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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.27 Lisboa set. 2010

 

Pensar politicamente as civilizações

 

João Pedro Vieira

Licenciado em História pela FCSH–UNL. Mestrando em História Antiga na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

 

Antony Black

The West and Islam: Religion and Political Thought in World History

Oxford, Oxford University Press, 2008, xvi + 186 páginas

 

 

Ocidente europeu, islão e bizâncio em perspectiva

A obra aqui recenseada consiste, basicamente, numa breve história comparada do pensamento político do Ocidente europeu e do islão, entre os séculos III e XV, e da sua interacção com o domínio religioso. The West and Islam apresenta parte do resultado do longo trajecto de investigação desenvolvido por Antony Black – professor emérito em História do Pensamento Político na School of Humanities da Universidade de Dundee – no campo da história do pensamento político dessas duas civilizações, integrando-se num projecto de redacção de uma história universal do pensamento político. De facto, para além da presente obra, Black publicou uma história do pensamento político europeu entre 1250 e 1450 (1992), do pensamento político islâmico (2002) e, mais recentemente (2009), do pensamento político nas culturas pré-clássicas e clássicas euro-asiáticas.

Com este estudo, o autor pretende contribuir para a explicação do actual estado do mundo, pelo menos em termos de ideologias políticas (p. VII). Bizâncio é igualmente chamado ao exercício comparativo, conquanto a sua importância na discussão seja circunscrita e lateral. Deste modo, Black estuda as diferenças e semelhanças entre as três civilizações, as tendências evolutivas divergentes e convergentes, assim como fenómenos, personagens, concepções e momentos cruciais na história do pensamento político islâmico e sobretudo europeu numa escala diacrónica abrangente.

 

Uma anatomia histórica do pensamento político medieval

Após expor os objectivos do estudo e discutir as opções metodológicas e terminológicas, Black inaugura a sua argumentação equacionando a relação entre religião, praxis e pensamento político nas três civilizações. Contrariamente ao cristianismo, inicialmente apolítico e aberto por definição à criação de um espaço secular, o islão pretendeu desde muito cedo a concretização, por via coerciva, de uma sociedade universal alicerçada na revelação divina e num corpo normativo sócio-religioso preciso – a šari‘a. A evolução do pensamento e da praxis política no Ocidente europeu e no islão percorreu caminhos inversos que significaram, para o primeiro, a transição de um paradigma apolítico para a construção de uma relação simbiótica e finalmente para a separação progressiva entre as duas esferas, enquanto o segundo partiu de uma situação de unidade intrínseca entre política e religião a que retornou após uma abertura efémera à diferenciação entre as duas esferas, durante o florescimento cultural dos séculos VIII-XI. No cruzamento deste processo evolutivo, as três civilizações convergiram, por exemplo, no monoteísmo abraâmico e na concepção da monarquia sacral. Foi somente a partir dos séculos XII-XIII que a cultura política do Ocidente europeu começou a divergir manifestamente das suas congéneres.

No segundo capítulo, Black explora a temática da legitimidade política do califado e do Estado. Contrariamente ao islão e a Bizâncio, onde era exercida uma autoridade coerciva de pretensões universais divinamente investida, na Europa os governos e o Estado eram entendidos como resultado da acção humana, dispondo de uma autoridade simbólica mais reduzida. Nesse contexto, surgiram visões contratualistas sobre a governação e a origem do Estado, e começou a desenvolver-se a noção de uma sociedade civil para além da Igreja. No islão, pelo contrário, predominava uma visão pessimista e hobbesiana da natureza humana e da origem do Estado em que a implementação da ordem divinamente estabelecida exigia forçosamente a coacção. Só na Europa se desenvolveram e associaram aos cargos políticos as noções de impessoalidade e serviço público, o que facilitava a denúncia dos governantes em caso de injustiça ou tirania; no islão, as funções do califa ou sultão eram interpretadas de um ponto de vista eminentemente religioso e o poder era mais pessoal, dinástico, autocrático e absoluto.

