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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.27 Lisboa set. 2010

 

Portugal e a evolução do sistema defensivo europeu. A Cimeira de Lisboa de 1952

 

Daniel Marcos

Investigador do IPRI-UNL e do CEHC–IUL. Mestre em História das Relações Internacionais pelo IUL, onde prepara uma tese sobre as relações luso-americanas na década de 1950. É conferencista do Departamento de Estudos Políticos da FCSH–UNL.

 

RESUMO

A Cimeira da NATO realizada em Lisboa, em Fevereiro de 1952, foi fundamental para a evolução do sistema defensivo europeu. Os ministros dos Negócios Estrangeiros da Aliança aprovaram um conjunto de resoluções que permitiram o alargamento e o aprofundamento político do Pacto, bem como a integração da Alemanha Federal no esforço de defesa da Europa. As suas conclusões resultaram de um profundo trabalho de negociação entre os principais aliados da Aliança que, apesar de ter passado à margem do Governo português, permitiu ao Estado Novo consolidar a sua posição internacional e definir a sua estratégia quanto ao processo de integração europeia e à relação transatlântica.

Palavras-chave: Portugal, Estado Novo, NATO, Europa

 

ABSTRACT

Portugal and the evolution of the European defense system: the 1952 Lisbon Summit

The North Atlantic Treaty Council of Lisbon was essential for the evolution of the European defense effort. Assembled in the Portuguese capital, the Foreign Ministers of the Alliance took important decisions regarding the enlargement and the deepening of the political structure of NATO. Additionally they established the formula to integrate West Germany in the European defense system. Even though Portugal stood aside from this negotiation process, the developments in NATO allowed the Portuguese regime to consolidate its international position and to define its strategy regarding the European integration process and the transatlantic relations.

Keywords: Portugal, Estado Novo, NATO, Europe

 

Quando, em Fevereiro de 1952, o Conselho de Ministros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) se reuniu em Lisboa, ainda nem sete anos tinham passado desde o fim da II Guerra Mundial na Europa. A divisão da Alemanha era já uma realidade uma vez que, desde 1949, os territórios ocupados pelas potências ocidentais haviam-se unido, permitindo a constituição da República Federal da Alemanha (RFA). Esta situação traduzia o acentuar da tensão política e militar entre as potências vencedoras, nomeadamente entre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os Estados Unidos. O impasse na resolução da questão alemã foi causa e, ao mesmo tempo, consequência do agravamento das relações entre Moscovo e Washington. A sucessão de crises que caracterizou a relação entre estes dois estados no pós-II Guerra Mundial contribuiu decisivamente para a emergência do sistema internacional bipolar da Guerra Fria.

A partir de 1948, o processo de estabilização da Europa ultrapassou o campo político e económico tornando-se, também, uma necessidade militar. Resultado da tensão entre Leste e Oeste, o Pacto do Atlântico foi criado em Abril de 1949 como resposta à ameaça de Moscovo sobre a Europa Ocidental. O principal argumento para a criação da NATO baseava-se na ideia de que, mesmo que os soviéticos não estivessem preparados para travar uma nova guerra e não a desejassem num curto prazo, a recuperação económica, social e política da Europa exigia as condições de segurança e confiança que apenas um comprometimento militar podia dar1. No início da década de 1950, a Aliança Atlântica iniciou um processo de criação e aperfeiçoamento das suas instituições, incluindo uma estrutura militar permanente, que permitiu à nato tornar-se a base da arquitectura da segurança transatlântica durante a Guerra Fria. Na verdade, os primeiros anos da Aliança Atlântica foram de construção do sistema nato, num longo processo político e diplomático que tinha na questão da integração da Alemanha Ocidental na defesa da Europa o seu ponto primordial2

Para Portugal, este período representou um passo importante de adaptação e integração no sistema internacional. Como o próprio presidente do conselho, Oliveira Salazar, afirmou, com o fim da II Guerra Mundial acabava, também, a neutralidade e o regime procurou garantir o reconhecimento internacional3. Apesar de ver vetada a adesão à Organização das Nações Unidas (ONU) pela União Soviética em 1946, o regime português viu-se incluído no restrito lote dos 12 países fundadores do Pacto do Atlântico4. A partir de 1949, Portugal passou a tomar parte das grandes decisões sobre o futuro da defesa da Europa perante o inimigo comum, a URSS.

O objectivo do presente artigo é examinar de que forma se deu a evolução do esforço defensivo europeu na sua dimensão política até ao Conselho da NATO em Lisboa, em 1952. Partindo do princípio de que esta reunião foi fundamental para a instituição da NATO como principal organização de segurança europeia, debruçar-nos-emos igualmente sobre o modo como o Governo português acompanhou este processo.

 

A evolução do sistema internacional durante os primeiros anos da Nato

Apesar de, em 1949, o Ocidente ter conseguido melhorar a sua capacidade económica, a tensão política entre os Estados Unidos e a URSS levava Washington a temer pelo futuro das relações transatlânticas. Ao nível político e militar eram grandes as indefinições numa Europa dividida ao meio. Mesmo com a criação da Aliança Atlântica em Abril de 1949, entre os Estados Unidos e os seus aliados da Europa Ocidental continuavam a existir grandes diferenças, quer no tocante à melhor forma de fazer frente à ameaça soviética, quer em relação ao futuro da Europa, particularmente sobre que destino dar à Alemanha. A agravar esta situação, em finais de 1949 os Estados Unidos perderam o monopólio nuclear, visto como a única arma de equilíbrio face à superioridade das forças convencionais soviéticas na Europa5. Posteriormente, em Junho de 1950, a Coreia do Norte, apoiada pela China e pela União Soviética invadiu a Coreia do Sul, originando uma intervenção militar das Nações Unidas liderada pelos Estados Unidos6.

A conjugação destes dois acontecimentos trouxe consequências decisivas para a NATO e para a evolução da Europa durante a Guerra Fria. O conflito na Coreia foi entendido no ocidente como uma acção do Bloco de Leste no sentido de desviar a atenção para o Extremo Oriente, enquanto a União Soviética preparava o ataque decisivo à Alemanha7 . Em Washington, e nas principais capitais europeias, tornou-se consensual a necessidade de um maior investimento no esforço da defesa da Europa, quer em termos económicos, com o aumento dos gastos na indústria de defesa, quer em termos políticos, com a integração da RFA no bloco ocidental.

