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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.27 Lisboa set. 2010

 

Este século não foi fascista. Salazar, Franco e a efémera nova ordem internacional nazi-fascista

 

Bruno Cardoso Reis

Licenciado e mestre em História (Faculdade de Letras de Lisboa). Tem o mestrado em Historical Studies pela Universidade de Cambridge (2003). É doutor em Segurança Internacional (War Studies, King’s College) desde 2008, e a sua tese sob o título Big Armies and Small Wars deverá ser publicada durante o próximo ano. Em 2007, publicou Salazar e o Vaticano, que recebeu os prémios Vítor de Sá e Aristides de Sousa Mendes. É actualmente investigador no ICS–UL e investigador associado do King’s College; sendo membro do CEHR–UCP, do IISS e da APCP.

 

Manuel Loff

«O Nosso Século É Fascista!» O Mundo Visto por Salazar e Franco (1936-1945).

Porto, Campo das Letras, 2008, 956 páginas.

 

 

Este é um grande livro em termos de tamanho, estende-se por quase mil páginas – o que revela uma coragem, de assinalar, da editora Campo das Letras – e também em ambição. O autor previne o leitor, no entanto, de que, infelizmente, esta é ainda assim uma versão amputada do texto original, da qual retirou, nomeadamente, discussões aprofundadas de metodologia e bibliografia (p. 9).

Seria efectivamente interessante perceber melhor qual a metodologia comparativa adoptada, e nomeadamente o porquê da selecção destes dois casos; e, também, qual o critério de selecção das fontes usadas. Até porque o autor frequentemente aponta variados casos de colaboração com a nova ordem nazi como muito relevantes para os seus argumentos, desde a Finlândia, à França de Vichy, da Suíça à Croácia dos ustachas. Porquê então ficar-se, no essencial, por Portugal e Espanha? Por outro lado, o papel central, como fontes da obra, de textos de diplomatas enviados à Alemanha nazi ou de ideólogos dos regimes ibéricos levanta a questão de saber até que ponto não seria natural esperar destes que fossem, tendencialmente, mais favoráveis à aproximação do regime português e espanhol com o Estado nazi alemão.

Tendo em conta o vasto texto que nos é dado em forma de livro, nada melhor do que recorrer ao próprio autor para sintetizar com um mínimo de rigor os principais temas da obra referindo os títulos de sucessivos capítulos: «As ditaduras ibéricas na nova ordem eurofascista»; «Os pressupostos ideológicos»; «História e Império»; «Saneamento político da Europa»; «A nova ordem como corolário da evolução recente europeia»; «Do projecto à prática: a construção da nova ordem»; «Perante a colaboração e a resistência», terminando com «Várias conclusões».

Desta ambiciosa listagem temática fica claro que Manuel Loff foi bem além daquilo que o título da obra parecia apontar como seu objectivo: apresentar a visão do mundo de Salazar e Franco no quadro da discussão sobre o impacto do fascismo na Europa. Ora, se o autor se cinge ao período referido no título – desde o início da Guerra Civil de Espanha até ao final da II Guerra Mundial (1936-1945) –, quer nas temáticas abordadas, quer nas fontes utilizadas, vai muito para além do que seria necessário e desejável, caso pretendesse comparar a forma como Salazar e Franco viam o mundo exterior.

O que faz então Loff com tão ampla base documental? O autor tem uma escrita barroca, o que, a par da dimensão da obra, nem sempre permite discernir uma linha condutora clara. Mas o que vai ficando como ideia de força ao longo da obra é que Loff pretende avançar com uma abordagem revisionista da história da relação entre as duas ditaduras ibéricas, de Salazar e de Franco, e a nova ordem internacional do regime nazi. Loff prenuncia-se também sobre a natureza desta e as múltiplas especulações que gerou por toda a Europa.

