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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.27 Lisboa set. 2010

 

Euro: um futuro incerto

 

João Ferreira do Amaral

Professor catedrático aposentado do ISEG.

 

RESUMO

O euro foi posto à prova pela emergência da crise económica e financeira que teve início em 2007. O impacto da crise na moeda única europeia foi sentido com tal intensidade que, passados pouco mais de onze anos desde a sua criação, já muitos põem em causa a permanência do euro como moeda das economias europeias. À medida que a actual crise se vai desenrolando e que os desequilíbrios dentro da zona euro se vão acentuando duas interrogações essenciais se colocam: primeiro, se a moeda única é um projecto justificado e, depois, se a moeda única é um projecto estável e com futuro.

Palavras-chave: Portugal, União Europeia, euro, crise económica e financeira

 

ABSTRACT

Euro: an uncertain future

The euro has been tested by the emergency of the economic and financial crisis that begun in 2007. The impact on the single currency was so strong that is common to doubt its endurance as the currency of the European economies. With the increasing of the current crisis and the differences within the eurozone two questions emerge: if the single currency is a reasonable project and if is a stable and durable project.

Keywords: Portugal, European Union, euro, economic and financial crisis

 

O euro foi posto à prova pela emergência da crise económica e financeira que teve início em 2007. E de tal forma e com tal intensidade foi sentido o impacto da crise na moeda única europeia que, passados pouco mais de onze anos desde a sua criação – anunciada com suposto carácter irreversível, como sempre sucede nos projectos utópicos – já muitos põem em causa a permanência do euro como moeda das economias europeias.

A União Monetária revelou uma fragilidade que surpreendeu alguns mas que, na realidade, tem uma explicação, quer na própria viabilidade do projecto em si mesmo quer na forma como foi prosseguido. Essa fragilidade está longe de estar ultrapassada e daí a importância de reequacionar os fundamentos do projecto de criação de uma moeda única (ou melhor, tendencialmente única) na Europa.

Com efeito, à medida que a actual crise se vai desenrolando e que os desequilíbrios dentro da zona euro se vão acentuando – falando-se já abertamente de possíveis saídas quer pela porta «alta» (Alemanha) quer pela porta «baixa» (Grécia, Portugal) – duas interrogações essenciais vêm ao espírito: a) é a moeda única um projecto justificado?

b) É a moeda única um projecto estável e com futuro? Nenhuma das interrogações tem resposta fácil nem sequer a primeira, aparentemente menos complexa.

O objectivo deste artigo é o de constituir um contributo – desenvolvido numa óptica de economista – para ajudar a dar uma resposta às duas questões.

 

Qual a justificação, no plano económico, de uma moeda única para a Europa?

Não é muito fácil dar resposta à questão da justificação da moeda única. À partida, podemos tentar encontrar uma justificação no plano económico ou no plano político. No entanto, vamos ver que nenhuma destas justificações é convincente.

A nível económico, existe justificação teórica para a criação de uma moeda única para um espaço formado por diversas economias quando esse espaço cumpre, ainda que aproximadamente, as condições de uma zona monetária óptima.

Nessas condições – e só nessas – a introdução de uma moeda comum aumenta a eficiência na alocação de recursos e, portanto, permite às economias que compõem a União Monetária desenvolverem-se em melhores condições do que se mantivessem as respectivas moedas próprias.

Desde os trabalhos pioneiros de Robert Mundell1 nos anos 60 do século passado que os economistas se têm esforçado por encontrar, teoricamente, as condições para um espaço formar uma zona monetária óptima. Embora, como sempre sucede, existam diferenças de opinião, os economistas parecem estar de acordo, com bons argumentos, que existem três condições necessárias (embora não provavelmente suficientes) para que um espaço possa ser considerado uma zona monetária óptima: em primeiro lugar, que exista plena liberdade de circulação dos factores produtivos com total flexibilidade dos respectivos preços; em segundo lugar, que exista nesse espaço um orçamento comum suficientemente importante para permitir utilizar as finanças públicas para estabilizar as economias desse espaço em caso de sofrerem choques assimétricos (isto é, uma situação adversa do ponto de vista macroeconómico que não afecta todas as economias do espaço mas apenas uma ou uma minoria delas); em terceiro lugar, que as economias que se vão integrar monetariamente tenham entre si uma razoável dose de homogeneidade. Ora, no caso da União Europeia nenhuma destas três condições necessárias se verificava na altura da moeda única, nem sequer aproximadamente.