Não nos podemos esquecer que, de acordo com a estratégia dos Estados Unidos consubstanciada na aprovação do National Security Council 68 (NSC 68), em Abril de 1950, os objectivos de política externa norte-americanos estavam, inequivocamente, ligados à manutenção da estrutura política e económica ocidental, liberal e democrática. Para além do recurso acentuado ao uso da diplomacia económica, tida como um dos principais instrumentos das suas relações externas, o NSC 68 acentuava a necessidade de os Estados Unidos investirem no fortalecimento das suas capacidades políticas, económicas e militares, com os seus aliados da NATO8.

O problema colocava-se na forma de alcançar estes objectivos. De acordo com os Estados Unidos, a melhor forma de levar por diante o esforço de defesa colectivo da Europa deveria ser via nato e contar com a participação de todos os aliados, incluindo a própria RFA. Reunido na cidade de Nova Iorque, em Setembro de 1950, o Conselho de Ministros do Atlântico Norte teve oportunidade de discutir o plano de defesa da Europa, concluindo que era necessário um esforço defensivo alargado, quer ao nível do dispositivo militar, quer ao nível das despesas, no sentido de garantir uma defesa avançada da Europa, o mais a leste possível9. No entanto, essa estratégia exigia um conjunto de forças bastante superiores ao que a Aliança dispunha, bem como o estabelecimento de um comando integrado com autoridade sobre essa força. Os ministros dos Negócios Estrangeiros da Aliança reconheceram que o reforço das forças militares à disposição da NATO implicava uma nova abordagem perante o posicionamento da Alemanha no contexto europeu. Por um lado, a estratégia de defesa da Europa o mais a leste possível obrigava a que a nato se comprometesse com a defesa do território alemão, ao mesmo tempo que esta situação exigia uma nova relação política e militar da RFA com a Aliança10.

Para os Estados Unidos, era necessário um conjunto de alterações estruturais e políticas para tornar a organização mais eficaz. Dean Acheson, secretário de Estado norte-americano, reconhecia que, sem uma profunda reorganização, a Aliança estava «sem solução e sem rumo»11. Assim, Acheson propôs que, em troca de aumentar o número de forças americanas na Europa, o esforço defensivo da Aliança passasse a contar, também, com a participação de unidades militares da Alemanha Federal. Estas forças ficariam sob comando integrado da Aliança que os Estados Unidos exigiam que fosse entregue a um general americano. Esta proposta reflectia dois objectivos primordiais. Por um lado, os Estados Unidos garantiam uma melhor eficácia defensiva da organização e chamavam a si o controlo da planificação militar da Aliança. Por outro lado, perante a necessidade de uma resposta firme do Ocidente face à agressão do bloco soviético na Coreia, Washington procurava garantir um acordo de princípio dos aliados quanto à questão da participação da RFA no esforço de defesa ocidental12.

Porém, a reestruturação e o alargamento da Aliança à Alemanha apenas podia seguir em frente com o apoio da França e do Reino Unido. Ainda que os dois aliados dos Estados Unidos compreendessem a necessidade de se acelerar o esforço de defesa europeu e reconhecessem que a indefinição quanto ao futuro da Alemanha era um entrave a este processo, ambos acreditavam que o passo deveria ser dado de forma ponderada. O Governo francês, sobretudo, exigia que a integração da Alemanha no Pacto fosse cuidadosamente preparada, envolta num sistema político e económico que permitisse à França, Reino Unido e Estados Unidos a possibilidade de controlar este processo13.

Do ponto de vista francês, o rearmamento alemão era uma questão praticamente inaceitável. Ao nível da política interna, vários eram os partidos que se opunham terminantemente a esta solução e, até ao nível do Governo, havia alguns ministros que questionavam a ideia. Assim, a proposta de Dean Acheson era considerada, no mínimo, prematura. Porém, perante a determinação do Governo norte-americano, Paris compreendeu ser necessário apresentar uma contraproposta que defendesse os seus interesses. A 24 de Outubro de 1950, o presidente do conselho René Pleven apelou à criação de um exército europeu baseado nos mesmos princípios supranacionais propostos meses antes no Plano Schuman. De acordo com Pleven, o exército europeu seria formado por contingentes não nacionais de soldados europeus sob a tutela de um ministro europeu da Defesa, responsável perante um parlamento europeu. Partindo desta estrutura, a Alemanha Federal seria convidada a contribuir com um certo número de unidades, de pequena escala. Na apresentação do plano, o governante francês realçou que o estabelecimento deste exército europeu ficaria pendente da conclusão das negociações do Plano Schuman14.

A proposta francesa tinha um conjunto de objectivos fundamentais que reflectiam a sua política externa no início da década de 1950. Em primeiro lugar, depois de duas guerras mundiais, Paris queria evitar a constituição de um novo exército nacional alemão, com uma estrutura de estado-maior capaz de reanimar o tradicional sentimento nacionalista germânico15. Em segundo lugar, o Governo francês temia que a questão do rearmamento alemão viesse destruir os importantes passos dados entre Paris e Bona no sentido de ultrapassar as suas diferenças políticas. Desde a formação da RFA, em 1949, Paris e Bona estavam num processo de construção de uma nova forma de relacionamento. Exemplo disso era a proposta conhecida como Plano Schuman, que pressupunha a criação de uma alta-autoridade para regular a produção do carvão e do aço. Esta organização contaria com a participação da França e da Alemanha, mas estava aberta a outros países europeus. Ora, do ponto de vista francês, a pressão para o rearmamento alemão acabava por diminuir o impacto da sua proposta, que era o máximo que Paris estava na disposição de conceder em meados de 195016.

Apesar de não ter sido inteiramente do agrado de norte-americanos e britânicos, os aliados deram o benefício da dúvida ao Plano Pleven. Entretanto, na reunião do Conselho do Atlântico de Bruxelas, em Dezembro de 1950, deram-se importantes passos na reestruturação militar da Aliança. Foi criado o Comando Supremo Aliado da Europa (SACEUR), entregue ao comando do general norte-americano Dwight D. Eisenhower. Paralelamente, foi criado o SACLANT, o Comando Supremo Aliado do Atlântico, responsável pelo comando das operações militares no Atlântico. Ambos os comandos reportavam directamente ao Standing Group, organismo de planeamento militar com sede em Washington, em que apenas estavam representados os Estados Unidos, o Reino Unido e a França17. Meses mais tarde, em Maio de 1951, a Aliança teve a sua primeira reorganização de carácter político. Durante a reunião do Conselho do Atlântico em Londres, foi acordada a criação de um conselho permanente, o Conselho de Suplentes, composto por representantes dos ministros dos Negócios Estrangeiros e que tinha como função o acompanhamento da implementação da reestruturação da Aliança18.

