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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.27 Lisboa set. 2010

 

Petite histoire das Nações Unidas

 

Manuela Franco

Diplomata. Investigadora do IPRI–UNL. Foi secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação do XV Governo Constitucional.

 

Mark Mazower

No Enchanted Palace: The End of Empire and the Ideological Origins of the United Nations

Princeton,  Princeton University Press, 2009, 236 páginas.

 

 

Petite histoire é um género literário, muito ao gosto seiscentista francês, que ilustra a História e tempera o implacável princípio da realidade contando historietas e pormenores reveladores da vida de personagens, grandes e pequenas, cujas observações tendem a merecer fina ironia. É neste género que se filia No Enchanted Palace: The End of Empire and the Ideological Origins of the United Nations, um livrinho em que Mark Mazower, britânico, historiador popular da moderna Grécia e, actualmente, professor de História e de Estudos da Ordem Mundial na Universidade de Columbia (Nova York), reúne um conjunto de conferências que proferiu sobre individualidades envolvidas na demanda pelo internacionalismo ao longo do século XX.

Procurando encontrar sentido nas peripécias do caminho, Mazower apresenta as ideias e aventuras de algumas figuras de segunda linha influentes nos acontecimentos, nos debates e nas movimentações que, primeiro na Sociedade das Nações (SDN) e, depois, na ONU, levaram à moderna organização da sociedade internacional. O estadista sul-africano Jan Smuts e Alfred Zimmern, líder do internacionalismo liberal e precursor da disciplina de relações internacionais, são convocados para questionar a pretensão britânica de «reforçar uma ordem mundial compatível com o império e com uma hegemonia anglo-americana». A questão da protecção de minorias, os conflitos entre direitos colectivos e individuais, a territorialização da soberania, são abordados através de visões divergentes de refugiados judeus durante e após a II Guerra Mundial; e a história da queixa movida em 1946 pela União Indiana contra a União Sul-Africana pelo tratamento discriminatório da minoria indiana ali residente, é usada para ilustrar as tensões na Commonwealth e o protagonismo internacional que Nehru viria a ter.

Mazower procura dar coerência a tão díspar conjunto através de uma introdução e de um posfácio que, alongados e densos, são também ocasião de exercício de ambições teóricas porventura além das capacidades do enquadramento do livro, senão do autor. Talvez daí o «desencanto» titular deste livro, obra de intervenção política nas «batalhas pela ordem internacional pós-Guerra Fria», que tanto mobilizam a comunidade académica norte-americana e afins. Especialmente irritado com a tendência do liberalismo internacionalista para se identificar com os píncaros do progresso político, insatisfeito com a «historiografia idealista» sobre a fundação da ONU, Mazower vem agora sustentar que os elevados princípios de «retórica moralista» da Carta das Nações Unidas (NU) apenas serviram para mascarar os propósitos imperiais que presidiram à sua fundação. Secretos e inconfessáveis: o indício principal está no facto de o marechal Smuts – sul-africano, defensor do liberalismo internacionalista e, internamente, das teses de segregação racial que mais tarde viriam a ser instituídas no sistema de apartheid – ter sido agente fundamental da constituição da SDN em 1918 e, em 1945, autor do preâmbulo da Carta das NU (p. 19). Mark Mazower reputa esta conexão como reveladora da hipocrisia internacional e do DNA imperial da ONU. Como explicar? Raiando a banalidade: o autor avança que as NU são uma evolução, não uma revolução, produto de ideias e organizações já existentes, dos respectivos sucessos e falhanços, revistos à luz das guerras – da II Guerra Mundial, da I Grande Guerra, da Guerra Boer (p. 17). Estranha-se que com uma tão candente preocupação universalista, o autor deixe de fora a Guerra Russo-Nipónica de 1905 e os efeitos que teve no espírito imperial asiático: teria de resto sido ocasião interessante para comparar as preocupações raciais sul-africanas e japonesas, contribuindo para racionalizar a ideia de vitimização do Japão (p. 91). De um estudo recente sobre a proposta de igualdade entre as raças apresentada pelo Japão na Conferência de Versalhes, resulta claro que este princípio, no sentido universal que lhe atribuímos hoje, «não estava sequer envolvido nas negociações sobre a inclusão da cláusula de igualdade racial». Afinal o Japão estava essencialmente preocupado em consolidar a posição entre as grandes potências. Como única grande potência não ocidental, pretendia assegurar a igualdade racial aos cidadãos japoneses. Tratava-se de um requisito nacionalista, não altruísta1.

