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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.27 Lisboa set. 2010

 

O Atlântico esvaziado

 

Luís Pais Bernardo

Licenciado em História pela FCSH–UNL. Mestrando em Política Comparada no ICS–UL.

 

Henrique Raposo

Um mundo sem europeus – Barack Obama entre o fim do eurocentrismo e o novo ocidente

Lisboa, Guerra & Paz, 2010, 376 páginas.

 

 

Em Portugal, a divulgação científica, no campo das relações internacionais, tem conhecido, recentemente, um impulso significativo. O consenso em relação às propriedades estruturais complexas emergentes da interacção internacional, aliado ao crescimento maciço da quantidade de informação disponibilizada pela internet, tem contribuído para exponenciar o crescimento de uma riquíssima área editorial. A edição de Um Mundo sem Europeus – Barack Obama entre o Fim do Eurocentrismo e o Novo Ocidente insere-se nesse movimento. Henrique Raposo, enquanto académico e cronista, procura, num registo pedagógico e narrativo, alertar a elite intelectual europeia – o público-alvo do volume em análise – contra a tentação de um «suicídio intelectual» (cap. VIII), que não permitiria, à eurocracia, «percepcionar» (sic) a ascensão asiática na sua dimensão «real». Ou seja, enquanto redefinição discursiva e normativa das representações do poder, enquanto modelo de acção política, redistribuição do poder e capacidade coerciva aferível com base em indicadores mensuráveis. Em suma, a ascensão normativa e estratégica da Ásia é, para o autor, o grande evento e a grande questão estrutural e estratégica do século XXI; aqueles que não compreendem e aceitam esta representação do sistema internacional e respectivas propriedades estruturais pertencem à obsoleta escola pós-estatal habermasiana. A Europa está, portanto, condenada à irrelevância.

 

Escavar a república e redescobrir os pilares da comunidade internacional

Um Mundo sem Europeus está dividido em duas partes. Na primeira, o autor procura discutir os pilares institucionais da República americana, estabelecendo uma dicotomia simplista entre dois paradigmas, corporizados no institucionalismo conservador de Alexander Hamilton e no idealismo revolucionário de Thomas Jefferson e Thomas Paine. Raposo defende que a política externa americana é uma função do primado de Hamilton; o realismo conservador permeia, a seu ver, o processo de tomada de decisões relativo à presença americana na comunidade internacional. A existência de uma confederação kantiana transpacífica, dada a presença do Japão e da Índia, torna manifesta a necessidade de recentrar o debate em torno da política externa americana, matizando a relevância do neoconservadorismo e das questões securitárias na produção de política externa. Conclui-se, portanto, que o autor não comunga da perspectiva estrutural-realista. De facto, «a política externa de um qualquer Estado só é compreensível quando estudamos a história desse mesmo Estado, sendo que esse estudo é feito de variáveis qualitativas (e aronianas) bem precisas» (p. 72). Assim, o desenho de investigação de Raposo propõe-se identificar variáveis independentes, de carácter qualitativo, que expliquem as tomadas de decisão em torno das opções de conduta externa da República americana. Em seguida, através de uma longa dissertação na área da história das ideias, procura identificar os caracteres matriciais da arquitectura política dos Estados Unidos que explicam a resposta americana à ascensão da Ásia.

Na segunda parte, o autor procura desenvolver a ideia dúplice de que o eurocentrismo, com a transferência do centro de gravidade da comunidade internacional para o Pacífico, é uma mundivisão datada e, acima de tudo, perigosa, porque impõe limites epistemológicos graves aos decisores europeus. Além disso, a existência de uma confederação kantiana com membros no Pacífico e no Índico demonstra, de igual modo, que está em curso uma reconfiguração geográfica do conceito de «Ocidente». A Ásia, enquanto gigante renascido, exige um lugar cimeiro nas estruturas de governo da globalização e a legitimação da sua mundividência normativa. Vivemos num mundo pós-atlântico e transpacífico.

O tema dominante da obra é a tensão entre dois paradigmas. A «constelação pós-nacional», constructo de Jürgen Habermas, conflitua, na opinião de Raposo, com o pensamento estratégico da power politics realista. De acordo com o filósofo alemão, as questões de segurança, transnacionais e porosas, que têm ocupado a agenda mediática e política, devem ser desposicionadas pelas questões estratégicas, nomeadamente as associadas à ascensão da Ásia (a qual, de acordo com o enquadramento analítico do autor, parece limitar-se a uma parcela da Índia, do Japão e da Oceânia). A Europa tem de voltar às considerações estratégicas e à macropolítica estatal.

 

Etiquetas realistas e modelos idealistas

Um Mundo sem Europeus recicla uma tese relativamente banal. A Ásia está em ascensão e, enquanto os decisores europeus se atarefam a discutir questões securitárias de curto e médio alcance, os Estados Unidos perseguem o seu verdadeiro manifest destiny através da aproximação às potências asiáticas em ascensão.

A obra denota problemas sérios na falta de precisão, esquematismo e enviesamento bibliográfico com que apresenta e sustenta os seus argumentos.