 

Portugal e os primeiros anos da NATO

Para Portugal, a participação no Pacto do Atlântico foi fundamental uma vez que legitimou internacionalmente o regime autoritário português, reduzindo os riscos de isolamento internacional do Governo de Lisboa. Apesar das reservas iniciais de Oliveira Salazar, o convite a Portugal foi uma oportunidade única para valorizar o peso relativo do País na cena internacional, aproximando-o das potências ocidentais e marcando o distanciamento face ao regime espanhol. Integrado na comunidade transatlântica, o regime português iniciou uma cautelosa inserção na Aliança, com um impacto claro na modernização das Forças Armadas portuguesas e forçando o Governo a tomar posições em relação aos principais assuntos da cena internacional19.

Oliveira Salazar reconhecia que a evolução do sistema internacional no pós-II Guerra tinha conduzido à multiplicação de organizações de carácter multilateral com os Estados Unidos e a União Soviética a destacarem-se como as potências liderantes. Do seu ponto de vista, a participação de Portugal nestas organizações era necessária, ainda que dentro de certas condicionantes, nomeadamente, na defesa política da soberania portuguesa. Compreendendo que as razões do convite a Portugal para membro fundador da NATO se prendiam com a utilização da base das Lajes nos Açores por forças norte-americanas, o Governo português fez questão de ressalvar que a participação de Portugal na Aliança não implicava o estabelecimento de bases desde o tempo de paz, a não ser que negociações bilaterais entre o Governo português e os aliados assim o estabelecesse. Por outro lado, a estrutura intergovernamental que a nato adoptou contribuiu, também, para o reforço dos condicionantes políticos levantados por Portugal20. O Governo português defendia que o Pacto deveria assegurar que a parte civil e política da Aliança manteria a sua supremacia, com «todos os aliados em pé de igualdade». Para tal, no campo das decisões políticas, nenhum aliado devia ver a «sua voz diminuída», ainda que, no campo militar, os Estados Unidos assumissem uma «eminência própria», situação que Salazar aceitava como «um facto da vida, uma realidade da política internacional». Para o presidente do conselho a participação portuguesa na organização devia ser clara: Portugal devia «colaborar lealmente, no limite das suas possibilidades, com os seus aliados» mas defendendo-se com «vigor de quaisquer tentativas que possam afectar a sua soberania»21.

Ciente da posição favorável junto dos parceiros da Aliança, Portugal acompanhou com interesse as primeiras reestruturações de ordem política e militar ocorridas na NATO entre Maio e Setembro de 1950, bem como os desenvolvimentos quanto à participação da Alemanha no esforço defensivo da Europa. No entanto, a evolução dos acontecimentos exigia, do ponto de vista português, o esclarecimento de algumas situações. Por exemplo, Portugal concordava com o aumento do número de forças militares para a defesa da Europa, mesmo que isso implicasse a participação de forças da Alemanha Federal, no sentido de garantir que a defesa da Europa se pudesse fazer o mais a leste possível. Como reconhecia o ministro da Defesa Nacional, Fernando Santos Costa, a evolução histórica da Europa havia demonstrado que a «função histórica da raça alemã era ser a muralha principal contra todas as tentações de expansão dos povos Eslavos». Consequentemente, o Governo português compreendia que, em face da actual crise nos assuntos internacionais, a solução era o imediato rearmamento alemão22. Paralelamente, Portugal também não se opunha à criação de um comando integrado da NATO, nem à nomeação de um oficial norte-americano para comandante supremo. Portugal apenas questionava a criação de um directório militar de apenas três nações (Estados Unidos, Reino Unido e França) consubstanciado no Standing Group. Finalmente, o Governo português não era, sequer, contra a constituição de um comité permanente da NATO, o Conselho de Suplentes, desde que as suas directivas nunca superassem as decisões do Conselho do Atlântico Norte23.

Contudo, a evolução da Aliança não se fazia de forma totalmente favorável às pretensões portuguesas. Lisboa lamentava que as alterações na NATO não fossem acompanhadas de uma maior sensibilidade dos parceiros para a defesa da Península Ibérica. Numa reunião privada solicitada por Paulo Cunha durante a sessão do Conselho do Atlântico Norte decorrida em Nova Iorque, em Setembro de 1950, o ministro português expôs o pensamento de Portugal junto de Dean Acheson. O assunto principal da sua conversa foi a questão da defesa da Península Ibérica, com Portugal a manter o desejo de que a Espanha fosse integrada, formal ou, pelo menos, informalmente, na estrutura de defesa da Europa. Cunha demonstrou compreender a impossibilidade de, do ponto de vista político, incluir a Espanha no Pacto do Atlântico mas alertava para o facto de que deixar este país completamente à sua sorte seria algo desaconselhável. Era preciso criar uma situação de meio-termo que evitasse que o regime espanhol pudesse adoptar uma «posição confortável de neutralidade» tal como havia feito durante a II Guerra Mundial. No entanto, para Acheson, a integração da Espanha levantava dúvidas a começar pela vontade espanhola em participar, nos termos propostos por Portugal, na defesa do Ocidente. Além do mais, os aliados tinham o objectivo de que a defesa da Europa se fizesse o mais a leste possível, sendo que o reforço da ideia de defesa da Europa nos Pirenéus poderia criar uma interpretação errada junto de alguns aliados24.

 

O reforço do sistema ocidental de defesa e a Cimeira de Lisboa de 1952

Se, para Portugal, o principal interesse era a inclusão da Espanha no sistema defensivo europeu, a Aliança Atlântica tinha prioridades bem diferentes. Ao longo de 1951, os parceiros da NATO debateram-se com três questões essenciais que viriam a marcar o Conselho do Atlântico Norte de Lisboa em Fevereiro de 1952.