Este revisionismo da obra é consequência de uma avaliação negativa da maioria das obras existentes na historiografia ibérica relativamente à natureza dos regimes de Salazar e Franco, bem como à sua relação com o regime nazi. Essa deficiência da literatura histórica resulta, do ponto de vista do autor, da ignorância dos arquivos alemães, da falta de perspectiva comparativa e também de parti pris ideológicos (pp. 50-69)1.

 

Salazar e Franco convergindo com Hitler

Qual é então, em síntese, a novidade desta vasta obra? Loff vai assinalando, no meio de um apreciável manancial de informação – com algumas significativas hesitações e qualificações – uma tese alternativa à dominante que consiste no essencial em amalgamar os dois regimes ibéricos numa adesão optimista à nova ordem nazi, mesmo que se vá assinalando que tal é mais claro no caso do regime de Franco do que de Salazar. Loff parece ver este relacionamento como sendo essencialmente mimético, de imitação do nazi-fascismo pelos dois regimes ibéricos. Loff considera ainda que esta ideia define, no essencial, o regime de Franco e Salazar não só neste período dos anos 1930 e 1940, visto por muita historiografia como algo fascizante (mais em Espanha do que em Portugal), mas também nas décadas subsequentes. Ou seja, para Loff a aparente vitória nazi entre 1940-1941 terá sido o momento revelador definitivo da verdadeira natureza dos regimes salazarista e franquista, e não uma oportunidade para sectores mais pró-nazis e pró-fascistas de regimes autoritários compósitos procurarem ganhar terreno. Considera ainda Loff que esta matriz ideológica comum é fundamental para perceber uma política externa de colaboração activa com o regime nazi (pp. 17-50).

Um exemplo das qualificações que tornam a argumentação por vezes algo paradoxal é a afirmação da necessidade de não confundir ideologia com prática (p. 902). Mas, se é assim, então qual é a relevância da ideologia em que o estudo foca a sua atenção? Simples retórica vazia? Qual é afinal a sua relação com a prática política? Ora o autor logo na página seguinte (p. 903) oferece uma lista de pontos de convergência ideológica e prática entre os regimes ibéricos e os regimes que o autor considera pertencerem à esfera nazi-fascista. Mas se a questão anterior é deixada em aberto, então o leitor poderá perguntar o que importa o maior ou menor alinhamento ideológico de Salazar ou Franco com o nazi-fascismo?

É o lado mais inovador e revisionista da obra de Loff convincente? Não creio que o seja inteiramente. Loff adopta uma postura de advogado de acusação. Um advogado suficientemente honesto para dar alguma voz à outra parte. Mas a sua argumentação fica assim enfraquecida quando procura encarrilar a «prova» no sentido de uma acusação que no essencial consiste em dizer que os regimes de Franco e de Salazar se revelaram favoráveis à vitória nazi na guerra na Europa quando esta pareceu inevitável. O que se passou nesta época não foi, portanto, uma adaptação a uma determinada conjuntura na política externa, com reflexo nos equilíbrios de poder dos diversos sectores das ditaduras ibéricas e na sua organização, como se verificou pós-1945, antes foi o momento da verdade que deixou uma mancha indelével que marcou a real natureza dos regimes ibéricos como nazi-fascistas (pp. 32-34, 57-59 passim).

Ora, à luz de elementos e fontes do próprio Loff não é convincente a amálgama dos dois regimes ibéricos. Não é convincente a ideia de uma participação de ambos na nova ordem nazi. A fraqueza da tese de Loff é sobretudo evidente no caso de Portugal, que seria onde o livro teria mais de inovador face às teses dominantes. Pois a ideia de um sério desejo de alinhamento de Franco com Hitler é bem conhecida e geralmente aceite, e o mito pós-II Guerra Mundial, de um caudilloengenhosamente a inventar dificuldades e exigências para não entrar na guerra ao lado da Alemanha nazi não é convincente para a maioria dos historiadores2.