A plena liberdade de circulação de factores (trabalho e capital), embora formalmente existente por força do Tratado de Roma e, posteriormente, reforçada pela realização do mercado interno determinada pelo Acto Único Europeu (que entrou em vigor no início de 1987), se existe em relação aos capitais, está muito longe de ser a realidade no que respeita ao factor trabalho.

Quando falamos da integração monetária das economias europeias estamos a ser redutores. Na realidade, trata-se de uma visão necessariamente unidimensional que os economistas têm de adoptar para tentarem compreender um fenómeno tão complexo como este. Porém, embora necessária, uma simplificação arriscada. Porque, na realidade, e quando se fala das economias europeias, o que está verdadeiramente em causa é a integração, não apenas de economias mas de países com uma longuíssima história de vida em comum e de autogoverno.

Ora, nessas condições histórico-culturais, o trabalho não tende a circular de forma perfeita, muito longe disso. As pessoas dão prioridade em encontrar emprego no seu próprio país – onde confiam na solidariedade familiar – e só em situação extrema de inexistência de oportunidades é que emigram. Os próprios governos, por seu turno, tentam prosseguir políticas de incentivo ao emprego de modo a evitar que os respectivos países se desertifiquem.

No que respeita aos preços dos factores, mais uma vez, o preço do trabalho, ou seja, o salário, está muito longe da plena flexibilidade que a teoria considera essencial para existir uma zona monetária óptima. Os mercados de trabalho, um pouco por todo o lado, são regulamentados através de legislações bastante diferenciadas, impedindo que os salários se ajustem da forma que a teoria descreve, nomeadamente devido à rigidez à baixa dos salários nominais e à não liberalização total dos despedimentos.

Em maior ou menor grau, regulamentações deste tipo existem por toda a Europa. Nem se perspectiva que, dados os factores histórico-culturais a que há pouco fiz referência, este incumprimento das condições de flexibilidade do factor trabalho venha alguma vez a ser anulado.

Como se vê, a primeira condição necessária para a criação de uma zona monetária óptima, hoje, como em 1999, estava muito longe de se realizar. Vamos agora à segunda condição.

No que respeita ao orçamento comum, a pequeníssima dimensão do orçamento comunitário (pouco mais de um por cento do PIB, que compara com 40 por cento ou 50 por cento no que respeita aos orçamentos nacionais) impede qualquer utilização das finanças comunitárias para efeitos de estabilização das economias quando estas sofrem choques económicos assimétricos (isto é, choques que afectam as economias de forma diferenciada).

Portanto, também a segunda condição necessária, hoje (como em 1999), não se verifica. Finalmente, a relativa homogeneidade requerida para uma zona monetária óptima também está longe de se verificar. Para além dos factores histórico-culturais que já referi, as diferenças de nível de rendimento e principalmente de produtividade entre os países são, e já eram em 1999, de tal forma pronunciadas que não se pode falar, a nível europeu, de homogeneidade mínima para se poder criar uma zona monetária óptima.

Por isso, podemos concluir (e esta conclusão estava longe de ser novidade nos debates havidos ainda antes da realização da união monetária) que nenhuma das três condições necessárias para que a moeda única se justificasse no plano económico se verificava. E, repare-se, ficámo-nos pelas condições necessárias. Nem sequer tivemos de entrar nas eventuais condições suficientes.

Este afastamento das condições de eficiência tornava o projecto, à partida, uma utopia política, sacrificando a saúde económica a projectos políticos supostamente grandiosos. Voltaremos um pouco mais adiante a este aspecto.