Em busca de respostas, o autor prossegue a sua viagem intelectual – a que chama pré-história ideológica – aos meandros do moderno internacionalismo: visita a conceptualização da cooperação internacional a partir do sistema imperial britânico, sua substituição pela Commonwealth e pelas doutrinas de protecção das minorias. E como, para os pensadores britânicos mais ligados a este ideário, a SDN tinha o duplo objectivo de preservar o Império e cimentar a relação com os Estados Unidos, Mazower defende que as ideias foram transportadas e que, afinal, as NU não são mais que uma «SDN requentada». Esta percepção, algo esotérica, não leva em momento algum o autor a explicitar o que é sabido por todos os que abordaram este campo de investigação: a ONU sucedeu à SDN em conformidade com o direito internacional quanto à sucessão em matéria de tratados. Bom exemplo é o caso das responsabilidades dos mandatos e, em geral, da Tutela de Territórios Não Autónomos. Não faltaram nunca tampouco os historiadores das NU que não só não glorificaram a organização como sempre tornaram aparente a ligação directa da SDN à ONU. Cabe perguntar, o que anda Mazower a ler? Como consegue reputar de «espantoso» que, em 1912, mesmo o mais radical dos internacionalistas britânicos aceitasse o quadro imperial da política internacional? Quando critica que as NU resultam do equilíbrio de poder entre as potências vencedoras da II Guerra Mundial, só resta ao leitor perplexo perguntar: como poderiam ter aparecido de outro modo? Qual a instituição que vem ao mundo sem ser moldada pelas circunstâncias históricas prevalecentes à data da sua instituição? Qual é a organização política que sobrevive sem atender e de alguma forma responder às preocupações dos seus membros?

De fora do campo de atenção do autor fica também a total diferença provocada pelos acontecimentos entre as guerras e pela mudança de mentalidade que a própria II Guerra Mundial trouxera. Quem leia o livro desprevenido fica sem perceber como é que em 1945 se encontraram 51 estados dispostos a subscrever a negociata imperialista do Reino Unido com os Estados Unidos.

 

A Autodeterminação

Na verdade, que impérios tão incompetentes eram esses que estatuíram um instrumento de criação de estados tão poderoso que nos primeiros vinte anos de existência aumentou para 126 o número de estados-membros? A mudança de perfil trouxe, logo a partir dos anos 1960, uma maioria automática fora do controlo ocidental, verdadeiro motor de descolonização e criação de estados, o «Sul Global».

O aspecto mais fraco do livro será a forma como voa por cima desta questão da autodeterminação, seja como direito seja como postulado de independência política e de produção de estados soberanos. A resposta que avança para a determinação com que a ONU se dedicou a criar estados, reside na ideia que «o império» substituiu a protecção das minorias, os direitos colectivos e a preponderância do direito internacional pela abordagem declaratória e obsessão liberal com os direitos humanos individuais.

Mazower parece desconhecer o texto dos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, tratados internacionais que em 1966 vieram concretizar a Declaração Universal dos Direitos do Homem e cujo primeiro artigo – idêntico nos dois pactos – consagra o direito à autodeterminação, direito colectivo, pedra basilar do gozo de todos os direitos2. A partir da ausência de compreensão deste «elo» na cadeia, tudo é possível. E Mazower não nos poupa. E adianta que a primeira manifestação do abandono da universalidade se fez sentir na complicada questão da protecção das minorias após a II Guerra Mundial, e no debate sobre como melhor garantir tais direitos: reforçando o direito internacional, ou promovendo transferências de populações minoritárias e a partição de estados divididos segundo linhas raciais ou étnicas?

