da UE serão, em grande medida, dominados por dossiês económicos. Em primeiro lugar, de acordo com o que foi decidido no Conselho Europeu de Outubro, haverá uma «revisão limitada» do Tratado de Lisboa para se criar um mecanismo permanente de resposta a futuras crises que assegure a estabilidade financeira da zona euro. Ainda segundo as conclusões do Conselho Europeu, a revisão do tratado deverá concluir-se em 2013. Deixando agora de parte eventuais complicações que poderão ocorrer durante os processos nacionais de ratificação, Portugal terá de prestar atenção a eventuais mecanismos sancionatórios, quer quanto à sua natureza, quer no que se refere ao processo de decisão e de execução.

A questão de medidas sancionatórias surge nas conclusões do Conselho Europeu de outubro1. Desde a data do Conselho Europeu, e sobretudo com o facto de a ajuda financeira à Irlanda não ter acalmado os mercados, começa a tornar-se claro que o problema não está apenas nas dívidas soberanas de alguns estados-membros, mas reside igualmente nas deficiências estruturais da zona euro. Os mercados perceberam que o seu sistema de governação está incompleto. Neste sentido, tudo indica que as ajudas bilaterais serão insuficientes para resolver o problema de fundo. É provável que a Europa tenha chegado a uma situação em que só através de reformas na governação da zona euro se consiga acalmar definitivamente os mercados. Alguns responsáveis políticos europeus defendem a criação de emissões de dívida conjunta na zona euro, os chamados «eurobonds». Outros rejeitam, considerando que a sua adopção retiraria a pressão necessária para os países fazerem as necessárias consolidações orçamentais. No entanto, poderá ser necessário um pacote global para se salvar o euro. Os que rejeitam os «eurobonds» poderão aceitar uma versão moderada em troca de sanções que imponham políticas de equilíbrio orçamental. E aqueles que olham para os «eurobonds» como a solução para a crise do euro terão de aceitar medidas sancionatórias. Claro que a troca «eurobonds por sanções» seria apenas um acordo geral. A definição concreta, quer dos «eurobonds» quer das sanções, teria que ser objecto de uma revisão profunda do tratado de Lisboa. Ninguém o deseja, mas não pode não haver alternativa (ou a alternativa ser demasiado má).

Uma grande revisão dos mecanismos de governação da zona euro (na prática a criação de uma União fiscal) acabaria por se ligar à revisão das perspectivas financeiras, outra das questões-chave para o futuro imediato. Nomeadamente, o tema dos recursos próprios da União, introduzido pela Comissão Europeia, dominará grande parte do debate. Ou seja, ao tema da União fiscal (para completar a União Monetária) juntar-se-ia a questão da criação de uma verdadeira política orçamental europeia. Por fim, o último lado do triângulo seria o reforço das políticas económicas europeias, com base no documento «Europa 2020». Seria o caminho para a convergência de um modelo económico europeu, assente numa maior competitividade, um aumento do crescimento económico, na redução do sector público e na diminuição do desemprego estrutural. Provavelmente, a Europa chegou a uma situação em que, para salvar o euro, terá de fazer reformas profundas. Neste contexto, o Governo e a diplomacia portugueses terão de se preparar para as futuras negociações. Em grande medida, o futuro da economia portuguesa irá decidir-se na Europa. Ou seja, mais do que nunca, a política europeia será a continuação da governação de Portugal. Este ponto nunca poderá ser ignorado pelos primeiros-ministros portugueses.

 

PORTUGAL E AS INSTITUIÇÕES EUROPEIAS

Nas instituições europeias define-se quase tudo o que conta na política da União. Incluo no termo «instituições», as relações bilaterais entre os estados-membros. Afinal de contas, os estados são as instituições mais antigas da União. A Comissão Europeia é um aliado institucional natural. Desde logo, porque está no seu código genético a defesa da igualdade entre os estados-membros e, tradicionalmente, tornou-se uma instituição em que os países de média (como Portugal) e pequena dimensão confiam. Aliás, a Comissão tem uma natureza política curiosa. Os comissários não representam os seus países, mas é a única instituição onde as sensibilidades dos estados-membros estão presentes de um modo igual: um comissário por cada estado. No Conselho, o peso dos votos reflecte as diferenças das dimensões demográficas dos estados. No Parlamento Europeu, apesar da organização seguir critérios partidários, e não nacionais, as delegações nacionais reflectem também as desigualdades populacionais dos diferentes países. Ao nível político, Portugal será sempre mais igual na Comissão do que no conselho ou no Parlamento.