É difícil levar a sério a ideia de um Estado Novo português aderente entusiasta de uma nova ordem nazi, quando o segundo conde de Tovar, um testemunho considerado fundamental por Loff, e o máximo representante diplomático de Portugal na Alemanha nazi, começa o seu extenso relatório sobre «A Ordem Nova» de 15 de Novembro de 1941 afirmando que não lhe teria sido possível manifestar adesão de espécie nenhuma pois «ainda não encontrei em Berlim um único alemão que se prestasse a discutir francamente comigo a Ordem Nova»3!

Loff não tem, por outro lado, em devida conta na pesagem dos argumentos dos relatórios deste diplomata português em Berlim – a que dá tanta importância – o facto de Tovar ter simpatias ideológicas pela Alemanha nazi e ter sido enviado para Berlim precisamente por poder cultivar boas relações com esta grande potência em ascensão, e portanto ter de se considerar até que ponto nos seus testemunhos não tenderá a exagerar os pontos de entendimento, presentes e futuros, entre os regimes de Hitler e Salazar.

Que o optimismo de Tovar não era o único ponto de vista, fica evidente não só nos ofícios dos politicamente bem mais importantes representantes de Portugal em Londres, Armindo Monteiro, e em Madrid, Teotónio Pereira, mas também num longo estudo produzido no seio do coração da diplomacia portuguesa, no próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros, também sobre o tema de uma nova ordem das potências totalitárias em que sublinha que esta «não se nos afigura de molde a garantir uma paz duradoura […] salvo se essas Potências se decidirem a exercer de facto uma absoluta soberania sobre todo o continente», o que, evidentemente, significaria que os «pequenos países» como Portugal estariam «destinados a desaparecer», pelo que «as minhas conclusões não me levam a concluir que a organização vá por diante» (pp. 599-600). Como é que Loff pode falar deste estudo como manifestando «ambiguidade» face a uma Ordem Nova nazi é algo que não percebemos.

Tanto mais que o próprio Salazar dá uma resposta muito significativa ao palavroso relatório de Tovar sobre a nova ordem nazi – em carta a Tovar –, considerando que não valia muito a pena especular sobre qual será a nova ordem na Europa, pois «seja qual for a potência vencedora» ela irá procurar esse reordenamento. Salazar está longe portanto da confiança cega na vitória do Eixo que Loff parece creditar. E, por outro lado, para melhor se perceber as concepções de Hitler remete para o Mein Kampf como explicitando os termos da lei do mais forte na vitória a que Hitler aderiria. Salazar rejeita, portanto, a assimilação de Tovar da Ordem Nova nazi à velha cristandade, até porque «a unidade moral da Europa se perdeu» e antes a ela presidia o Papa…

Para Salazar o problema fundamental é que uma ordem uniforme do tipo da que aparece esboçada por Tovar a partir das acções nazis terá de ser imposta, e embora os estados não sejam realmente todos iguais, e todos igualmente livres, ainda assim a soberania e a liberdade «existem» nos limites do possível. Portanto, para Salazar a questão vital reside em saber «como vão salvar-se nessa obra [i.e. Ordem Nova] a personalidade, a independência, a liberdade dos Estados europeus? A pergunta é angustiante, a resposta pode ser catastrófica». É que, continua Salazar, «a obsessão do sistema, da ordem externa, da uniformidade, do domínio tanto do carácter alemão, pode ser ruinoso para a independência e originalidade das nações europeias». Recorda Salazar a «teoria da raça, o emprego da violência, as repressões indiscriminadas que se afiguram desumanos, o desconhecimento, quando necessário, dos direitos alheios» como pontos que justificavam as suas preocupações e que levavam a que se refira a Hitler em termos de que «por esse lado nenhuma garantia de segurança ou tranquilidade» se poderá encontrar. E concluía mostrando evidente preferência por uma nova ordem inglesa, pois caso a Grã-Bretanha prevalecesse na II Guerra Mundial com a ajuda dos Estados Unidos, a tradicional moderação e pragmatismo inglês «oferecem só por si alguma garantia»4.