Esta é a matéria do terceiro capítulo que, sob o título «Nações, Refugiados e Território», é o mais confuso. Procura abordar a questão da concretização do princípio «Estado/território/população» através do debate sobre o destino dos judeus, grupo nacional no centro da guerra nazi, cuja condição simbolizava perfeitamente os perigos da ausência de Estado (p. 23).

Em 1919, a ansiedade sobre o destino das nações na Europa Oriental havia motivado a criação do regime dos direitos das minorias. O problema era real: mais de 130 milhões de pessoas a distribuir pelas novas fronteiras. A Polónia tinha 27 milhões de habitantes: oito milhões pertenciam a cinco grupos não polacos. Segundo um censo de 1910, só no Império Austro-Húngaro havia 12 milhões de alemães (24 por cento); 10 milhões de húngaros (19 por cento); de eslavos ocidentais e do sul, juntos, 23,5 milhões (46 por cento); os romenos três milhões (seis por cento); e «outros», especialmente italianos e judeus, 2,5 milhões (cinco por cento)3. A Grécia remeteu meio milhão de turcos para a Turquia, donde recebeu 1,5 milhões de gregos da Ásia Menor, Anatólia e Trácia Oriental.

A Conferência de Versalhes havia feito depender o reconhecimento dos novos estados do compromisso de estes tratarem as minorias com justiça e de lhes concederem novos direitos que a SDN fiscalizaria, ao abrigo do direito internacional. Durante a II Guerra tal regime foi repudiado de forma decisiva. A nova ordem Nazi contribuiu para o subverter, criando uma crise global de refugiados que suscitou uma resposta global (p. 24). Mazower estabelece aqui uma confusão que leva a conclusões erradas. E que importa clarificar:

· Primeiro – Se é certo que a expulsão dos judeus da Alemanha a partir de 1933 veio agravar, em muito, a crise de refugiados na Europa, não é menos certo que essa crise existia desde o fim da I Guerra, alimentada por um milhão de russos expulsos ou fugidos da URSS e a quem Lenine retirara cidadania em 1921; arménios; e milhares de outros deslocalizados pela implantação de fronteiras nos novos estados sucessores dos impérios alemão, austro-húngaro e otomano.

· Segundo – O compromisso de os novos estados tratarem as minorias com justiça estava de facto sujeito à fiscalização da SDN mas não decorria da sua autoridade. Esta derivava dos «Tratados de Paz» que estabeleciam as condições da paz entre vencedores e vencidos e que consagravam tais obrigações entre as condições de soberania e independência. O Pacto da SDN estava incorporado em cada um destes tratados. Tinha ficado claro na Conferência de Versalhes que neste caso, como no dos mandatos, a soberania e a legitimidade fluíam dos estados aliados vencedores e não da SDN.

· Terceiro – As restrições à soberania nacional que tais imposições implicavam, juntamente com a dificuldade de gerir os estados e as minorias, foram sem duvida uma das grandes causas de destabilização, terrível tensão política e razões de luta da II Guerra. Como poderiam as Nações Unidas ignorar tal facto?