No capítulo seguinte, dedicado à conceptualização da estrutura e da evolução social, e suas implicações políticas, o autor considera ter existido no Ocidente medieval uma série de condições sociais que favoreceram a participação política, o contratualismo e a emergência do Estado (e.g., modelo de família nuclear, reciprocidade e replicação das relações feudais). Diferentemente do islão e de Bizâncio, surgiu na Europa uma prolixidade de organizações políticas representativas de carácter religioso, político e mercantil que funcionavam autonomamente sujeitas a normas próprias e à votação dos seus membros. Se no islão, onde a estrutura da sociedade permaneceu tribal e as associações tendiam a basear-se na religião e no parentesco, os ‘ulama’ forneceram um centro não governamental poderoso, no Ocidente europeu, a nacionalidade e o Estado transformaram-se nos fundamentos da associação política.

Transitando para a temática dos regimes políticos, Black começa por observar que a monarquia foi, até meados do século XI, o único regime político seriamente considerado pela intelectualidade das três civilizações. Na monarquia de tipo sacral e universalista que lhes era comum, o rei era responsável perante Deus e punível. Se o exercício da justiça se afigurava uma necessidade comum, a origem da lei e da justiça diferia significativamente no Ocidente europeu, uma vez que as leis dimanavam também de fontes não religiosas (e.g., direito romano), podendo ser revistas, alteradas e revogadas, e derivavam a sua autoridade e efectividade da actuação régia. Contrariamente, o poder real era teoricamente incondicionado no islão e em Bizâncio, que desconheciam mecanismos de fiscalização. Conquanto as monarquias islâmicas tivessem legislado no sentido da suplementação da šari‘a, não houve qualquer esforço de reflexão sobre os limites entre lei religiosa e secular sequer comparável com o despoletado no Ocidente pelo papado. Para além disso, no Ocidente europeu, a balança de poderes e a cultura política obrigavam o rei a negociar o consentimento dos corpos sociais em diversas matérias, o que estimulou a evolução do parlamentarismo e o desenvolvimento gradual dos princípios do consentimento, do contrato e da supremacia da lei, assim como a afirmação do «povo», lançando as bases para as noções de participação e soberania popular, ambas alheias ao pensamento político islâmico. Do exame dos regimes políticos, Black passa directamente para a questão da relação entre teoria e praxis política. Enquanto na Europa se dissertava sobre o ideal moral e político do rei e se procurava conformar a sua acção a esse paradigma ideal, os pensadores islâmicos optaram por um pragmatismo político explicável pela existência de um absolutismo monárquico sem mecanismos de controlo efectivos ou procedimentos de responsabilização.

Alguns séculos antes de Maquiavel, a literatura islâmica de aconselhamento régio, de inspiração iraniana, contemplava todos os aspectos da existência sociopolítica do governante e relativizava constrangimentos morais, sem contradição aparente entre política e religião. De facto, se Ibn Khaldun (1332-1382) via nos valores religiosos possíveis meios de fortalecimento moral da sociedade e de contenção do declínio imperial, Maquiavel olhava para as virtudes cristãs como obstáculos à acção política concreta.

No sexto capítulo, o autor procura compreender o modo como o pensamento filosófico greco-helenístico foi assimilado e utilizado pelo Ocidente europeu e o islão na reflexão política, equacionando em especial o contributo do neoplatonismo. Apesar das tentativas de introduzir no islão a linguagem abstracta e racionalista proveniente do neoplatonismo, prevaleceu uma abordagem narrativa, literalista e particularista característica dos ahadith, da šari‘a, e ‘ulama’. O conhecimento por excelência era o conhecimento da revelação, e embora alguns pensadores da falsafa admitissem uma concepção de islão mais aberta e flexível, a filosofia nunca despoletou o processo de reflexão crítica ocorrido na Europa: em última instância, a falsafa foi entendida como ameaça e acabou por ser rejeitada precisamente quando a Europa reabsorvia a herança clássica e o movimento gregoriano recriava o discurso político através da lógica e da dialéctica.

