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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.28 Lisboa dez. 2010

 

Desde D. Afonso Henriques

 

José Cutileiro

Conselheiro Especial do Presidente da Comissão Europeia. Foi secretário-geral da União da Europa Ocidental (1994-1999) e professor (George F. Kennan Professor) no Institute for Advanced Study, Princeton (2001-2004).

 

Em 1976 havia em Lisboa um Governo socialista saído de eleições livres, novidade no País, e eu era conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Londres para onde me nomeara no Verão de 1974 o Dr. Mário soares. O meu primeiro embate com a diplomacia portuguesa, em 11, Belgrave Square, SW3, deixara-me a melhor das impressões. O embaixador era Albano Nogueira; o conselheiro, João Diogo Nunes Barata; secretários de embaixada, Fernando Andresen Guimarães e Vasco Valente. Passei a dizer aos meus amigos do reviralho que a diplomacia portuguesa era um corpo de elite (cheguei a vislumbrar publicar nos jornais um elogio dos diplomatas de carreira se o Fernando assinasse ao lado um elogio dos diplomatas políticos). É claro que Londres era, ainda mais do que é agora, a jóia da coroa do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e a amostra de pessoal que eu lá conheci logo a seguir ao 25 de Abril talvez não fosse típica da carreira. Mas na generalidade desta, comparados com portugueses noutras ocupações – advogados, alfaiates, deputados, empresários, floristas, jornalistas, magarefes, oftalmologistas, serventes de pedreiro, técnicos de contas, o que se quiser – os diplomatas não ficavam atrás de ninguém, pelo contrário.

Entusiastas idealistas e oportunistas gananciosos quiseram que o Dr. Mário Soares saneasse a torto e a direito nas necessidades assim que lá chegou em Maio de 1974 (os diplomatas tinham sido «agentes da ditadura», «cúmplices da PIDE», etc.). Felizmente o Dr. Soares é sábio; Vítor Cunha Rego, à altura seu colaborador principal no MNE, era ainda mais sábio do que ele nalgumas coisas e o pessoal diplomático foi mantido quase na íntegra. Por um lado, dava a garantia do saber de experiência feito numa altura em que aquele era vital para conduzir as relações externas do País; por outro lado, mantê-lo evitou, naquele sector melindroso, o assalto à máquina do estado por gente com outras obediências.

Mas as transições nunca são fáceis. Ao fim da manhã de uma sexta-feira, dia de saída da mala diplomática para Lisboa, o meu segundo-embaixador em Londres recusou-se a assinar o ofício escrito por mim que atacava medidas que eu achara nocivas para a nossa acção cultural no estrangeiro tomadas por Manuel Alegre, secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro. Entre a prudência do homem de carreira perante o novo poder político e a ousadia descuidada do recém-chegado com costas políticas quentes (eu era à época membro do Partido socialista) a discussão animou e o embaixador resolveu rematá-la.

«“Considero-me embaixador de Portugal desde D. Afonso Henriques!”

“Incluindo os Filipes?”, disparei eu.

“É boa”, disse o embaixador e deu uma gargalhada sadia. “Nunca tinha pensado nessa!”»

Deus lhe tenha a alma em descanso. Se fosse hoje vivo e praticasse a arte talvez nessa pensasse. Com efeito, numa espécie de curva de Gauss, a um dos extremos da qual ficasse o Conquistador e na bossa do meio se encontrassem Aljubarrota, Tordesilhas e Vestefália, teríamos no outro extremo o tratado de Lisboa e o novo corpo diplomático europeu, conhecido por Serviço de Acção Externa.

Convém todavia não confundir o mapa com o território. O Conquistador existiu em carne e osso, espadeirou do Minho ao Alentejo, transformou o condado Portucalense em Portugal e exigiu do Papa o reconhecimento da nacionalidade. Aljubarrota pôs Castela no seu lugar; Tordesilhas entregava-nos metade do mundo; Vestefália consolidou o estado moderno (abrindo caminho aos nacionalismos radicais do século XIX). Mas, por enquanto, o tratado de Lisboa e o serviço de acção externa da união europeia existem ainda quase só no papel e não na prática. Talvez de facto anunciem the shape of things to come mas, a meu ver, as ditas coisas levarão tempo a chegar e, pelo andar da carruagem, chegarão sem expulsarem do palco muitas prerrogativas de qualquer um dos estados-membros da união, desde as ilhas mediterrânicas de Malta e de Chipre até à poderosa Alemanha que ao conseguir agora assegurar a bem a hegemonia europeia que lhe escapara quando, em 1914 e em 1939, a tentara conquistar a mal, é outra vez vista com desconfiança pelos seus vizinhos – o que nem sempre acelera a construção europeia. (Há poucos anos, Helmut Schmidt disse numa entrevista que a Alemanha não deveria nunca ter armas nucleares nem assento permanente no conselho de segurança porque a Alemanha era diferente dos outros países e já se tinha visto onde era capaz de chegar entregue a si própria. se um patriota alemão que ainda por cima foi chanceler em Bona de 1974 a 1982 tem tal apreensão imagine-se gente com outras origens e outras lealdades).