Mazower não está com este ponto de vista. Sublinha que as NU se tornaram um sério defensor da soberania nacional e que tratar a autodeterminação nacional como um direito não foi apenas libertador; foi também uma doutrina que espezinhava os direitos dos outros. Por isso as «minorias desapareceram na Europa Oriental» (p. 25). De forma rebuscada, insinua que a «territorialização» do problema das nacionalidades foi obra de judeus, os quais também fomentaram a ideia da «partição» em lugar da valorização do direito internacional como forma de protecção das minorias (p. 133), e que a criação do Estado de Israel, na verdade, resultou de um excedente populacional da Europa. Como se tudo resultasse de uma hábil manipulação de um discípulo do chefe revisionista sionista, como se os problemas de minorias e a forma como a SDN era suposto tratar o assunto não tivessem sido uma das principais causas do seu descrédito, como se a perseguição nazi aos judeus não tivesse tido a dimensão que teve. Quando Mazower invoca que houve 12 milhões de alemães deslocados no pós-guerra e nem sequer aflora os 7,5 milhões de trabalhadores escravizados pelos nazis que foram repatriados pelos Aliados em 1945; ou quando refere «os excedentes judaicos na Europa», sem, por exemplo, dizer que os 500 mil judeus alemães no final dos anos 1930 se reduziam a 15 mil em 1945, fica-se sem alcançar em torno do que gira o argumento4.

O autor descreve as posições em presença de tal forma que em vez de colocar a brutalidade da guerra e o terror nazi (civis, militares e vítimas dos programas de extermínio) como factores principais da reavaliação das questões «território, Estado, nação», transfere esse ónus para obscuros projectos que nunca viram a luz, para esquemas de judeus, para o «lóbi judaico» americano, e para os Aliados: «as minorias eram vistas como fontes de desestabilização, e liberais, socialistas e fascistas eram unânimes em exigir a sua eliminação» (p. 143). Numa mesma frase consegue equiparar os sionistas revisionistas e os nazis; e dizer que os Aliados, «globalizando a visão de Smuts» (que o mesmo é sugerir: racista) promoviam a homogeneização étnica como medida defensável de autodeterminação nacional e estabilidade internacional. Isto é: levavam mais longe a posição nazi. Esta argumentação é artigo de panfleto. Recorda-se que ainda recentemente Mazower veio defender que

«vista de fora da Europa [donde, não diz] a guerra britânica contra o nazismo parece mais uma defesa do statu quo global do que uma cruzada moral. […] Tivessem os alemães arranjado localmente regimes conciliadores que lhes assegurassem o abastecimento em petróleo, a guerra poderia ter corrido de modo diferente. […] Não se deve ignorar a perspectiva global. Vista da Índia ou do Japão a guerra era um assunto de imperialismos rivais, o culminar de mais de um século de lutas europeias para repartir o mundo. A ironia é que tanto a Inglaterra como a Alemanha estavam demasiado fracas para se derrotarem mutuamente sem ajuda externa. Se a Inglaterra dispôs de aliados mais fortes que a Alemanha, tal ficou a dever-se tanto à incompetência nazi (darem facadas nas costas de Estaline, desprezarem os espanhóis e os franceses, os húngaros e os italianos) como ao maior charme de Whitehall. Os alemães perderam o seu império na Europa, os britânicos perderam o que tinham fora dela»5.

A banalidade da culpa do homem branco ainda rende... Mas o autor não fica por aqui. Aproveitando ter a caneta na mão, ajusta certas contas: os historiadores não são os únicos que não fizeram justiça à complexidade das ideias e das ideologias que estão por detrás das NU. E parte para uma inusitada rabecada aos académicos de relações internacionais, alvitrando que