 

Hitler, fundador de uma nova ordem europeia?

A obra de Loff debate-se em vão com este problema adicional: a nova ordem internacional desejada por Hitler apenas tinha um ponto absolutamente claro – o total predomínio da Alemanha nazi e da raça superior, e a ausência de quaisquer compromissos sólidos a priori em relação a quem quer que fosse e sobre o que quer que fosse antes de vencida a guerra.

Claro que Mussolini, e os líderes da Hungria e da Bulgária, e mesmo, eventualmente, da Roménia, conseguiram concessões territoriais; a Croácia e a Eslováquia viram ser-lhes concedido formalmente um Estado independente. Mas como o decurso da II Guerra mostrou, em última análise, Hitler não estava disposto a aceitar realmente alianças com outros estados independentes, apenas relações de fidelidade hierárquica. Quando pressionado por Mussolini e diversos outros líderes de regimes pró-alemães a responder à Carta do Atlântico (1941), onde Churchill e Roosevelt se afirmavam como defensores da independência dos estados europeus, Hitler recusou terminantemente 5.

Este ponto é particularmente relevante no que diz respeito a Franco e ao seu regime, que bem procuraram que Hitler se definisse e fizesse firmes concessões a Espanha de um novo império em África, a expensas sobretudo da França. Mas Hitler sempre se recusou a tal, excepto relativamente a Gibraltar. Loff parece considerar este facto secundário, valorizando sobretudo o entusiasmo dos fascistas espanhóis com uma nova ordem internacional em que finalmente o seu país teria de novo o estatuto de grande potência e os territórios que nessa qualidade lhe eram «devidos». Loff alude mas nunca lida verdadeiramente com um problema que está na base da enorme dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de construir uma ordem internacional – ou seja, comportando vários estados – nazi-fascista a partir de 1939, que resultava do facto de as várias correntes políticas de extrema-direita que mimetizaram com maior ou menor empenho ou sucesso o modelo fascista e nazi em diferentes países também elas abraçarem uma ideologia política ultranacionalista de expansionismo imperialista. Esse é o caso da Espanha de Franco, mas não só. Ora, além de Hitler não desejar comprometer antecipadamente futuros despojos de guerra alemães, ser-lhe-ia impossível, mesmo que o quisesse, reconciliar todos estes imperialismos de aliados ideologicamente zelosos, mas desejosos de construir grandes estados imperiais que não aceitavam outra lei que não a da força. O cerne do problema era que o mundo não era suficientemente vasto para satisfazer tantas ambições de expansão imperial em competição. Por exemplo, Hitler não podia manter um império colonial francês muito útil como subordinado à Alemanha nazi, e ao mesmo tempo oferecer boa parte desses territórios, como desejava Franco, a uma Espanha fraca, que seria incapaz de os conquistar ou defender face aos britânicos e norte-americanos.

 

Os limites da ideologia e do revisionismo

E esta temática leva-nos ao ponto fundamental na análise da obra de Loff, e que diz respeito à forma como o autor situa Salazar e Franco neste contexto.

Em 1940, Franco estava, como Loff e muitas obras mostram, desejoso de entrar na II Guerra Mundial ao lado do vitorioso Hitler. Fica também claro mais uma vez neste livro que muitos dos que o rodeavam esperavam fazê-lo por razões ideológicas – nomeadamente o mais fascista dos seus ministros, Serrano Suñer, que tinha uma agenda expansionista externa, mas também considerava o alinhamento na guerra com o regime nazi como essencial para poder levar a cabo uma agenda interna de plena fascização do regime espanhol. Mas o que fica assim demonstrado é precisamente que o regime de Franco era menos ideologicamente uniforme ou absolutamente determinado do que Loff parece afirmar.