Após a entrada em vigor do tratado de Lisboa, há uma nova instituição2 onde Portugal está representado em termos de igualdade em relação a todos os outros estados-membros: o Conselho Europeu. Cada vez mais, muitas das decisões mais importantes são tomadas no Conselho Europeu (ou pelo menos preparadas e acordadas). Está a tornar--se, progressivamente, uma espécie de «senado», no sentido romano do termo (dos tempos da república e não do império). O chefe do Governo português deve olhar para as reuniões dos conselhos europeus como um dos momentos centrais da sua actividade política. São decisivos para defender os interesses nacionais. As suas agendas devem ser seguidas ao pormenor pelos diplomatas portugueses responsáveis pelos assuntos europeus, quer em Lisboa como em Bruxelas (e já são, verdade seja dita e o mérito reconhecido). Os chefes de governo devem preparar-se para as cimeiras mais importantes com o cuidado e o esforço com que se preparam para os debates das campanhas eleitorais (o seu sucesso ou insucesso político pode depender do que é decidido nos conselhos europeus). O prestígio de um líder entre os seus pares do Conselho Europeu constitui um bem político de grande valor. É óbvio que o peso do país conta muito, mas não é tudo. O exemplo do senado romano ajuda-nos. O Conselho Europeu é um corpo político de 29 líderes, muitas vezes com problemas complicados para resolver, e a nacionalidade não define a qualidade e a relevância das contribuições. um primeiro-ministro que saiba articular o interesse nacional com o interesse europeu, que seja rápido a perceber o sentido dos compromissos, que tenha prestígio entre os seus pares, independentemente da sua nacionalidade, marcará as decisões do Conselho Europeu. Para isso, há quatro condições essenciais: interessar-se genuinamente pela Europa, perceber devidamente o significado da UE para Portugal, não se sentir intimidado, e estar disposto a investir nas relações bilaterais com os seus colegas.

As relações com o presidente do Conselho Europeu devem ser cultivadas de um modo permanente, com encontros bilaterais e com convites para se deslocar a Lisboa. é ainda fundamental aprofundar as relações políticas com os outros líderes do Conselho Europeu. Naturalmente, uns são mais importantes que outros. Mas é necessário uma sensibilidade e um interesse políticos apurados para perceber não apenas quem são os líderes mais importantes, mas a importância que cada um tem nos diferentes temas. Com 27 estados-membros, as relações bilaterais não só se tornam mais importantes, como oferecem mais oportunidades. Não há regras estabelecidas para as relações bilaterais, e as políticas a seguir devem ser definidas de acordo com as circunstâncias e os interesses de cada momento. O pragmatismo político é tão importante como alianças históricas, vizinhanças territoriais ou o poder dos estados.

Há, no entanto, um ponto, no caso das relações bilaterais, que gostaria de sublinhar: a importância dos países da Europa Central e de Leste. Por vezes, passa a impressão que a «Lisboa política» continua a agir na União, como se ainda só houvesse 12 estados-membros (para não falar das alturas em que se age na base do «Espanha, Espanha, Espanha»). Há mais 15, e muitos deles partilham interesses com Portugal. Por exemplo, um país como a Polónia é crucial na política da União. Goza de uma assinalável influência política, de um dos maiores crescimentos económicos entre os estados-membros e de interesses semelhantes aos portugueses, quer nas matérias orçamentais, como em políticas como a da coesão e mesmo em questões externas, como por exemplo a relação transatlântica. E pode dizer-se o mesmo de outros países da Europa Central. São, além disso, economias em crescimento e mercados com enorme potencial para as empresas portuguesas. As economias emergentes não estão todas fora da Europa, na Ásia e na América Latina. Também estão na Europa, e quase todas na UE.