«talvez ao nível metodológico mais fundamental, as dificuldades dos teóricos de relações internacionais advenham da respectiva ansiedade em demonstrar que a disciplina reúne condições científicas e tem capacidade para gerar teorias gerais acerca da política mundial […] “Inveja de ciência” – pois disso se trata – levou-os a idealizar as abstracções da teoria dos jogos e escolha racional e depreciar o papel da ideologia. […] tais abordagens eliminaram a possibilidade de ter em conta os desafios de ideias e filosofias de forma séria no mundo da política internacional – como se a luta épica entre nazismo, comunismo e democracia liberal pudesse ser explicada com base numa análise de eficácia de custos. […] As ciências sociais empregam cada vez mais uma linguagem higienizada que exclui referências abertas à política recorrendo a conceitos como governança, boas práticas e vocabulário de gestão […] mas tanto não chega para esconder os juízos de valor que povoam o discurso dos seus autores. A alegada “paz liberal democrática” baseada no argumento de que as democracias não fazem guerra entre si – não é mais que um reflexo de uma orientação normativa da actualidade: nesta, o liberalismo é apresentado como a única forma de racionalidade política capaz de ir ao encontro dos desafios do mundo moderno e Kant é invocado para justificar a difusão da paz por intermédio da união das democracias. É nesta veia que o liberalismo americano é apresentado como não violento e pragmático, nada ideológico, e lenitivamente dissociado dos seus legados mais coercivos de império e domínio» (pp. 9-11).

O livro é convoluto. O autor não amadureceu o suficiente o seu pensamento sobre a matéria, não demonstrando sequer um domínio dos factos e das relações entre os diversos campos de acção que uma análise séria do tema obrigaria a considerar. Subtil, largando aqui e ali pequenas perfídias, em prosa empolada, Mazower parece querer estabelecer um princípio que nos leve a pensar que [«moralismo» = «liberalismo» = imperialismo], assim contribuindo a sua pequena achega ao programa multicultural, à infindável culpa e malevolência do homem branco, à crítica prosseguida noutros meios do «intervencionismo liberal». Apodar depreciativamente de «eurocêntrica» a abordagem da SDN é ridículo, como é para um trabalho académico sério tratar os problemas políticos das NU ou da sociedade internacional de estados com qualificativos como «hipócrita».

 

De governo do mundo a mundo dos governos

As NU começaram por ser um prolongamento das convicções e perspectivas que se desenvolveram no início do século XX quando a Inglaterra era a potência dominante. Esta linha de pensamento, filiada na experiência imperial britânica era muitíssimo céptica quanto aos ideais wilsonianos e aos benefícios do exercício do direito à autodeterminação. Em inúmeros papéis e conferências produzidos nos anos da I Guerra, altos funcionários e académicos britânicos, muitos filiados com a esquerda europeia, como Arnold Toynbee e Lewis Namier, preveniam repetidamente que a tentativa de construir um mundo de estados nacionais que se autogovernassem se arriscava a ser uma receita para o desastre, especialmente num lugar como a Europa Oriental, onde as fronteiras eram confusas e controversas.

A criação da ONU no fim da II Guerra concentrou-se essencialmente em conciliar os princípios éticos e morais que deveriam nortear a futura ordem internacional e as regras de acção que os aliados vencedores julgaram possível sustentar politicamente. O desejo de evitar mais guerras era claramente de importância principal, mas os governos fundadores queriam ir mais longe. Queriam uma organização que também fosse capaz de proteger os direitos humanos, promover a liberdade e fazer respeitar o direito internacional. Era também muito claro que tudo isto teria de ser equilibrado com a necessidade de garantir que as potências principais manteriam o compromisso com a futura instituição. Fazer o que fosse preciso para manter os aliados de guerra dentro da organização da paz foi decerto uma diferença radical face à SDN: o poder de veto negociado em Dumbarton Oaks entre Estaline, Roosevelt e Churchill e alargado aos outros membros do Conselho de Segurança foi o resultado.

A ONU ficou marcada por todas essas contradições. Por um lado reconhecendo a qualidade soberana dos seus membros e, por outro, institucionalizando a ideia de uma hierarquia entre eles e ainda salvaguardando que os assuntos internos de cada Estado não estão completamente imunes à atenção internacional. Apesar destas contradições as NU não deixaram de ser vistas como uma organização que prossegue um ideal de comunidade internacional apoiada numa base ética com o qual estão comprometidos quase todos os estados independentes do planeta Terra. A não concretização dos ideais não desmente a sua validade nem impede que constituam o objectivo contra o qual são medidos os comportamentos dos estados-membros e da ONU.