Afinal, se, em última análise, Franco fosse o fascista puro e duro que Loff parece querer oferecer-nos, então deveria ter alinhado totalmente com Hitler. A simpatia ideológica e a ambição imperialista inegavelmente turvaram durante alguns anos a visão externa de Franco, levando-o, até muito tarde, a dar por adquirida uma vitória de Hitler e de Mussolini. Mas, em última análise, na ausência de uma ajuda militar significativa e de um compromisso territorial claro quanto a um novo grande império espanhol por parte de Hitler – que este recusou na Cimeira de Hendaia com Franco em Outubro de 1940, e nas démarches que se lhe seguiram –, Franco optou por ficar de fora da guerra, enviando apenas uma ajuda simbólica para combater a URSS, e mesmo esta foi retirada quando a derrota da Alemanha pareceu inevitável. Portanto, apesar das convergências ideológicas entre o franquismo de guerra e o fascismo e nazismo, havia limites realistas no campo das decisões de política externa a essa adesão ideológica de Franco, e o regime espanhol foi por isso bem mais pragmático, adaptável e durável do que o de Hitler ou Mussolini.

Salazar era conhecido pela sua admiração pública por Mussolini, e não negava que estava ideologicamente mais próximo dos regimes fascistas europeus do que das democracias liberais. No entanto, ainda mais claramente do que no caso de Franco, Salazar explicitou repetidamente, quer na sua correspondência privada e diplomática, quer em discursos e textos públicos (inclusive publicados em francês evidentemente para informação das elites internacionais), as diferenças pragmáticas e ideológicas com a Itália e a Alemanha. Salazar via-se como parte de uma vaga de novas ordens no campo político, mas estas eram e deviam ser plurais e nacionais. Não deixa de espantar, no entanto, que numa obra tão vasta e tão atenta a fontes públicas e publicadas, à propaganda e não apenas à diplomacia – uma importante mais-valia da obra – não tenhamos encontrado qualquer referência, sequer na bibliografia, por exemplo, à tradução francesa, em 1937, pela Flammarion, dos discursos de Salazar, com um prefácio do conde belga Maeterlink – um intelectual público que se via e era visto como hostil à Alemanha nazi – a ponto de ter fugido para Portugal aquando da invasão nazi –, e com uma introdução escrita pelo próprio fundador do Estado Novo em que este clarifica as diferenças com as ideologias nazi e fascista com as quais aceita que existem «certas semelhantes» mas rejeita como abusiva uma assimilação, uma «confusão» de uns e outros6.

É estranho também que Loff não dê relevância ao discurso perante a Assembleia Nacional em que Salazar situou oficialmente Portugal perante «A Europa em guerra», em 1939, e que evidentemente constituiu um compromisso público muito sério, e como tal foi tratado pelas diplomacias das potências beligerantes e não só. Nele, Salazar deixou não só absolutamente claro o seu compromisso formal com a aliança da Grã-Bretanha – a que, pode-se argumentar, estaria diplomaticamente obrigado –, como até reservou uma palavra de reveladora simpatia pelo heroísmo da fraca Polónia invadida pelo forte Hitler! Nesse discurso afirmou também em termos cristalinos a recusa de determinar a sua política externa em função da sua ideologia política interna:

«algumas pessoas as preocupa, sobretudo, saber as consequências que da guerra advirão para as democracias ou para os regimes de autoridade, e por aí determinam os seus íntimos desejos. Atrevo-me a dizer que a questão é indigna de nós: primeiro, porque só os povos que não sabem governar-se é que estão à espera de saber como os outros se governam […]; segundo, porque ou nesta guerra se não discute nada ou estão em jogo problemas de tal transcendência que a seu lado parece trágica ou ridícula a preocupação de situações políticas. […] foi bem dura a experiência de se complicarem os problemas da vida internacional com a formação de blocos ideológicos e com prevenções acerca dos regimes internos dos Estados, e seria desesperar da salvação reincidirem no erro»7.