Em primeiro lugar, decorrente da necessidade de um maior esforço da Aliança em termos de defesa, era premente debater uma eventual reestruturação da estrutura civil da NATO, sobretudo para dar resposta ao controlo e aplicação de medidas de ordem económica e financeira, vitais para a concretização do aumento de forças. A promessa do aumento das necessidades militares da Aliança, implícita na proposta de Dean Acheson durante o Conselho da NATO de Nova Iorque em Setembro de 1950 e na criação do comando integrado da Aliança na Cimeira de Bruxelas em Dezembro de 1950, exigia o aumento das contribuições financeiras dos parceiros da NATO. Porém, perante a fraqueza da economia europeia, ainda a recuperar dos efeitos económicos da II Guerra Mundial, os governos europeus temiam os efeitos negativos desse esforço, com o aumento da inflação e o desequilíbrio das balanças de pagamento. A solução para este novo impasse foi a criação do Comité Temporário do Conselho (CTC), organismo ad hoc que tinha como objectivo conciliar as exigências em termos de segurança colectiva com as possibilidades políticas e económicas que cada país-membro tinha para contribuir com o aumento do número de forças militares. Criado no Conselho do Atlântico Norte em Otava (Setembro de 1951), o Comité era composto por 12 membros e tinha um conselho executivo onde pontificavam o presidente do Comité, o norte-americano Averell Harriman; o representante francês, Jean Monnet, e o britânico Edwin Plowden25.

No fundo, como reconhecia Charles Spofford, representante norte-americano no Conselho de Suplentes, o objectivo do CTC era atacar um dos problemas mais evitados na NATO, isto é, a questão económica. O aumento do número de forças implicava elevados custos, sendo que, em meados de 1951 era claro que, sem excepção, existia uma enorme discrepância entre os objectivos propostos por cada estado-membro e os recursos necessários para a implementação desses objectivos. Isto reflectia, entre outras coisas, a pouca vontade da maior parte dos parceiros da Aliança em compartilharem efectivamente a dimensão militar, política e, principalmente, económica do esforço de defesa da Europa26.

Em segundo lugar, desde finais de 1950 que se debatia a expansão da Aliança na área do Mediterrâneo Oriental, de forma a incorporar a Grécia e, principalmente, a Turquia. A adesão destes dois países não era consensual. Se da parte dos Estados Unidos existia um interesse evidente em que a Turquia – um país declaradamente anticomunista na periferia da União Soviética, com um sistema político estável e Forças Armadas numerosas – pudesse contribuir para o esforço defensivo do Ocidente, a maioria dos parceiros europeus demonstrava profundas hesitações quanto a esta concretização27. Este impasse conduziu a um primeiro convite, na Cimeira de Nova Iorque de Setembro de 1950, para que a Turquia e, por extensão, a Grécia, passassem a associar-se ao planeamento militar da NATO, devido à importância dos dois países para o esforço defensivo na área do Mediterrâneo28. Um ano depois, em Otava, o Conselho de Suplentes recomendou aos estados-membros que estes dois países aderissem à NATO, decisão adiada para a Cimeira de Lisboa.

Finalmente, estava ainda por resolver a constante questão do rearmamento alemão e da participação da RFA na defesa da Europa. Após a pressão norte-americana e a resposta francesa materializada no Plano Pleven, ao longo de 1951 os parceiros da NATO e a Alemanha desdobraram-se em negociações no sentido de encontrar uma solução para o impasse. Não nos podemos esquecer que a proposta avançada pelo Governo francês estava longe de colher um apoio generalizado, quer ao nível interno, quer ao nível externo. Se do ponto de vista doméstico, o plano avançado pelo chefe do executivo francês conseguiu, numa primeira fase, o benefício da dúvida da parte dos partidos da oposição, ao nível externo as críticas foram generalizadas. Para Washington e para Londres, a proposta francesa não passava de uma tentativa de adiar irremediavelmente o processo de constituição de uma força alemã para a defesa da Europa. Já para o Governo de Bona, este plano foi visto com apreensão dado que a situação interna do Governo democrata-cristão de Konrad Adenauer não se coadunava com projectos que conduzissem a uma limitação permanente da soberania alemã. Desta forma, quando o representante dos Estados Unidos no Conselho de Suplentes, Charles Spofford, procurou garantir que as discussões da proposta de René Pleven não impediriam a concretização imediata da constituição de uma força militar alemã, Adenauer impôs aos aliados ocidentais que o rearmamento alemão fosse acompanhado por negociações tendo em vista o fim do regime de ocupação da RFA29.

À medida que as negociações iam avançando em Paris e em Bona, a possibilidade de os aliados chegarem a um compromisso sobre o rearmamento alemão parecia esbater-se. Por um lado, Adenauer forçou consideravelmente as exigências políticas da Alemanha para aceitar partilhar o fardo da defesa ocidental – o Governo alemão exigiu a constituição de Forças Armadas nacionais, com comando supremo totalmente alemão, bem como a transformação do estatuto de ocupação num acordo contratual que restituísse o estatuto de igualdade política da RFA em relação às restantes nações europeias30. Este aumento das exigências alemãs tornou a proposta francesa de formação de um exército europeu mais atractiva aos olhos dos restantes aliados. A constituição de uma Comunidade Europeia de Defesa tinha como premissa base a cooperação franco-alemã, vista como a única solução para o futuro da nato e para a defesa do Ocidente. Do ponto de vista norte-americano, começou a ganhar forma a ideia de que a defesa efectiva da Europa, o fim da ocupação da Alemanha e a sua integração no sistema defensivo ocidental estavam dependentes do estabelecimento de uma solução que fosse aceitável para a França e para a Alemanha. Essa solução parecia ser a formação do exército europeu, visto que a França mantinha a sua irredutibilidade em relação à entrada da RFA na NATO. A CED garantia à França o controlo sobre o desenvolvimento militar da Alemanha, ao mesmo tempo que arrancava a Paris o consentimento para a evolução da situação política da Alemanha31.

No Outono de 1951, as negociações sobre o estatuto político da Alemanha avançaram. Em Setembro, os aliados ocidentais reuniram-se em Washington para debater o quanto estavam dispostos a restituir da soberania à RFA. Nesta reunião ficou decidido que qualquer desenvolvimento na RFA não poderia pôr em causa o princípio da autoridade suprema dos aliados. Apesar de se iniciar um processo de restituição de soberania a este país, as antigas forças de ocupação manteriam o direito de assinar o tratado final de paz, de manter forças militares na RFA e o direito de intervir na Alemanha em caso de ameaça à segurança aliada, bem como a partilha do território de Berlim32. Porém, a cada vez mais próxima restituição de soberania à Alemanha colocou o Governo francês perante a obrigação de concretizar a proposta de constituição da CED, o que reacendeu os receios franceses quanto ao fulcro da questão: até que ponto a constituição de um exército europeu poderia evitar um possível ressurgimento alemão, salvaguardando o equilíbrio da Europa continental. Do ponto de vista francês, apenas o comprometimento do Reino Unido e dos Estados Unidos na Europa, com a manutenção das suas forças na Alemanha, garantiria a estabilidade franco-alemã. A solução passava pelo reforço da NATO e a sua interligação com o projecto CED. A ideia de uma comunidade de defesa completamente independente da Aliança transatlântica tinha de ser reequacionada sendo que, para a segurança dos países da Europa Ocidental, era indispensável a manutenção da presença de forças britânicas e norte-americanas no continente33.