Por fim, o Parlamento Europeu tem aumentado a sua influência na política e nos processos legislativos da União, sobretudo após a ratificação do tratado de Lisboa. Na Europa «pós-Lisboa», o Parlamento Europeu é um dos co-legisladores, juntamente com o conselho. Neste novo contexto, as comissões parlamentares aumentam bastante a sua influência, especialmente no processo legislativo europeu. Estas alterações exigem uma estratégia nacional no Parlamento Europeu. Os deputados não representam directamente os seus países, estando de resto integrados em grupos partidários. Representam, porém, cidadãos portugueses, devendo assim defender os seus interesses. A grande maioria dos deputados portugueses pertence aos partidos do chamado arco da governação, os quais partilham visões comuns em relação a muitas matérias de interesse nacional na Europa. Uma estratégia nacional no Parlamento Europeu assentará em três pontos. O reforço da colaboração entre deputados portugueses de famílias políticas diferentes em matérias de interesse nacional vital, respeitando naturalmente as diferenças ideológicas e políticas entre eles, não só inevitáveis como saudáveis. Em segundo lugar, uma cooperação activa entre os deputados e os diplomatas portugueses em Bruxelas (o que já acontece). Em terceiro lugar, para a estratégia ter sucesso, seria salutar que os partidos privilegiassem a competência e uma certa vocação europeia na composição das listas eleitorais (o que já começou a acontecer, em todos os partidos, como mostra o desempenho de muitos dos actuais deputados portugueses). Ainda como resultado das reformas introduzidas pelo tratado de Lisboa, a Assembleia da República deve reforçar a sua participação no processo político europeu e na fiscalização das iniciativas legislativas.

 

Portugal no mundo através da União

As reformas introduzidas pelo tratado de Lisboa irão reforçar a política externa da UE. A criação do posto de alto-representante da União para a Política externa e de segurança concede mais visibilidade política, aumenta a coesão dos instrumentos de política externa, através do «chapéu» vice-presidente da Comissão, e acentua a unidade diplomática dos estados-membros, com o «chapéu» presidência do conselho das relações externas. Além disso, o tratado estabeleceu um serviço diplomático europeu, o serviço europeu de acção externa, o qual contribuirá para reforçar não só a cultura diplomática da União, como a natureza europeia das diplomacias nacionais.

O tratado de Lisboa entrou em vigor num período de profundas alterações na política mundial, com a deslocação de poder para fora da Europa (e do mundo ocidental) e com a emergência de novas potências mundiais e regionais. E devemos sublinhar os dois níveis, o global e o regional, porque as mudanças de poder vão para além da emergência de potências mundiais, que passaram a ter interesses e aspirações globais, como a china, a índia e o Brasil3. Incluem igualmente potências regionais em crescimento, cujos interesses serão cada vez mais difíceis de ignorar. Incluo a Austrália, a indonésia, a Turquia, o Egipto, a África do Sul, o México e o Canadá, entre outros, nesta categoria. e Portugal não deve ficar demasiado ofuscado pelos holofotes da «BRIComania» e deverá prestar atenção a estas potências médias, nomeadamente nas relações económicas e comerciais.

A multiplicação de novas potências mundiais e regionais, as primeiras com dimensões continentais, enfraquece em termos relativos a posição dos países europeus no equilíbrio de poder mundial. Para muitos deles, incluindo os maiores, a história dos últimos cem anos pode reduzir-se numa fórmula simples e dura: de impérios mundiais a potências médias. A integração europeia foi, desde o início, parte da resposta dos países europeus ao seu declínio estratégico. Após os sucessivos alargamentos, a UE possui hoje uma dimensão económica, tecnológica, territorial e demográfica que lhe permite competir com as outras potências de dimensões semelhantes.

A UE não tem, no entanto, a mesma coesão e unidade política e diplomática de que gozam as outras potências mundiais. Os estados unidos, a china, a Rússia, a Índia, o Japão, o Brasil são todos estados soberanos, com governos centrais fortes que comandam, com uma só voz, os instrumentos de política externa. Apesar dos progressos introduzidos pelo tratado de Lisboa, a UE é qualitativamente muito diferente. e as diferenças contam e muito. À fragmentação política, acrescenta-se as identidades diplomáticas dos estados-membros. Teoricamente, uma União de estados poderia ser constitucionalmente fragmentada, o que por si só já constituiria um problema em termos de competição estratégica com rivais mais coesos, sem que as suas partes tivessem fortes identidades nacionais. Todavia, os países europeus preservaram as suas ambições e identidades diplomáticas. As transformações na distribuição do poder global não as diminuíram. Por vezes, nota-se até o contrário. A multiplicação de actores importantes aumenta e diversifica os interesses externos dos países europeus. Há uma espécie de atracção diplomática pelas novas potências, globais e regionais, à qual as velhas capitais europeias têm uma enorme dificuldade em resistir.