Na realidade, Salazar e outros membros da elite do Estado Novo preocuparam-se com o impacto no regime de uma vitória total dos Aliados, sobretudo quando neles se passou a incluir a URSS a partir de 1941. Mas isto está longe de significar que desejassem uma vitória da Alemanha nazi, pelo temor do que isso significaria para a independência dos pequenos estados europeus como Portugal, mesmo que Salazar não afastasse a necessidade de ter de se chegar a alguns compromissos com uma Alemanha vitoriosa.

Porém, foi constante na diplomacia portuguesa durante a II Guerra Mundial não só a afirmação da vontade de ficar de fora do conflito europeu, como a de que a entrar nela seria necessariamente ao lado da Grã-Bretanha.

Independentemente da velha aliança, era aliás da Royal Navy, e da cada vez mais poderosa Marinha norte-americana, que poderia vir uma ameaça imediata à maioria dos territórios portugueses – europeus, insulares e africanos. Um ponto interessante que Loff documenta é precisamente o facto de que mesmo os adeptos da beligerância espanhola ao lado de Hitler, como foi o caso da então estrela emergente, e futuro almirante, Carrero Blanco, estarem cientes desses riscos marítimos, que no caso da Espanha significariam a inevitável perda das Canárias e da Guiné Espanhola para os britânicos (p. 631).

No caso de Portugal, quando a ameaça terrestre alemã passou de remota a mais próxima, com a surpreendente derrota da França em 1940, a opção seguida por Salazar foi – como a historiografia documentou com base em abundantes fontes – a de, conjuntamente com a Grã-Bretanha, fazer todos os esforços para manter a Espanha fora da guerra, como tampão de Portugal.

Relativamente ao caso da Espanha, a aversão do homem de confiança de Salazar em Madrid, Pedro Teotónio Pereira, pelo mais germanófilo ministro espanhol – Serrano Suñer – está bem documentada. E se Teotónio Pereira até oferece bases para a tese de Loff, e de boa parte da historiografia recente, relativamente à aproximação da Espanha ao Eixo, fá-lo na sua correspondência com Salazar em termos tais que mostram a impossibilidade de aplicar a mesma tese a Portugal. Ao escrever, em Setembro de 1939, Teotónio Pereira manifesta «cada vez […] mais apreensão sobre as ideias do Generalíssimo». Ora, o que é que lhe causa tanta preocupação? Refere que em várias conversas com membros de confiança da elite franquista «todos concordaram que a Alemanha passara as marcas da tolerância e que a Itália se encontra em posição desgraçada», mas em relação a Franco, Teotónio Pereira concluía: «acho-o um homem estranho e muito deslumbrado pelas ideias do eixo»8.

É possível defender que Salazar foi, em certa medida, um adepto do appeasement entre a Grã-Bretanha e Hitler, como afirma Loff (p. 602). Mas, precisamente por isso, o ditador português nunca foi um adepto ou seguidor de uma nova ordem europeia nazi – pois precisamente o apaziguamento tinha como pressuposto que haveria certas cedências que permitiriam alcançar um limite negociado e razoável à expansão alemã que apaziguaria Hitler. E importa ainda notar que mesmo na medida em que Salazar o era, não deixava de o ser com receio de que algum acordo de divisão da esfera de influências entre a Grã-Bretanha e a Alemanha pudesse ser feita à custa do império colonial português.

Também nos parece evidente e normal que os homens do regime se preocupassem com o seu futuro numa Europa dominada não tanto pela Grã-Bretanha, mas mais pelos Estados Unidos e a pela URSS. Que houve algum receio destas duas últimas potências é inegável; o que é notável e notório, no entanto, é que o maior temor de Salazar e dos seus mais próximos colaboradores no campo da política externa fosse relativamente à Alemanha nazi, e não apenas por razões geopolíticas mas também ideológicas, por a estes homens conservadores assustar o revisionismo extremamente violento e insaciável de Hitler.