Foi na reunião da NATO em Lisboa que uma grande parte destas questões ficou definida. Na capital portuguesa, o Conselho do Atlântico Norte acabou por dar importantes passos no sentido de reforçar a componente política e económica da Aliança. Os ministros dos Negócios Estrangeiros aprovaram o relatório final do Comité Temporário do Conselho, que defendia a criação do cargo de secretário-geral da Aliança e a constituição de um Conselho Permanente. Estas medidas tinham como objectivo uma maior centralização e um maior reforço da Aliança, passando pela concentração de todas as funções de carácter administrativo num único secretariado internacional. Em particular, a criação do Conselho Permanente do Atlântico Norte permitia que as declarações de carácter político apresentadas pelos representantes nacionais tivessem mais do que um título meramente informativo, tal como ocorria com o Conselho dos Suplentes34. As conclusões do relatório do CTC tiveram também um importante impacto do ponto de vista militar. Perante a proposta do Comité, os aliados decidiram constituir até ao final de 1952 um total de 50 divisões para a defesa da Europa, quatro mil aviões de combate e uma robusta força naval35. O estabelecimento de objectivos militares concretos foi um importante passo para reforçar o sistema defensivo ocidental visto ter permitido eliminar algumas das ambiguidades da Aliança, nomeadamente em relação ao número de forças para aplicar os planos militares da organização. A partir de Lisboa, e apesar dos números aprovados nunca terem sido inteiramente cumpridos, ficava definido o primeiro objectivo da NATO: a defesa avançada da Europa, ou seja, a possibilidade de confrontação do exército soviético em território alemão36.

A Cimeira de Lisboa foi ainda um palco importante para dar o impulso decisivo para a conclusão das negociações para a constituição da CED. Durante a cimeira que decorreu na capital portuguesa, os ministros dos Negócios Estrangeiros da Aliança deram o seu aval às negociações sobre a CED e sobre o futuro político da RFA. Além do mais, aprovaram os termos do relacionamento entre a NATO e a futura Comunidade de Defesa Europeia, propondo que todos os estados-membros ratificassem um protocolo adicional ao Tratado de Washington que estabelecesse a reciprocidade, em termos de segurança e defesa, entre os membros de ambas as organizações. De acordo com o comunicado oficial aprovado no final da cimeira, o Conselho do Atlântico reconhecia que a nato e a CED tinham os mesmos objectivos e que as «obrigações e a relação entre as duas comunidades dever-se-iam basear no conceito de duas organizações muito próximas, em que uma se inseria no quadro da outra, reforçando-a». Ficava, assim, reconhecido que a CED se constituía como um pilar dentro do sistema de defesa ocidental da NATO37. Por fim, ficou também definitivamente decidida a entrada da Turquia e da Grécia na Aliança. No tocante à admissão destes dois países, esta evolução da organização acabou por tornar relevante um debate no seio da Aliança e que se prendia com a expansão desta.

 

Portugal e o Conselho da NATO

Para o Governo português, a realização da reunião do Conselho do Atlântico Norte em Lisboa era uma oportunidade única para reforçar a sua posição política internacional. Poucos meses após a assinatura do novo acordo luso-americano para a permanência de tropas dos Estados Unidos nos Açores (concluído em Setembro de 1951), o Governo português compreendia que a Cimeira da NATO poderia tornar-se um novo sucesso diplomático do Estado Novo38. No discurso inaugural da cimeira, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Paulo Cunha, foi claro neste objectivo. Portugal foi apresentado como um país «onde a consciência pública se foi desde há bastante tempo identificando com as directrizes fundamentais do esforço de cooperação»39 da NATO. No entanto, algumas das reformas da NATO não deixavam o Governo português inteiramente tranquilo. Como o próprio ministro alertava, se era necessário reformar a instituição a todos os níveis, a «impaciência de ver o edifício pronto» não poderia conduzir à criação de critérios «simplistas» e desajustados que complicassem os problemas já existentes. O exemplo era o facto de alguns aliados acreditarem que uma das maiores dificuldades que condicionavam o funcionamento da NATO e o esforço defensivo europeu se prendia com a existência de «igualdade e plena soberania» entre os estados que a constituíam, defendendo a rápida evolução rumo a uma organização política da Europa. Paulo Cunha acreditava que a multiplicidade dos estados e nações, se em certo sentido comportava dificuldades, representava também uma «riqueza de sentimentos nacionais, uma maravilhosa complexidade de forças de resistência que não se podem nem se devem sacrificar»40.

O alerta do ministro dos Negócios Estrangeiros português reflectia a posição tradicional de Portugal quanto a soluções políticas que pudessem conduzir à constituição de organizações supranacionais e federalistas. Logo em 1950, por ocasião da apresentação do Plano Schuman, Oliveira Salazar declarara que as ideias conducentes a uma possível federação europeia não tinham «grande viabilidade», visto os europeus serem «demasiado velhos» para abdicar das suas soberanias. Assim, se entendimentos nos campos económicos e de reestruturação dos mercados, como o que daria origem à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) eram necessários e até bem-vindos, qualquer tentativa de evolução política representava uma «teia de aranha que o sopro das realidades desfaz»41. Assim, projectos como o esforço para a constituição de uma organização de defesa como a CED não passavam de «ideias pouco precisas e só concretizáveis daqui a muito tempo». Tal era a descrença com que Portugal via estes esforços que acreditava não ser necessário combatê-los no imediato42.