Face a esta evidência de que o espaço da União estava muito longe de poder ser uma zona monetária óptima alguns economistas – com muito pouco discernimento, diga-se de passagem – defenderam que, embora à partida a União não fosse uma zona monetária óptima, a instituição e o funcionamento da moeda única iriam criar, eles próprios, as condições para que a União se transformasse gradualmente numa zona monetária óptima.

Esta afirmação – sem nenhum fundamento, nem na teoria económica nem do que se sabe dos processos históricos de integração económica e monetária – não tinha, por isso, à partida, qualquer credibilidade. Sem surpresa, a evolução das economias desde 1999 veio provar que a afirmação era efectivamente falsa. Hoje, os países da zona euro não se aproximaram e formam um espaço porventura mais afastado ainda das condições de uma zona monetária óptima do que era o caso em 1999. Tal é especialmente patente no que respeita às segunda e terceira condições acima apontadas.

Alguns outros economistas, sem irem tão longe como os anteriores, defenderam e continuam a defender que os custos de se criar o euro num espaço que não era, à partida, um zona monetária óptima, existem, sem dúvida, mas que os benefícios da criação da moeda única mais que compensam esses custos. É uma afirmação que hoje é difícil de defender, principalmente para países como Portugal que estão, no presente, significativamente pior do ponto de vista económico e financeiro do que estavam em 1999.

A principal razão que era e é apontada para afirmar que os benefícios sobrelevam os custos tem a ver com a suposta protecção que uma moeda como o euro, de peso na esfera mundial, daria ao equilíbrio monetário e financeiro dos países que compõem a união monetária, resguardando-os dos impactes destabilizadores da globalização financeira.

Na realidade, a actual crise e as suas sequelas demonstram que tal não tem sucedido. O euro foi incapaz de assegurar o equilíbrio cambial, monetário e financeiro. Mesmo antes da crise, os altos e baixos da sua cotação face a outras moedas eram disso sintoma. Depois da crise, casos como o da Grécia, de Portugal e até da Espanha, que estão a atravessar uma das fases mais difíceis de desequilíbrio financeiro da sua história recente, demonstram bem a incapacidade do euro e das suas instituições de protegerem o equilíbrio financeiro das diversas economias.

Para além disso, é evidente que se esta suposta capacidade protectora fosse a verdadeira justificação para a criação da moeda única, seria muito pouco razoável, uma vez que teria sido possível e preferível, mantendo as moedas nacionais, criar um novo sistema monetário europeu que protegesse suficientemente as economias nacionais sem os custos associados à enorme rigidez que uma moeda única acarreta.

Uma cooperação monetária estreita, mantendo as moedas nacionais, mas criando uma instituição financeira comum, dotada de elevados recursos, que permitisse o apoio a essas moedas seria certamente uma solução muito mais eficiente se o objectivo pretendido fosse o da protecção em relação aos efeitos da globalização financeira (continuo a pensar, diga-se de passagem, que esta é, talvez, a única solução adequada para o problema económico e monetário europeu).

Aliás, o primeiro projecto de realização da moeda única, quando teve o seu arranque (que abortou) nos finais dos anos 60 do século passado (dando origem ao Relatório Werner de 1970), foi decidido no contexto de uma época em que a instabilidade monetária e cambial e, portanto, a necessidade de protecção era muito menor que na actualidade. Com efeito, a inexistência de liberdade de circulação de capitais (que na União, no seguimento da realização do mercado interno, só foi estabelecida em 1992) impedia a explosão, que depois ocorreu, dos grandes movimentos especulativos e de inovação financeira – que são os grandes responsáveis pela instabilidade que, a nível mundial se foi gerando no domínio monetário e financeiro, desde os meados dos anos 1990.

Todas estas circunstâncias provam, a meu ver de forma inequívoca, que a justificação da moeda única não estava na criação do suposto escudo protector e que tal justificação só foi adiantada pelos economistas que mencionei porque, na realidade, não dispunham de melhores argumentos do ponto de vista económico para explicar por que se razão se instituía uma moeda comum numa zona que não era, nem sequer aproximadamente, uma zona monetária óptima.