No capítulo seguinte, Black dispensa maior atenção ao movimento gregoriano e ao seu impacto transformador no modo como política e religião se concebiam e relacionavam. Os reformistas investiram o papa de uma soberania indivisível de origem divina cuja vertente secular era delegada no imperador. A tentativa de controlo político do imperium pelo papado fracassou, mas o ideal de soberania papal veio a tornar-se o protótipo do Estado moderno ocidental e o papado, procurando deslegitimar a monarquia sacral e especificar limites ao exercício do poder, forçou a secularização do Estado e desencadeou a procura de fontes de legitimidade não religiosas pelas diversas organizações políticas europeias. No islão, procurava-se simplesmente a restauração da unidade original da ’umma primitiva, e só os xiitas atribuíram um papel importante à razão. De qualquer modo, só na Europa a questão da separação entre religião e política teve verdadeiramente significado, e só aqui originou uma onda plurissecular de conflitos ideológicos e institucionais.

Deste modo, Black mergulha com maior profundidade na problemática das origens do pensamento político ocidental, realçando disparidades constitutivas entre Ocidente europeu e islão. Enquanto a Europa criou a noção de uma lei natural universal e própria da humanidade com base em concepções filosóficas e jurídicas greco-latinas mediadas pela Igreja, a šari‘a apenas podia ser conhecida por crentes e a humanidade não era reconhecida como categoria significante. O Estado moderno, coexistindo com uma sociedade civil organizada embrionária, tornou-se cada vez mais desprovido de significado espiritual, o que se revelou primacial para a formação da ciência e do capitalismo e contribui para explicar o subdesenvolvimento intelectual, científico, económico e político do mundo islâmico. Daqui em diante, a divergência entre Europa e islão tornou-se mais nítida, algo visível no contraste entre o monolitismo teológico e intelectual do mundo islâmico e a crescente proliferação de opiniões e conflitos intelectuais no Ocidente. Para Black, o caso histórico do islão mostra que a legitimação do Estado pela religião pode inibir decisivamente o desenvolvimento intelectual e civilizacional.

Por fim, o último capítulo do estudo lida com a influência do pensamento e das ideias políticas ocidentais na Rússia e no islão, e esboça algumas conclusões de âmbito estrutural sobre a história do pensamento político ocidental e islâmico, e a sua interacção com a religião. Efectivamente, a reformulação do monoteísmo e da filosofia greco-helenística levou a resultados completamente diferentes e possibilitou à cultura ocidental algo que a tendência extremamente hetero-depreciativa do islão impede: a exportação de ideias e instituições políticas e a capacidade de compreender e admirar qualquer outra cultura.

 

Eurocentrismo ou superioridade da cultura política ocidental?

Uma das características mais salientes da obra de Black é a delicada conjugação entre concentração temática, diversidade e amplitude do objecto de estudo e concisão da abordagem. A estrutura discursiva do estudo centrou-se nas estruturas históricas que enformam a evolução do pensamento e da praxis política nas três civilizações, reconhecendo o papel estruturante da religião nas suas mundivisões.

Inevitavelmente, a exiguidade da obra, impedindo a análise detalhada que várias temáticas mereceriam, deve ser compreendida no quadro da produção historiográfica do autor. The West and Islam representa, com efeito, uma síntese que integra e explicita de forma sistémica os resultados de obras anteriores sobre o pensamento político islâmico e do Ocidente europeu medieval. No entanto, a organização temática e a amplitude cronológica e cultural da obra, que se desenrola numa sequência de cortes diacrónicos paralelos, tornam a evolução do discurso algo sinuosa e não raro repetitiva, o que afecta o seu sentido de coerência e oferece a impressão de uma sucessão de reflexões por vezes insuficientemente articulada.