Ao longo das negociações para a constituição da CED, Portugal procurou adoptar uma posição semelhante à do Reino Unido43. Tradicionalmente, o Governo britânico recusava-se a participar em organizações internacionais de carácter marcadamente supranacional, recusando-se a participar em projectos que conduzissem à perda da soberania nacional. Apesar de ter sido convidado pelo Governo francês a participar, desde o início, nas negociações de Paris para a constituição da CED, Londres recusou-se a dar mais do que o seu apoio para a formação da Comunidade. Conciliando habilmente a sua posição com o Governo norte-americano e francês, o Governo britânico associou-se à CED sem, contudo, aceitar fazer parte da comunidade, por a considerar «muito influenciada» por visões e ideias marcadamente federalistas44.

Apesar do seu cepticismo quanto à criação da CED, Portugal acreditava que o apoio dado pelo Conselho do Atlântico durante a reunião de Lisboa tinha permitido, «finalmente», chegar a uma solução quanto à contribuição da Alemanha para o esforço defensivo da Europa. Como referiu o ministro português dos Negócios Estrangeiros, se Portugal não estava em condições de participar na CED não deixava, contudo, de «encarar com satisfação a ideia da sua criação» porque representava uma solução para a questão do armamento da Alemanha45.

Já quanto à posição portuguesa sobre o reforço das instituições políticas da Aliança e o aprofundamento da «colaboração e do auxílio» entre os aliados, desde que respeitando sempre uma dimensão intergovernamental, era uma situação que merecia a ponderação de Lisboa, visto que poderia vir a ser «útil apoiar». Portugal defendia que o Pacto deveria manter a sua natureza de aliança militar, evitando derivas defendidas por alguns aliados no sentido de fazer a nato caminhar no «nebuloso objectivo» rumo à construção de uma comunidade política. Neste sentido, e apesar de ter levantado algumas reticências, Portugal viu com bons olhos o trabalho desenvolvido pelo CTC visto que, nas suas conclusões, deixava cair por terra a ideia de alterar a natureza do Pacto e dar--lhe um certo «conteúdo ideológico» postulado na ideia de comunidade. Sem recurso à defesa da adopção de «economias comunitárias ou quejandas», o relatório do CTC permitiu garantir que o esforço militar e de defesa da nato não prejudicaria o nível de vida das populações e seria «adequadamente executável por medidas postas de pé em função das características e possibilidades de cada meio nacional»46.

Embora globalmente positiva, Portugal considerava que a reestruturação política que a nato estava a executar podia vir a trazer alguns problemas no futuro. Medidas como a constituição de um Conselho Permanente e a criação do cargo de secretário-geral, apesar de serem «essenciais» e permitirem a resolução do problema urgente que era a constituição de contingentes militares para a defesa da Europa, não deviam ser definitivas. A principal preocupação do Governo português prendia-se com os novos poderes que eram atribuídos ao secretário-geral – nomeadamente o poder para contactar directamente o governo de cada Estado aliado, sem ter de passar pelo representante permanente desse país na Aliança. Na opinião de Portugal, esta alteração era «perigosíssima» visto que o cargo de secretário-geral poderia caminhar no sentido de o transformar numa «entidade absoluta» dentro da organização, embrião de uma futura estrutura supranacional47.

Por fim, a questão da admissão da Grécia e da Turquia à NATO. Desde o princípio desta discussão, Portugal acreditava que a entrada destes dois países tendia a reduzir a possibilidade de localizar um conflito a uma determinada zona, nomeadamente a zona da Alemanha, ao mesmo tempo que dava um sinal de «provocação» à União Soviética. Além do mais, a entrada de um país como a Turquia punha em causa o espírito da Aliança Atlântica, baseado numa «associação de estados com a mesma herança, cultura e objectivos»48. De acordo com a Embaixada dos Estados Unidos no Canadá, a delegação portuguesa à Cimeira da NATO em Otava, onde pela primeira vez foi discutida a proposta de adesão destes dois países, chegou equacionar opor-se até que os seus parceiros considerassem a admissão doutros países, nomeadamente da Espanha49. Porém, face às consequências que esta posição traria para a Aliança e reconhecendo a «utilidade de associar apropriadamente a Grécia e a Turquia à defesa comum», Portugal acabou por aceitar este alargamento50. Ainda assim, Paulo Cunha teve oportunidade de realçar, logo na sessão inaugural da Cimeira de Lisboa que, se Portugal saudava «efusivamente» esta decisão, não podia deixar de «lamentar que não tenha sido decidido, ainda, e por motivos certamente alheios aos fins da organização, fechar as malhas a Oeste e fazer desaparecer o absurdo estratégico que é a ausência da Espanha do sistema de defesa ocidental»51.

Em suma, do ponto de vista português, a cimeira foi «um sucesso». Sob o ponto de vista do trabalho realizado, o presidente do conselho acreditava ter havido «sorte», uma vez que os esforços dos últimos meses deram «os seus frutos» na capital portuguesa. Assim, para todos os ministros, «muito habituados a não chegarem a nada ou a quase nada», a conferência foi um «grande êxito». Além do mais, o regime conseguira passar a imagem de que Portugal era um «país calmo, tranquilo», com populações «amáveis e disciplinadas»52. Esta ideia ficou eternizada nas memórias de Dean Acheson, um dos políticos norte-americanos com uma simpatia evidente por Oliveira Salazar. Para o secretário de Estado, era «indiscutível» que em Portugal não existia uma democracia como na Inglaterra ou nos Estados Unidos. No entanto, Salazar não era um «ditador tal como Estaline» mas sim «um ditador-gestor, contratado e mantido pelas Forças Armadas – e não sob seu controlo – para governar o país segundo o interesse das classes médias». Ainda para mais, o regime salazarista não dependia, ao contrário do regime de Estaline na Rússia, da «dura supressão das liberdades individuais». No fundo, o ditador português assumia características idênticas às defendidas por Platão na República para definir o seu rei-filósofo. Desta forma, concluía Acheson, «um inveterado libertário compreensivelmente desaprovaria Salazar», já Platão, não53.

 

A Cimeira e as suas consequências

Não foi apenas para Salazar que a Cimeira de Lisboa foi um sucesso. Na opinião de Dean Acheson, a reunião de Lisboa tinha sido uma das mais produtivas em que participou. Na verdade, passados dezassete meses desde a reunião do Conselho do Atlântico Norte em Nova Iorque, a Aliança dera passos decisivos na sua afirmação como base do sistema de defesa ocidental. Com a entrada da Turquia e da Grécia o pacto alargara-se e criara instituições militares e políticas para fazer frente à ameaça soviética. Paralelamente, estabelecera o número de forças que o comando integrado da Aliança teria à sua disposição, definindo um princípio equitativo como base da contribuição de cada Estado-membro para a defesa colectiva europeia. Por fim, definia o papel que a Alemanha deveria ter em todo este processo. O apoio dado em Lisboa à constituição da CED e a autorização para que se dessem os passos políticos no sentido da recuperação da RFA para o concerto das nações, reconciliava os estados europeus e reforçava os termos da parceria transatlântica54.