Podemos pois concluir que, à partida, o projecto da moeda única não tinha qualquer racionalidade económica. Não parece, aliás, que essa tenha sido a verdadeira motivação da sua realização. Tentemos, então, encontrar as motivações políticas que estão na base do projecto.

 

Qual a justificação da moeda única no plano político?

Do meu ponto de vista, a principal motivação política que esteve na base do projecto da moeda única foi a de, através dele, criar um factor suficientemente poderoso para impulsionar a integração política na Europa.

A integração política na Europa, em última análise e não tomando a sério toda a retórica subjacente, é um projecto federalista que aponta para a criação, a prazo, de um super-Estado europeu mais ou menos federal. Só a dificuldade em lidar com os eleitorados dos estados europeus, na sua grande maioria profundamente avessos à criação de um super-Estado, tem justificado, por parte das instituições comunitárias, a utilização da expressão eufemística integração política em vez de Estado europeu ou Estados Unidos da Europa.

A integração monetária, de acordo com os adeptos do federalismo europeu, seria um factor determinante da integração política, ou seja, da criação do Estado europeu. De facto, confiavam que a necessidade de fazer funcionar a união monetária, impusesse a criação de instituições federais (por exemplo, um banco central único e um orçamento europeu com dimensão suficiente) que gerassem um movimento irreversível na constituição de um Estado europeu. Por isso, mal a moeda única foi criada, apostaram, para esse efeito, na aprovação de uma constituição europeia de pendor federal, elaborada por uma convenção à semelhança de alguns casos históricos de criação de um Estado federal. Muita da retórica dos debates da malfadada Convenção Europeia (cujos trabalhos terminaram em 2003) convocada para elaborar a constituição, que foi rejeitada, mostra, de forma transparente, como a moeda única era considerada o impulso final para fazer entrar a Europa numa dinâmica federal.

Consciente ou inconscientemente, o modelo histórico do federalismo é ou foi o da unificação alemã2. Começando a CEE por ser fundamentalmente uma união aduaneira (embora mais avançada, pois foi à partida dotada de outras políticas comuns), à semelhança da união aduaneira alemã (Zollverein) de 1834, a integração monetária levaria, tal como na Alemanha, a sedimentar a união política.

Note-se, no entanto, que a integração monetária alemã, ao contrário do que sucedeu na União Europeia é posterior em dois anos à unificação política (realizada em 1871, quando a união monetária alemã é de 1873). Este aspecto, que, contudo, faz toda a diferença, foi desvalorizado pelo federalismo, que continuou a crer que o papel histórico do euro seria o de criar condições para a unificação política europeia.

Se o projecto da moeda única tivesse sido impulsionado, apenas, pelos meios federalistas, nunca se teria realizado, dado o carácter minoritário, já na altura, das concepções federalistas (embora menos minoritário do que é na actualidade, circunstância que os referendos que rejeitaram a constituição europeia bem mostraram).

Na realidade, a moeda única só se realizou porque foi possível, na década de 1990, uma convergência (à partida extraordinariamente improvável) entre as concepções federalistas e as concepções neoliberais, então em ascensão nos meios ligados aos negócios e às entidades formuladoras da política económica.

Essa convergência traduziu-se, na prática, na criação de instituições da união monetária em que se reflectem as principais concepções neoliberais que, em última análise, apontam para que todo o ajustamento macroeconómico seja feito à custa do factor trabalho (através do aumento do desemprego ou através da redução salarial) pondo em causa a sobrevivência do chamado modelo social europeu, uma possibilidade bem-vinda pelo neoliberalismo, que considera que o modelo social europeu não é compatível com a globalização.