Por essa razão e por outras (colapso da união soviética sem que nada remotamente parecido com medo de Estaline estimule mais entendimento entre os europeus; chegada ao comando das nações europeias de novas gerações sem memória histórica do que foram as guerras entre nós) de há alguns anos para cá têm vindo a crescer afirmações nacionais, cada vez mais fortes e desassombradas, na algazarra do grande souk europeu em que os governos dos vinte e sete países membros, uma comissão europeia comunitária onde todos eles estão representados e um parlamento sui generis, manco de legitimidade por não existir um «povo europeu» e dotado de poderes controversos que o fazem oscilar entre ser todo-poderoso e ser uma irrelevância irritante, regateiam tenazmente todos os dias a governação em comum da união europeia. Ano após ano, a parcela cujo mando é partilhado por todos tem vindo a aumentar à custa das partes que permanecem em âmbito estritamente nacional. É uma maneira laboriosa, dispendiosa e demorada de potenciar o poder e a influência dos europeus no mundo mas, nos domínios em que os estados lhe têm dado competências, tem mostrado tantas vantagens sobre as capacidades individuais de cada um deles que nem à eurocéptica Grã-Bretanha, sempre ciosa das prerrogativas da sua democracia e avessa a qualquer suserania de Bruxelas, passou até agora pela cabeça deixar a União. É na tensão entre capitais nacionais e instituições europeias que se governa e não creio que no futuro previsível se venha a governar de outra maneira.

Por outras palavras, o sonho federalista de alguns está transformado, quando muito, numa espécie de mito sebastianista e daí não se vê o que possa vir a passar. Independentemente do que mais for sendo posto em comum para reforçar a Europa (a união europeia) na luta sem tréguas contra o resto do mundo multipolar que brota à nossa roda, as nações – ou, mais correctamente dito, os estados-membros – não irão prescindir de poderes e imagens de soberania nacional, sem os quais as respectivas populações se tornariam ingovernáveis. É claro que Na Europa não há só pátrias desde há muito tempo fixas dentro das mesmas fronteiras e uniformes em língua, fé (ou falta dela), costumes e cultura como é o caso de Portugal. Javier Solana contou-me um dia de um senhor de muita idade que encontrara em Bratislava e tivera ao longo da vida sete nacionalidades diferentes sem nunca sair da sua terra. Mas entre entidades estáveis há muitos séculos, como Portugal ou a Dinamarca e as que ganharam forma nova nas atribulações da dissolução do império austro-húngaro e de duas Guerras Mundiais no centro, no leste e no sudeste da Europa, não há por fim grande diferença de sentimento e pertença das populações às pátrias que imaginam ter. De resto, deixando de parte tensões fronteiriças que ainda às vezes existem, são complicados os problemas de minorias que salpicam muitas partes da Europa, basta lembrarmo-nos do concurso para o Prémio europeu da canção ou dos campeonatos europeus de futebol para sentir vibrar a força das nações.

O Serviço de Acção Externa da União, que agora está a ser criado com pessoal vindo em parte da burocracia das instituições europeias e em parte dos corpos diplomáticos nacionais, não irá enfraquecer ou tirar voz a essa força. Os diplomatas para lá mandados terão contratos de alguns anos e voltarão depois às casas-mães. Espera-se que a sua presença, na sede em Bruxelas e em postos no estrangeiro, aplique doses eficazes de Realpolitik à vocação de ONG missionária e caritativa que tem até agora caracterizado quase sempre a acção das delegações da comissão europeia in partibus infidelis. E eu por mim espero que tal vontade saudável de realismo das capitais não vá, por cegueira competitiva ou mau cálculo, lesar posições negociais comunitárias em comércio externo e concorrência que, essas, vêm de há muitos anos a esta parte a ser bem geridas pela Comissão.

Seja como for, a acção diplomática de cada estado-membro não será enfraquecida pelo novo serviço de todos. Por razões simples e claras. O Reino Unido e a França nunca renunciarão aos seus assentos permanentes no conselho de segurança das nações unidas para dar lugar a um assento único da União Europeia. Ao fazê-lo abrem uma caixa de Pandora de excepções pois qualquer dos outros vinte e cinco será encorajado a considerar não negociáveis posições de grande importância simbólica para a sua opinião pública. No nosso caso, por exemplo, não se imagina facilmente a união europeia substituindo-se a Portugal para defender um interesse deste junto de, por exemplo, Luanda, Díli ou Brasília (salvo em campos predeterminados, como o comércio externo ou a concorrência onde a comissão há muito lidera os processos com acordo, em cada caso, dos estados-membros). Devo acrescentar que, pelo menos por enquanto, o conselho europeu pouca diplomacia pede aos seus membros que ponham em comum. Para não falar na actividade diplomática entre membros da própria união, nas capitais uns dos outros. Embora muitos assuntos sejam agora tratados e discutidos em Bruxelas, uma presença permanente nas capitais alheias para acompanhar e se possível influenciar tomadas de posição internas antes destas serem levadas a discussão em Bruxelas ajuda muito.

Por todas as razões referidas acima parece-me muito pouco provável que o Serviço de Acção Externa venha roubar trabalho (e louros) aos ministérios dos estrangeiros nacionais.

E há mais. Os funcionários europeus devem a quem lhes paga muito mais do que uma lealdade comercial corporativa – não é só como seria se pertencessem à grande família Nokia ou à grande família Ford –, mas tampouco é como se tivessem descoberto, saída como Fénix dos escombros da velha Europa, uma nova pátria. Talvez no começo, no tempo de Schuman, De Gasperi, Spaak, Adenauer os houvesse e alguns possam ter deitado até aos anos de Delors (1985-1995). Não tenho a certeza de alguma vez ter encontrado um deles (ou uma delas) e hoje já não existem. Isso tem importância para o que se possa intitular diplomacia europeia.

Fazendo um aproveitamento simplista de Clausewitz: se a guerra é a continuação da política por outros meios, a diplomacia é a alternativa à guerra que esconjurámos na Europa desde 1945 (embora quando seja preciso a pratiquemos ainda algures). O que está em jogo em diplomacia e em guerra é o mesmo. Ora, tal como ninguém1 iria morrer ou matar por Bruxelas, ninguém impressionaria fosse quem fosse se se afirmasse convicto que era embaixador da Europa desde Jean Monnet. As coisas são o que são.

 

Notas

1 Salvo eventualmente um belga em cada três.