Apesar disso, Black consegue condensar praticamente um milénio de história numa linguagem simples e acessível a um público generalista. A sua argumentação mostra eficazmente que, para além das evidentes discrepâncias religiosas, políticas e culturais, o Ocidente europeu, Bizâncio e islão apresentavam afinidades de nível civilizacional mais profundas do que habitualmente reconhecido e que o islão dispôs mesmo, durante alguns séculos, de condições históricas privilegiadas para o desenvolvimento dos fundamentos de uma cultura e teoria política modernas e de projecção intercultural. Para o autor, os pensadores da falsafa, ao advogarem uma concepção menos literalista e legalista do islão, e admitindo a revisão e actualização da šari‘a, poderiam ter impulsionado um aumento da jurisdição da legislação secular e da autoridade califal, o que teria gerado um islão diferente (p. 119), mais dinâmico, flexível e adaptável, aberto à participação e ao debate político, à proliferação de ideias e ao reconhecimento da alteridade.

A apreensão da natureza e dimensão das afinidades e discrepâncias históricas existentes entre Ocidente europeu e islão, sobretudo, beneficiou claramente da opção metodológica do autor por uma abordagem comparativa. Essa mesma abordagem, por outro lado, acabou por tornar este estudo numa história dos factores e processos históricos que explicam as especificidades e a singularidade do percurso evolutivo e dos valores políticos do Ocidente, oferecendo dados relevantes para a compreensão do enraizamento histórico do antagonismo entre Ocidente e islão. Além disso, sem que o autor assuma explicitamente qualquer compromisso ou orientação ideológica clara, The West and Islam aparenta exprimir uma convicção na superioridade da cultura política ocidental e na separação entre Estado e Igreja como condição sine qua non para o desenvolvimento de estruturas políticas inclusivas, representativas e tolerantes, melhor preparadas, portanto, para satisfazer as necessidades e aspirações das sociedades humanas. É nesse sentido que Black duvida que a Rússia, e particularmente o islão – no seu frequente desprezo por direitos e liberdades fundamentais e na sua intolerância religiosa –, tenham algum contributo a dar a outras culturas (p. 163).

No entanto, a visão do islão contemporâneo subjacente ao juízo crítico de Black afigura-se algo essencialista e como tal estereotípica. Tal como no transcurso dos séculos e contrariamente às pretensões dos fundamentalistas, o islão contemporâneo continua a não ser o bloco civilizacional monolítico que a narrativa de Black sugere. Por exemplo, a shari‘a, frequentemente discutida pelo autor ao longo da sua obra, não é actualmente um corpo normativo sócio-religioso totalizante invariável, não sendo interpretada e aplicada do mesmo modo em Marrocos, na Turquia, Indonésia ou Arábia Saudita, para além de coexistir com outros corpos legais1.

Um trabalho de síntese da magnitude do enfrentado por Antony Black implica, necessariamente, o risco de erros de representação historiográfica, equívocos e simplificações potencialmente abusivas. Contudo, contrariamente a Filali-Ansary2, não é lícito afirmar, até pelo seu constante esforço de aproximação às fontes – europeias e islâmicas – e pela atenção que dispensou quer à recepção das concepções políticas, quer à produção historiográfica recente, que Black tenha representado de forma incorrecta ou tendenciosa a história do pensamento político medieval islâmico. Pelo contrário, longe de assumir uma perspectiva eurocêntrica ou ideologicamente tendenciosa, Black oferece ao universo dos interessados, académicos ou leigos, uma óptima síntese historiográfica que revela a comprovada maturidade e competência do autor na área da história do pensamento político euroasiático.

 

Notas

1 Cf. OTTO, Jan Michiel (ed.) – Sharia Incorporated. A Comparative Overview of the Legal Systems of Twelve Muslim Countries in Past and Present. Leida: Leiden University Press, 2010.

2 FILALI-ANSARY, Abdou – «Misreading Muslim History». In Journal of Democracy. Vol. 20, N.º 1, 2009, pp. 169-172.