Explicar como foi possível uma convergência entre concepções tão diversas, como sejam o federalismo, com fortes apoios na esquerda do espectro político e o neoliberalismo, associado à direita desse espectro, não é o objecto do presente trabalho. Tal como não o é o de explicar como foi igualmente possível que o projecto da moeda única – que em última análise, da forma como foi concretizado, põe em causa o modelo social europeu – pudesse, pelo contrário, ter sido justificado como sendo a forma de garantir uma protecção dos europeus e das suas conquistas sociais face aos impactos negativos da globalização.

A complexidade das motivações políticas de criação da moeda única, que é bem patente nesta coligação contra naturam não se fica, no entanto, por aqui.

Quando já estava em andamento o caminho para a moeda única (recorde-se que a decisão do Conselho Europeu de Hanôver de encomendar a uma comissão de peritos presidida por Jacques Delors um relatório sobre a forma de realizar a moeda única é de 1988) dá-se a queda do Muro de Berlim (1989) e a posterior reunificação alemã (1990). Quase por milagre, surgiu então uma outra argumentação política a favor da moeda única, com, verdade seja dita, o seu quê de bizarro.

Tratava-se agora de justificar a criação de uma moeda europeia como forma de impedir que a super-Alemanha que surgia da reunificação se desinteressasse do ocidente da Europa e, em consequência, se alargasse economicamente pela sua área de expansão, suposta natural, ou seja, o leste europeu. Por estranha que possa parecer esta argumentação, ela teve uma consequência de peso, que foi a de levar a que todos os governos europeus aceitassem que as instituições monetárias da moeda única e nomeadamente o Banco Central Europeu fossem criadas à imagem das instituições alemãs, ou seja, se pautassem por regras ultraconservadoras na sua acção.

Cedendo, desta forma, à inteligente chantagem alemã, mas criando, ao mesmo tempo, uma fonte inesgotável de conflitos e antagonismos posteriores entre os estados-membros, antagonismos que, sabemos hoje, estão a pôr em causa a sobrevivência da união monetária. Simultaneamente, o conservadorismo extremo das instituições da moeda única, à alemã, definidas que foram no Tratado de Maastricht (1992) agradou também às concepções neoliberais, pois davam corpo às suas concepções, o que permitiu reforçar a convergência neoliberal-federalista, uma vez que os federalistas o que temiam acima de tudo era que a Alemanha se desinteressasse da União.

Sem surpresa, os eleitorados dos estados europeus que, prioritariamente, pretendem conservar o seu estado social e que são muito cépticos em relação às ideias federalistas, pronunciaram-se – aqueles que foram solicitados para o efeito – de forma pouco entusiástica sobre a realização da moeda única e as respectivas instituições. Foram estas as principais tendências políticas que se cruzaram nas decisões relativas à criação de uma moeda europeia e à forma que deveriam assumir as instituições que iam gerir essa integração monetária: uma convergência precária entre as correntes federalista e neoliberal e uma argumentação embrulhada relativamente à posição da Alemanha reunificada.

Aparentemente poucos se terão preocupado com o facto de as instituições, tal como foram criadas, irem reforçar ainda mais a posição da Alemanha – pois era verdadeiramente o único país, de entre os maiores da União, para os quais as instituições monetárias eram adequadas – e portanto permitir-lhe ainda mais facilmente a expansão económica para leste. Menos ainda se terão interrogado se a união monetária então criada teria condições efectivas de sustentação.

É justamente esta questão que abordaremos a seguir.

 

As condições de sustentabilidade da zona euro

A falta de justificação económica da integração monetária, como seria de esperar, tem gerado disfunções importantes nas economias europeias que, não sendo causadas pela crise, esta tornou muito mais evidentes.

De facto, até ao momento, a moeda única está longe de poder ser considerado um projecto bem-sucedido. Nos onze anos de existência o euro não resolveu nenhum problema económico europeu importante, agravou alguns e fez surgir outros. Assim o crescimento económico na zona euro desacelerou fortemente na última década face à anterior, o desemprego continuou em níveis elevados (actualmente, mesmo, muito elevados), agravaram-se os défices comerciais com o exterior da União por parte das maiores economias europeias (com excepção da Alemanha) e surgiu um problema gravíssimo de sustentabilidade financeira de estados do Sul da Europa, com origem em grande parte na inadequação das instituições da zona do euro.