Por um lado, os desafios estratégicos do mundo «pós-europeu» aumentam a importância da União. Por outro lado, as identidades nacionais dos estados-membros continuam a moldar as suas diplomacias e limitam a integração europeia na área da política externa. A isto acrescenta-se os estímulos que a nova ordem global oferece a iniciativas e estratégias unilaterais. Se é evidente que a unidade diplomática europeia absoluta não será possível a um futuro visível, é igualmente verdade que a União se tornou indispensável para o posicionamento dos seus estados-membros no mundo. O desafio que se coloca aos governos portugueses é o seguinte: de que modo a União poderá ajudar Portugal a prosseguir os seus interesses externos?

Há dois pontos essenciais para se responder satisfatoriamente a esta pergunta. Em primeiro lugar, os decisores portugueses devem ter ideias claras sobre os interesses externos do País. Em segundo lugar, devem definir e executar estratégias eficazes para tentar influenciar a política externa da União na direcção dos interesses portugueses. Vale a pena discutir, no contexto das relações externas da UE, alguns dos objectivos centrais da política externa portuguesa.

 

RELAÇÃO TRANSATLÂNTICA

No caso das relações entre a Europa e os estados unidos, há dois aspectos que devem ser sublinhados. Por um lado, as alterações nos equilíbrios de poder mundial tornam mais urgente, para os dois lados, o reforço da parceria transatlântica. A aliança entre europeus e americanos constitui uma fonte de poder para ambos. Após algumas hesitações por parte da Administração Obama durante os dois primeiros anos do seu mandato, há sinais recentes de uma mudança de rumo. A última cimeira entre a UE e os Estados Unidos, realizada em Lisboa, ficará muito provavelmente para o futuro como o momento que simboliza a mudança de atitude por parte de Washington. O Presidente Obama terá percebido não só que a UE conta nos cálculos do equilíbrio de poder global e dos interesses externos norte-americanos, como passou a ver Bruxelas, e não apenas as capitais nacionais, como um interlocutor e um parceiro político. Aliás, as três cimeiras de Lisboa, a da NATO, a da NATO-Rússia e da UE-Estados Unidos devem ser vistas como um esforço diplomático norte-americano de reaproximação aos seus aliados tradicionais e de inclusão da Rússia nas suas estratégias de alianças. Washington foi ao encontro do discurso estratégico europeu, cujos responsáveis defendiam há muito a necessidade de reforçar, simultaneamente, a relação transatlântica e a parceria com Moscovo.

Portugal tem todo o interesse em ver reforçado o relacionamento entre duas das suas principais opções em política externa, a União Europeia e a Aliança Atlântica. Nesse sentido, deve empenhar-se na aproximação entre a Europa e os Estados Unidos. Além disso, para os governos portugueses, é fundamental preservar os laços transatlânticos. Como demonstraram as divisões durante a Guerra do Iraque, conflitos diplomáticos entre europeus e norte-americanos provocam divisões no interior do sistema político português, enfraquecendo os seus consensos diplomáticos fundadores.

A participação no Conselho de Segurança nos próximos dois anos deve ser entendida como uma oportunidade para reforçar a relação transatlântica, aproveitando o facto de a Administração Obama gozar ainda de apreciável capital político na Europa e de ter enviado sinais nos últimos tempos que irá prestar mais atenção à relação transatlântica até ao fim do mandato. Portugal deve aproveitar ainda a participação no Conselho de Segurança para reforçar a sua reputação junto dos estados-membros de pequena e média dimensão. O facto de os outros países europeus do próximo biénio serem os três maiores estados-membros da União, os quais são os mais relutantes para «falarem em nome» da Europa no Conselho de Segurança, oferece a Portugal a possibilidade de ser uma «voz europeia» no Conselho de Segurança nos próximos dois anos. Seria negativo desperdiçar esta oportunidade. Portugal deve construir mecanismos políticos e diplomáticos para construir convergências com os outros estados-membros e com as instituições europeias, de modo a que quando fala seja mais do que a voz portuguesa.