 

Nem século fascista, nem relações internacionais

Desmentindo o título do livro, o último século não foi fascista. Não o foi porque o nazismo e o fascismo perderam. Não o foi porque nunca chegou verdadeiramente a existir uma ideia clara de uma nova ordem europeia fascista na mente de quem a poderia ter implementado – Hitler.

Um dos factos fundamentais do século XX foi precisamente o facto de a vaga fascista que a partir de 1922 varreu parte da Europa, com um aspecto irresistível a dado momento, ter sido tão brutal nos resultados quanto limitada cronologicamente, tão ambiciosa quanto confusa e desorganizada, tão violentamente implementada quanto resistida, tão desastrosa quanto contrária às tradições das relações internacionais na Europa.

Muito embora o fascismo e o nazismo tenham influenciado ou condicionado outros regimes autoritários de direita, os reais movimentos-partidos de tipo nazi-fascista raramente, se é que de todo, se afirmaram no poder pelos seus próprios meios, sem a intervenção militar de Mussolini e Hitler. Ora, em Portugal, Salazar dominou, apoiando-se na corrente militar republicana conservadora a partir de 1928. Em Espanha, Franco tomou o poder à frente de um exército vitorioso na guerra civil de 1936-1939, com o apoio militar de Hitler e Mussolini, mas ainda limitado pelo contexto geopolítico, e o suporte da Falange, mas também de outras correntes políticas.

Hitler prometeu um grande império alemão de pelo menos mil anos, mas o seu período de expansão, embora impressionante na sua dimensão, durou apenas entre 1938 e 1942! Este carácter efémero da preponderância nazi-fascista – na verdade, essencialmente nazi – é secundarizado na análise de Loff, que se concentra em tentar tornar claro, nítido e duradoiro aquilo que nunca o foi.

Nunca houve uma nova ordem nazi-fascista na Europa, apenas uma expansão militar nazi assente num imperialismo racista liderado por Hitler, que aceitou por razões de conveniência aliados vários.

Quanto à contribuição de Loff para o estudo das relações internacionais neste período, ela não existe, visto que é o próprio autor que explicitamente rejeita este tipo de abordagem. Loff considera até as relações internacionais e a sua influência nas obras históricas que se debruçaram sobre estes temas como algo nefasto. Porquê? Loff identifica ainda as relações internacionais com uma versão do realismo clássico determinista e dominado pela Realpolitik e a geopolítica (pp. 53-54). O que impede que o seu trabalho seja enriquecido com as abordagens diversificadas de uma quantidade de outras correntes de pensamento que têm animado o campo das relações internacionais nas últimas décadas, nomeadamente sobre a sempre complexa relação entre ideologia e política externa.

Em alguns pontos importantes estamos de acordo com Loff. Desde logo na sua insistência na importância de uma abordagem comparativa e numa maior utilização de fontes de diversos estados – a começar pela Espanha, sendo o autor um dos nossos estranhamente raros hispanistas. Neste caso, um bom conhecimento das fontes alemãs poderá ser particularmente importante para futuros aprofundamentos destas temáticas (p. 61)9. Duvidamos muito, no entanto, que tais investigações futuras resultem numa visão fundamentalmente diferente quanto ao alinhamento de Salazar em qualquer nova ordem nazi 10.

Outro ponto de concordância com Loff tem a ver com o seu justificado sublinhar de que as ideias, e nomeadamente a sua cristalização ideológica, têm importância na política externa, e não podem ser reduzidas apenas às correntes políticas mais extremistas e portanto mais claramente visíveis; a própria ideia de que a política externa deve ser determinada pelo interesse nacional, bem assim como a forma como este último é concebido, não deixa de transportar uma componente ideológica.