Uma boa parcela destes desequilíbrios tem, com efeito, directamente a ver com a moeda única e com a ausência de mecanismos de reacção a choques assimétricos, ausência que se faz sentir, justamente, num momento crucial da economia mundial, em que o impacto da aceleração da globalização faz acentuar a dimensão e frequência dos choques assimétricos.

Feito este breve diagnóstico, é a altura de olharmos então para a questão que pusemos, ou seja, da sustentabilidade da moeda única.

Há fortes razões para admitir que, a não haver alteração significativa das regras de funcionamento, a união monetária se poderá desintegrar a prazo não muito longo. Em primeiro lugar, uma razão de carácter geral. A experiência histórica demonstra que subordinar a economia a uma utopia política leva normalmente a uma situação tal em que o mau funcionamento da economia põe em causa todo o projecto utópico que deveria servir. É dispensável elencarmos os múltiplos exemplos que existem. Por isso, a utopia federal europeia poderá ela também levar a uma séria regressão da economia e da própria aceitação da ideia de integração europeia em diversas zonas da Europa. Em segundo lugar, a falta manifesta de condições políticas impede que se avance no sentido do federalismo fiscal (ou seja, da utilização das finanças comuns para combater choques assimétricos e estabilizar as economias), uma das condições necessárias para uma união monetária poder funcionar, como vimos no início.

Aliás, não é por acaso que esta foi uma das condições mais difíceis de realizar no processo de unificação alemã no século XIX3 e só se conseguiu muito depois da integração política e da integração monetária, originando sérios problemas de funcionamento das instituições. Alemanha que, convém salientar, partia de uma integração política já realizada e cujo Estado emanava de uma verdadeira nação e que mesmo assim atravessou sérias dificuldades no processo. Sem integração política – ele própria bloqueada devido à inexistência de uma nação europeia – a União Europeia não tem qualquer possibilidade de avançar no federalismo fiscal.

Em terceiro lugar, não faz qualquer sentido económico dotar o espaço da União de uma política monetária e cambial única para economias tão díspares como, por exemplo, a economia alemã ou a economia portuguesa. A taxa de câmbio do euro em relação às restantes moedas mundiais, se for adequada para a economia alemã, não será certamente adequada para a economia portuguesa e vice-versa. Este tem sido o principal veículo de efectivação da responsabilidade da moeda única no processo de agravamento, sem precedentes nos tempos modernos, do desequilíbrio financeiro de alguns estados.

Em quarto lugar, as instituições da moeda única são extraordinariamente deficientes. Por um lado, o seu ultraconservadorismo leva a que exista um enviesamento recessivo na zona euro, uma vez que a prioridade é dada ao combate à inflação em claro prejuízo do crescimento económico e do emprego. Por outro lado, as regras estabelecidas não prevêem qualquer forma de permitir que um país que entre em défices continuados da sua balança de pagamentos venha a reverter a situação. A ausência de moeda própria obriga a que o instrumento normal a utilizar, que seria a desvalorização cambial, não exista. Pelo que um país, por ausência de instrumentos de actuação, se vai endividando progressivamente em relação ao exterior até que esse processo tenha fim quando o nível de endividamento atinge o limite a partir do qual o crédito dos bancos e outras instituições financeiras internacionais deixa de fluir para o país, seja para o respectivo Estado, seja para os agentes económicos privados. Segue-se um ajustamento que só poderá ser feito através de uma recessão profunda e com consequências que são difíceis de prever. A Grécia terá entrado nessa fase em resultado da falta de crédito público e Portugal não está muito longe dela no que respeita ao financiamento total da economia, público e privado.