 

O ATLÂNTICO SUL

Nos últimos anos, o atlântico sul tornou-se bem mais importante para as relações políticas e económicas externas de Portugal. É o resultado, em primeiro lugar, do aumento de poder e de valor estratégico da América Latina, especialmente do Brasil, e do continente africano. A América Latina é das regiões que mais crescem economicamente. O Brasil está em passo acelerado para o estatuto de potência mundial. E África, como apontam vários estudos publicados recentemente, goza de um potencial enorme de crescimento estratégico e económico, que se materializará durante as próximas décadas. As ligações históricas e culturais entre Portugal e estas regiões contribuem ainda mais para a elevação do atlântico sul a uma prioridade nacional.

Obviamente que Portugal nunca perdeu interesse pela América Latina e pela África. Mas nos últimos anos assistiu-se a um salto qualitativo, com as duas regiões a tornaram-se um interesse estratégico para Portugal. Naturalmente que Portugal terá interesses políticos e económicos noutras regiões, nomeadamente em certas regiões da Ásia, onde destacaria a china, a índia e a indonésia, não só por motivos económicos mas também por razões históricas, com Goa, Timor Leste e Macau a representarem o arco da presença portuguesa no continente asiático. No entanto, na hierarquia dos interesses nacionais, parece-me que os interesses estratégicos de Portugal se encontram nos quatro lados do «rectângulo atlântico»: a Europa, a América do Norte, a América Latina e África. Julgo que seria da máxima importância articular uma política externa atlântica capaz de maximizar os quatro lados atlânticos de modo a servir os interesses portugueses.

No caso da América Latina e da África, Portugal beneficia igualmente da maior atenção estratégica que a UE prestou a estas regiões nos últimos cinco anos. o Governo português desempenhou um papel central nesta viragem europeia para o atlântico sul, tendo organizado durante a presidência portuguesa do conselho, na segunda metade de 2007, a primeira cimeira UE-Brasil (onde se estabeleceu a parceria estratégica entre as duas partes) e a segunda cimeira UE-África. Beneficiou ainda do interesse e do empenho da Comissão Europeia em relação a estas regiões e iniciativas.

Antes de concluir, uma última observação. Uma política europeia eficaz exige a manutenção do consenso nacional sobre as virtudes e as vantagens da integração europeia. Há alguns sinais inquietantes que apontam para um possível enfraquecimento desse consenso, que desempenhou além disso um papel fundador no regime político português. Desde as críticas à participação no euro até alguns ataques injustificados sobre as posições de alguns estados-membros (nomeadamente a Alemanha, e depois de tudo o que Lisboa fez para concluir o trabalho iniciado por Berlim e que resultou no tratado de Lisboa), começa a notar-se um mal-estar preocupante em relação à Europa. Paralelamente, observa-se aqui e ali, certas tentações para substituir uma «Europa exigente a pouco solidária» por um sul (latino-americano, africano e asiático) que «nos compreende e com quem partilhamos laços históricos». Cuidado com certas tentações. Este artigo faz uma grande defesa da importância do atlântico sul e mesmo da Ásia. Mas num sentido complementar à Europa, e reforçando-se mutuamente. Uma estratégia de substituição seria um desastre4. A crise será um grande teste à opção e aos compromissos europeus da democracia portuguesa. Um falhanço seria bem mais grave do que o défice e a dívida juntos.

 

Notas

* O texto é escrito na qualidade de académico e observador da política da União Europeia. A análise e as opiniões são pessoais e em nada vinculam a Comissão Europeia ou o seu Presidente.

1 «The issue of the right to participate in decision making in MEU related procedures in case of a permanent threat to the stability of the eurozone as a whole».

2 Formalmente, o Conselho Europeu só é reconhecido como instituição autónoma da UE no Tratado de Lisboa. Até então, era a configuração do conselho ao nível de chefes de Estado e de Governo.

3 Não incluo a Rússia, fugindo assim à «BRIComania», por respeito não só ao que o Brasil, a China e a Índia têm em comum (apesar das divergências em questões essenciais e cada vez mais visíveis), mas sobretudo a tudo o que separa os três da Rússia. Em termos muito simples, o Brasil, a China e a Índia crescem em termos económicos, demográficos e de capacidade tecnológica. A Rússia está ou em declínio ou em estagnação nas mesmas áreas. Os encontros «BRIC» não são mais do que encontros de quatro potências, os BIC mais a Rússia, que pretendem um mundo multipolar para limitar a hegemonia norte-americana.

4 Espero que ninguém queira substituir a «falta de solidariedade europeia» por uma «solidariedade chinesa, venezuelana ou líbia».