Há, em conclusão, que notar que na medida em que Loff avança com uma tese nova, é para acentuar um estreito alinhamento ideológico e uma amálgama da Espanha e de Portugal com uma Ordem Nova nazi-fascista, o que nos parece pouco ou nada convincente.

Há também, no entanto, que elogiar o autor pela coragem do seu trabalhoso empenho na história comparada, ainda pouco praticada pela historiografia ibérica. Há que admirar o enorme trabalho de recolha de fontes.

Porém, se é certo que Salazar foi um ditador, como o foram Hitler e Franco, também é claro que nem todos os ditadores são iguais, não partilham necessariamente a mesma ideologia, ou a mesma política externa. O Portugal autoritário do Estado Novo adoptou uma política externa essencialmente pragmática que ditava um alinhamento prioritário – cuidadosamente gerido – com a Grã-Bretanha, de acordo com uma visão de Salazar das relações internacionais que assentava na Realpolitik e na geopolítica, e num conservadorismo partilhado com as elites britânicas mais à direita. Loff, ao não valorizar devidamente estes pontos na sua abordagem, como se eles não fossem suficientemente ideológicos, acaba por nem contribuir para uma melhor compreensão da acção externa do Estado Novo, nem ser capaz de fazer avançar a sua tese de uma ideologia nazi-fascista comum prevalecendo – apesar das qualificações – acima de tudo na política externa da Espanha e de Portugal.

 

Notas

1 No entanto, é alvo de crítica também a obra de LEITZ, Christian – Nazi Germany and Neutral Europe during the Second World War, Manchester: Manchester U.P., 2000, que não sofre nem de um, nem de outro destes defeitos.

2 PAYNE, Stanley – Franco & Salazar: Spain, Germany, and World War II, New Haven: Yale UP, 2008, pp. 90 e segs.

3 Relatório Min. Berlim (Tovar) para MNE (Salazar) [15.11.1941], Dez Anos de Política Externa (1936-1947): A Nação Portuguesa e a Segunda Guerra Mundial, Lisboa: MNE, 1974, Vol. X, Doc. 2561, pp. 59-69

4 Carta do PC e MNE (Salazar) para Min. Berlim (Tovar) [30.11.1941], Dez Anos de Política Externa (1936-1947): A Nação Portuguesa e a Segunda Guerra Mundial, Lisboa: MNE, 1974, Vol. X, Doc. 2546, pp. 144-169.

5 MAZOWER, Mark – Hitler’s Empire: Nazi Rule of Occupied Europe, Londres: Penguin, 2009, pp. 356-362.

6 SALAZAR, Oliveira – «Préface...», Une révolution dans la paix, Paris: Flammarion, 1937, pp. XXXVI-XLII.

7 Cf. Discurso PC (Salazar) na AN, «A Europa e a Guerra» (09.10.1939), Dez Anos de Política Externa (1936-1947): A Nação Portuguesa e a Segunda Guerra Mundial, Lisboa: MNE/IC-CM, 1970, Vol. IX 1970, p. 118.

8 Carta P T Pereira (Min. em Madrid) a Salazar (PC e MNE) de 28.09. 1939. In Correspondência de Pedro Teotónio Pereira a Salazar, Mem Martins: CLNRF, 1987, doc. 89, pp.190-195.

9 No entanto, essa é também uma limitação da obra de Loff, que não consultou os arquivos alemães, tendo de socorrer-se das fontes traduzidas e publicadas. Aliás, uma opção que torna a leitura árdua é de não se traduzir citações em língua estrangeira. Tal poderia justifica-se no que respeita a fontes na língua original – mas não faz muito sentido ler fontes alemãs citadas em inglês.

10 Revelação recente, mas confirmando precisamente o temor de Salazar relativamente à Alemanha nazi é a sua correspondência com Gonzague de Reynold referida na discussão deste tema em MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: biografia política, Lisboa: D. Quixote, 2010, pp. 259-274.