Meses mais tarde, seria assinado em Bona o acordo que garantia à RFA uma restituição substancial da sua soberania pondo fim ao estatuto de ocupação dos aliados ocidentais, apesar da manutenção das suas tropas em território alemão. No dia seguinte, a 27 de Maio de 1952, em Paris, assinava-se o tratado para a constituição da Comunidade de Defesa Europeia, com a participação da França, da RFA, dos países do Benelux e da Itália. Paralelamente, e de acordo com o que tinha sido estabelecido durante as negociações da CED, os Estados Unidos, o Reino Unido e a França comprometeram-se na defesa mútua em caso de agressão interna ou externa. Ficava assim salvaguardada a defesa da Europa pelos aliados atlânticos, quer em caso de uma possível secessão alemã da CED, quer em caso de agressão soviética55.

A partir daqui, a CED entrou num processo de ratificação que, em última instância, contribuiu para o seu falhanço em Agosto de 1954. Simultaneamente, os membros aliados da NATO iniciaram também o processo de ratificação do protocolo adicional ao Tratado de Washington que inseria a Comunidade de Defesa Europeia no sistema de alianças da NATO. Em Portugal, a ratificação deste protocolo adicional deu-se a 18 de Abril de 1953. Com esta ratificação, o Governo português procurou seguir a linha de conduta definida pela Aliança na reunião em Lisboa, ainda que considerasse «restritivo» a não inclusão da RFA na NATO. Porém, não quis ficar com o ónus de criar «novos embaraços» ao avanço do processo de integração da Alemanha no sistema defensivo da Europa56.

A cimeira possibilitou ao regime dar mais um passo no processo de reconhecimento internacional do Estado Novo, através do reforço da sua posição na NATO, ao mesmo tempo que contribuiu para a definição da política portuguesa em relação ao projecto de construção europeia. Apenas dez anos depois da derrota alemã na II Guerra Mundial, o falhanço da CED conduziu à entrada da RFA na NATO em Maio de 1955, indo de encontro à posição defendida pelo governo de Lisboa desde 1950. De acordo com o Governo português, a Aliança Atlântica reafirmava-se como uma organização fundamental para a manutenção de uma Europa independente face à ameaça comunista, ao mesmo tempo que os projectos de cooperação europeia com objectivos supranacionais tornavam-se menos atractivos para Portugal. Isso não significava uma oposição clara e combativa a estas ideias, uma vez que tal atitude poderia conduzir à destruição dos compromissos feitos após a II Guerra Mundial, incluindo o fim da relação transatlântica que unia os Estados Unidos e a Europa. Por isso, Salazar manteve sempre Portugal fiel à NATO, vigilante em relação aos avanços europeus, ainda que cooperante com a sua evolução.

 

 

NOTAS

1 WOHLFORTH, William – The Elusive Balance. Power and Perceptions during the Cold War. ithaca: Cornell University Press, 1993, pp. 89-92.

2 GASPAR, Carlos – «a aliança atlântica e o método dos alargamentos». in Nação e Defesa. n.º 102, 2002, pp. 45-63.         [ Links ]

3 SALAZAR, António Oliveira – «Portugal, a Guerra e a Paz», Discurso de Oliveira Salazar de 18 de Maio de 1945. In SALAZAR, António Oliveira – Discursos e Notas Políticas (1943-1950). Vol. IV, Coimbra: Coimbra Editores, 1951, pp. 101-122.

4 A par dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Canadá, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Itália, Dinamarca, Noruega e Islândia.

5 TRACHTENBERG, Marc – A Constructed Peace. The making of the European sttlement (1945-1963). Princeton: Princeton University Press, 1999, pp. 96-98

6 GADDIS, John Lewis – The Cold War. Londres: Allen Lane, 2005, pp. 40-60.

7 A bibliografia mais recente aponta para que o risco de uma guerra na Europa fosse exagerado, apesar de não estar completamente afastada dos objectivos do Kremlin. Para além do desejo de Stalin em atacar a Jugoslávia (e não a Alemanha), Moscovo, tal como os Estados Unidos, viam algumas das acções dos adversários como demonstrando inequivocamente os desígnios agressivos do Ocidente. Conferir JUDT, Tony– Postwar. A history of Europe since 1945. Nova Iorque: The Penguin Press, 2005, p. 151.

8 NSC 68, 7 de Abril de 1950. FRUS. Vol. I, pp. 242-262

9 Organization du Traité de l'Atlantique Nord. Structure, Faits et Chiffres. Bruxelas: Service de l'Information de l'OTAN, 1981, p. 28

10 Ibidem, p. 29.

11 TRACHTENBERG Marc – A Constructed Peace. The making of the European sttlement (1945-1963), Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 107

12 MCALLISTER, James – No exit. America and the German Problem, 1943-1954. Ithaca: Cornell Uiversity Press, 2002, p. 188.

13 HITCHCOCK, William – France Restored. Cold War diplomacy and the quest for leadership in Europe, 1944-1954. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1998 , p. 133.

14 JUDT, Tony – Postwar. A history of Europe since 1945. Nova Iorque: The Penguin Press, 2005, p. 244; HITCHCOCK, William – France Restored, Cold War diplomacy and the quest for leadership in Europe, 1944-1954. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1998, p. 144; MCALLISTER, James – No exit. America and the German Problem, 1943-1954. Ithaca: Cornell Uiversity Press, 2002, pp. 192-193.

15 MCALLISTER, james – No Exit America and the German Problem, 1943-1954 , pp. 193-194.

16 JUDT, Tony – Postwar. A History of Europe since 1945, pp. 156-157; HITCHCOCK, William – France Restored, Cold War Diplomacy and the Quest for Leadership in Europe, 1944-1954, pp. 127 e 152.

17 LORD ISMAY – NATO. The first five years (1949-1954). [Consultado em: 23 de Junho de 2010]. Disponível em: http://www.nato.int/archives/1st5years/chapters/5.htm.