Em quinto lugar – e é um aspecto que, do meu ponto de vista, não tem sido suficientemente salientado – o ultraconservadorismo das políticas económicas ligadas à moeda única (tal como são plasmadas nos estatutos do Banco Central Europeu e no Pacto de Estabilidade e Crescimento) e o consequente impacto sobre o modelo social europeu tem alienado parte importante dos eleitorados europeus, nomeadamente os que têm mais simpatia pelas concepções de esquerda, sendo hoje visível que o colete-de-forças comunitário nesta matéria impede os governos de seguirem políticas menos conservadoras.

A prazo, isto significa que o apoio dos cidadãos ao projecto terá tendência a decrescer uma vez que, à partida, sensivelmente metade do eleitorado do conjunto dos estados europeus não se identificará com as políticas prevalecentes. Esta é uma alteração significativa das condições políticas de sustentabilidade da integração europeia pós-Maastricht face ao que foi o processo nos seus primeiros trinta e cinco anos de vida, que reunia apoios da esquerda e da direita do espectro político.

Por todas estas razões, é de crer que o projecto da moeda única, nas condições actualmente prevalecentes, não se consiga estabilizar.

Esta eventualidade é cada vez mais previsível se tivermos em conta as lições que se podem retirar do recente caso grego. As dificuldades da economia e das finanças gregas (e também em menor grau as da Espanha e de Portugal) levaram a que toda a zona euro se ressentisse em resultado dos consequentes ataques ao euro. Isto foi uma grande lição. Significa que para uma união monetária ser estável é necessário que todos os países tenham condições para eles próprios estabilizarem financeiramente as suas economias, antes dos problemas se tornarem quase irresolúveis.

De outra forma, será toda a zona que sofre, mesmo que as dificuldades surjam num país de relativamente pequena dimensão. Ora, como as instituições da zona euro actualmente existentes não permitem que esta estabilização se faça de forma eficaz e não se vê grande possibilidade do problema ter solução numa zona de uma moeda única aplicada a economias tão diferenciadas, é o futuro do euro e da própria União Europeia que está em risco. Para já, para evitar o desastre imediato, foi necessário que o Banco Central Europeu, em clara violação do espírito dos seus estatutos, financiasse de forma indirecta a dívida dos estados europeus. Mas esta é uma situação que não é susceptível de se repetir permanentemente. Ao mesmo tempo, é mais que provável que o colete-de-forças da moeda única não permita às economias menos competitivas da União ganhar a competitividade que lhes permita aguentar os embates da globalização. Por isso, é previsível um agravamento ainda mais acelerado das desigualdades e dos correspondentes antagonismos no espaço comunitário, entre um Norte mais competitivo, para o qual o euro e as respectivas instituições são adequados, e um Sul em dificuldades económicas e financeiras, dificuldades crescentes até atingirem um certo limite, a que se seguirá uma recessão profunda e prolongada.

Não é por isso imprevisível que a zona euro tenha de enfrentar em breve, como disse no início, a possibilidade de saída de um ou outro Estado, seja pela porta alta, seja pela porta baixa, pois não parece possível acomodar economias tão estruturalmente diferentes em políticas macroeconómicas únicas.

Por custoso que seja este cenário (e a verificar-se terá custos muito grandes) é preferível que ele se encare desde já, porque não é ignorando-o que se conseguirá prolongar de forma artificial um projecto que não tem nem condições políticas, nem económicas para se sustentar. Se nada se fizer, quanto maiores forem as tensões acumuladas maior será o desastre quando o momento da verdade chegar.

Quando nasceu, o euro foi apresentado, com pompa e circunstância, com sendo uma moeda para a Europa. A verdade é que dificilmente conseguiremos encontrar uma Europa para o euro.

 

Notas

1 MUNDELL, R. A. – «A theory of optimum currency areas». In American Economic Review. Vol. 51, Nº 4, 1961.        [ Links ]

2 AMARAL, João Ferreira do – «O impasse da Europa: o esgotamento do Zollverein». In Novas Fronteiras da União Económica e Monetária. n.º 1, Centro Jacques Delors, 1997

3 JAMES, Harold – «Monetary and fiscal unification in nineteenth century Germany: what can Kohl learn from Bismarck». In Essays in International Finance. Princeton University, 1997, p. 32.