O que se espera de um historiador é que contribua para esclarecer este debate contando a história dos seus muitos antecedentes. Citando Akira Iriye6, poderíamos dizer que em lugar de uma mão-cheia de impérios grandes e poderosos providenciando regras e estabilidade no mundo, agora, depois da ii Guerra Mundial, os estados soberanos deveriam agir ao mesmo tempo como garantes e constituintes do sistema internacional. Os ex-impérios agora destituídos de colónias, as novas colónias descolonizadas e os países que já eram independentes sem terem sido coloniais – todos seriam jogadores iguais na ordem mundial pós-guerra. […] O denominado sistema de Vestefália de estados soberanos que tinha fornecido o enquadramento normativo para os assuntos internacionais europeus desde o século XVII seria agora aplicado a todo o globo. A organização internacional já não seria baseada numa divisão vertical do mundo entre poderes que governam e o resto mas teria um sistema de cooperação horizontal entre as nações com um estatuto formal de igualdade.

A história da segunda metade do século XX mostra que os estados soberanos são tão-pouco capazes de produzir uma ordem internacional estável como os impérios antes de si. As guerras entre estados após 1945 produziram quase tantos mortos como a II Guerra. Salvo raras excepções as NU mostraram-se incapazes de prevenir tais conflitos sempre que os interesses nacionais colidiam. Muitas vezes se diz que o sistema internacional pós-II Guerra foi produto da Guerra Fria em que os Estados Unidos e a URSS de facto dividiram o globo entre esferas de influência equilibradas. Seja como for, os dois países conseguiram evitar que irrompesse uma terceira guerra mundial. E os Estados Unidos nunca abdicaram do princípio da autodeterminação; nem a URSS abriu mão da ideologia do anti-imperialismo. Ambos se envolveram com diversos movimentos de libertação anticoloniais. E, entretanto, os novos estados independentes declararam-se não-alinhados e passaram a regatear os ditames dos antagonistas da Guerra Fria. O nacionalismo não se submete.

Em 1648, o Tratado de Vestefália trouxe consigo o Estado moderno, e com ele o fim do tradicional romance que, dado por antiquado, caiu de moda, substituído pela novela, mais curta, mais urbana, sobretudo acompanhada por uma vaga de petite histoire ou «novelas históricas», de que o mais notável bestseller foi o Princesse de Clèves (1678), saído da pena de Madame de La Fayette.

Agora, a crise do Estado parece também trazer uma crise sobre o contar da História. Cada vez surgem mais historiadores que em vez de nos seduzirem com intrigas de alcova de reis e rainhas, nos vêm confundir com referências truncadas e maçar-nos com moralizações pedantes sobre a «hipocrisia» de exercícios de poder que não se conformam ao Zeit Geist. A imaginação política não está a conseguir imaginar respostas às novas formas de violência e insegurança! Que pena.

 

Notas

1 SHIMAZU, Naoko – Japan, Race, and Equality: The Racial Equality Proposal of 1919. Londres: Routledge Press, 1998, p. 4.

2 Artigo 1.º: todos os povos têm o direito à autodeterminação. Em virtude deste direito estabelecem livremente a sua condição política e, desse modo, providenciam o seu desenvolvimento económico, social e cultural.

3 TUDJMAN, Franjo – Nationalism in Contemporary Europe. Boulder: East European Monographs, 1981, p. 13.

4 Cf. GROSSMANN, Atina – Jews, Germans, and Allies: Close Encounters in Occupied Germany. Princeton: Princeton University Press, 2009.

5 «Wartime nostalgia blinds us to Britain’s changed realities». in The Guardian, 2 de Setembro de 2009. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2009/sep/02/second-world-war-nostalgia-myths/print

6 IRIYE, Akira – «Beyond imperialism: the new internationalism». in Dædalus, Primavera de 2005. Disponível em: http://hnn.us/articles/13601.html