18 Organization du Traité de l’Atlantique Nord. Structure, Faits et Chiffres, p. 30.

19 TEIXEIRA, Nuno Severiano – «Da neutralidade ao alinhamento. Portugal na Fundação do Pacto do Atlântico». In Análise Social XXVIII, n.º 120, 1993, pp. 55-80, TELO, António José – Portugal e a NATO. O reencontro da tradição atlântica. Edições Cosmos: Lisboa, 1996 e GASPAR, Carlos – «Organização do Tratado do Atlântico Norte». In Dicionário da História de Portugal, Porto: Figueirinhas, 2002, pp. 678-684.

20 NOGUEIRA, Albano – «La naissance de l’alliance. Une perspective portugaise». in Revue de l’OTAN, Agosto de 1980, pp. 8-13.

21 NOGUEIRA, Alberto Franco – Salazar. O Ataque (1945-1958). Vol. IV. Barcelos: Civilização, 2000, pp. 170-171.

22 «Intervenção do Ministro da Defesa Nacional de Portugal», s. d. DGARQ – AOS/CO/NE-17-1, Pt. 14.

23 «Intervenção do Ministro da Defesa Nacional no Comité de Defesa da NATO», Fevereiro de 1951. DGARQ, AOS/CO/NE17-1, Pt. 14, 2ª Sdb.

24 Memorando de conversa entre Paulo Cunha e Dean Acheson, 14 de Setembro de 1950. FRUS 1950. Vol. III, pp. 304-305.

25 Organization du Traité de l’Atlantique Nord. Structure, Faits et Chiffres, p. 31.

26 SPOFFORD, Charles – «NATO’s growing pains». in Foreign Affairs. Vol. XXXI, n.º 1, Outubro de 1952, pp. 95-105.

27 MILLER, James Edward – The United States and the Making of Modern Greece. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2009, pp. 29-30.

28 «Memorando preparado pelos Representantes na NATO dos Estados Unidos, Reino Unido e França», 13 de Setembro de 1950. FRUS 1950, Vol. III, 1284-1285.

29 TRACHTENBERG, Marc – A Constructed Peace. The making of the European settlement (1945-1963 ). Princeton: Princeton University Press, 1999, pp. 110-112.

30 As exigências alemãs reflectiam a posição de fragilidade do governo de Adenauer. Compreendendo que a opinião pública alemã não era totalmente favorável ao rearmamento alemão e pressionado pela oposição social-democrata no sentido de abandonar o objectivo de integrar a RFA na esfera ocidental, Adenauer achava que o rearmamento alemão, quer no quadro da NATO quer no quadro da Comunidade Europeia de Defesa apenas poderia ser feito após a restituição de uma soberania alargada à RFA. Ver McAllister, James – No exit, 196-199.

31 HITCHCOCK, William – France Restored, Cold War Diplomacy and the Quest for Leadership in Europe, 1944-1954 , pp. 158-160.

32 Ibidem, p. 159.

33 TRACHTENBERG, Marc – A Constructed Peace. The Making of the European Settlement (1945-1963), pp. 120-121; HITCHCOCK, William – France Restored, Cold War Diplomacy and the Quest for Leadership in Europe, 1944-1954, pp. 165-166.

34 Ofício 1205 do serviço do Pacto do Atlântico Norte, 7 de Abril de 1953. AHMNE – RNP, a. 50, m. 102.

35 Organization du Traité de l’Atlantique Nord. Structure, Faits et Chiffres, p. 32.

36 HITCHCOCK, William – France Restored, Cold War Diplomacy and the Quest for Leadership in Europe, 1944-1954, p. 166; JUDT, Tony– Postwar. A History of Europe since 1945, p. 152.

37 Comunicado final do Conselho do Atlântico Norte, Lisboa, NATO, 20-25 de Fevereiro de 1952. [Consultado em: 7 de Julho de 2010]. Disponível em: www.nato.int/docu/comm/49-95/c520225a.htm.

38 Sobre as negociações para o acordo dos açores de 1951 ver TELO, António José – Portugal e a NATO. O Reencontro da Tradição Atlântica, pp. 113-134.

39 Diário de Notícias, 20 de Fevereiro de 1952, pp. 1 e 6.

40 Ibidem, pp. 1 e 6.

41 O Século, 10 de Agosto de 1950, pp. 1 e 2.

42 «Evolução da NATO durante os últimos meses: de Otawa a Roma e ao TCC», 8 de Julho. AHMNE – RNP, a. 50, m. 102.

43 Ofício da Embaixada de Portugal em Londres, 17 de Abril de 1952. AHMNE – RNP, a. 57, m. 103.

44 EDEN, Anthony – Full Circle. Londres: Cassel, 1960.

45 Informação de serviço, 17 de Março de 1952. AHMNE – RQE, a. 51, m. 21.

46 «Evolução da NATO durante os últimos meses: de Otawa a Roma e ao TCC», 8 de Julho. AHMNE – RNP, a. 50, m. 102.

47 Informação de serviço, 17 de Março de 1952. AHMNE – RQE, a. 51, m. 21.

48 Memorando de Conversa com o Embaixador de Portugal em Washington, 13 de Julho de 1951. NARA – rg59, lot file 59d108, Cx. 1.

49 Memorando da Embaixada dos EUA no Canadá, 14 de Setembro de 1951. FRUS 1951. Vol. III, parte 1, p. 651.

50 «Evolução da NATO durante os últimos meses: de Otawa a Roma e ao TCC», 8 de Julho. AHMNE – RNP, a. 50, m. 102.

51 Diário de Notícias, 20 de Fevereiro de 1952, pp. 1 e 6.

52 Carta de Oliveira Salazar a Marcello Mathias, 25 de Fevereiro de 1952. In SERRÃO, Joaquim Veríssimo (org.) – Correspondência Marcello Mathias/Oliveira Salazar, 1947-1968. Lisboa: Difel, 1984, pp. 206-209.

53 ACHESON, Dean – Present at the Creation. Londres: Hamish Hamilton, 1970, pp. 627-628.

54 BEISNER, Robert – Dean Achseon. A Life in Cold War. Oxford: Oxford University Press, 2006, pp. 596-597.

55 JUDT, Tony – Postwar. A History of Europe since 1945, p. 244.

56 Ofício n.º 1163 do Serviço do Pacto do Atlântico Norte de 8 de Abril de 1953. AHMNE – RNP, A. 50, M. 102.