No que respeita à imprecisão, referimo-nos à tensão artificial, criada pelo autor, entre o mundo ideativo e o mundo empírico, duas esferas supostamente estanques e destrinçáveis. O idealismo patente na primeira parte de Um Mundo sem Europeus onde não se apresenta uma teoria empírica da mudança institucional que explique, de forma convincente, os reposicionamentos constantes da política externa americana, parece-nos demasiado tributária de Platão, Berlin ou Collingwood. Transparece uma tendência psicologizante, contrabalançada por um ímpeto materialista que leva o autor a enumerar estatísticas aleatórias (i.e., pp. 68-70), com o intuito de ilustrar «factos», por oposição a «opiniões». Ainda que uma tal dicotomização funcione dentro de um paradigma neopositivista, o autor afirma-se explicitamente adepto de uma perspectiva pós-positivista, que releva a importância das representações e da construção discursiva da legitimidade sistémica. Mas o autor persiste numa tensão artificiosa que se torna aborrecida, dados os limites auto-impostos.

Esta deficiência analítica parece-nos mais grave devido ao tom moralizante e sobranceiro do autor, fértil em expressões arrasadoras [«A globalização […] está a desenvolver uma fase asiática, a reboque dos biliões de capitalistas chineses e indianos» (p. 68); «E, convém dizê-lo, estas elites não-europeias estão absolutamente certas» (p. 183); «A mente eurocêntrica trabalha sempre a partir destas datas [1989 e 2001]» (p. 205); «Os europeus vivem numa mentira» (p. 249)]. Assim, Um Mundo sem Europeus não sustenta, de forma convincente ou inovadora, a noção de que é necessária mais uma obra acerca da ascensão da Ásia e de que a mesma representa, na verdade, uma revolução kuhniana traída pela estupidez dos europeus decadentes; é imprecisa na formulação dos conceitos e manifesta dificuldades na fase do desenho de pesquisa e na recolha bibliográfica, já que, de acordo com Henrique Raposo, todos os outros autores parecem cometer erros óbvios e gravosos. Não encontramos uma definição clara de comunidade, sociedade ou sistema internacional, poder (ou uma discussão das várias acepções deste conceito difuso), polaridade ou legitimidade; não é discutida a importância da complexidade emergente que decorre da multiplicação de agentes num sistema fechado (falha grave, dado que já existe uma literatura significativa nesta área). O autor manifesta duas certezas inabaláveis: o mundo é pós-atlântico e rejeitou o eurocentrismo como narrativa. Ainda que a realidade pareça menos legível do que Henrique Raposo pretende.

O esquematismo da obra é evidenciado pela necessidade de recurso a dicotomias simplistas. A divisão clara entre aqueles que estão certos – adeptos da grande estratégia, da unipolaridade transpacífica e da confederação kantiana – e errados – adeptos do securitarismo habermasiano, da multipolaridade acêntrica e da constelação pós-estatal – é, claramente, o tema mais relevante desta obra, ainda que o autor pretenda discutir uma putativa transição paradigmática. Além disso, a representação dos mundos transatlântico e transpacífico como mutuamente exclusivos denota uma percepção mecânica da distribuição e produção de poder no contexto internacional. Essa é a única conclusão a tirar de um título como Um Mundo sem Europeus, onde a unipolaridade lega, aos Estados Unidos, um carácter imanente.

O problema mais sério da obra, na nossa opinião, é o enviesamento resultante da selecção bibliográfica de suporte. Ainda que, num contexto de divulgação, o rigor científico seja necessariamente negociável, a inexistência de qualquer referência a escolas epistemológicas do campo disciplinar das relações internacionais, como o construtivismo e o neo-gramscianismo, que têm abordado questões próximas àquelas que Raposo discute, especialmente no que concerne à construção social do poder e da legitimidade, é difícil de entender. Além, refira-se, de autores clássicos e heterodoxos como André Gunder Frank – o qual, no seu último volume, desconstrói a ideia de uma ascensão asiática (dado que a Ásia nunca teria descendido da posição cimeira no sistema-mundo); o novo institucionalismo, em ciência política, tem contributos específicos a dar, na área da produção de política externa. Quanto à questão do eurocentrismo, uma plêiade infindável de estudos pós-coloniais, a nível discursivo, e esforços multilaterais descentrados tem demonstrado, desde há mais de uma década, a falência dessa narrativa. Em conclusão, o fantasma eurocêntrico de Henrique Raposo existe, apenas, enquanto recurso estilístico e retórico.

 

Os europeus ainda estão vivos

A publicação do estudo de um autor português, em relações internacionais, que pretende produzir macroteoria, à imagem de Braudel, McNeill, Toynbee ou Zakaria, é louvável e merece um elogio. Contudo, a produção académica que pretende obter resultados através da contestação acrítica a uma suposta narrativa dominante incorre, inevitavelmente, no risco de se tornar banal e inconsequente. Um Mundo sem Europeus não é um policy paper ou um manual; é, apenas, mais um estudo pouco conseguido em torno da reconfiguração e redistribuição do poder no século XXI, que necessita de várias revisões e maior abertura epistemológica, se vier a tornar-se no tomo ambicionado pelo autor.