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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.27 Lisboa set. 2010

 

A NATO e o «regresso» da Turquia

 

André Barrinha

Professor auxiliar convidado de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

 

RESUMO

Tanto a Turquia como a NATO estão num período de redimensionamento dos seus respectivos papéis na esfera internacional. A NATO encontra-se num processo de definição de um novo Conceito Estratégico, ao mesmo tempo que leva a cabo no Afeganistão a maior missão militar da sua história. A Turquia, por sua vez, vive um processo de redefinição das suas alianças, parcerias estratégicas e prioridades de política externa tanto na sua vizinhança como relativamente às potências internacionais em ascensão. É perante este contexto de mudanças mútuas que este artigo se propõe analisar a relação entre a NATO e a Turquia.

Palavras-chave: Turquia, política externa turca, NATO, revisão do Conceito Estratégico

 

ABSTRACT

NATO and the return of Turkey

Both NATO and Turkey are going through considerable changes regarding their place in the world. The former is in the process of defining a New Strategic Concept, whilst undertaking its most demanding military operation to date, in Afghanistan. The latter is redrawing its map of alliances, strategic partnerships and overall foreign policy priorities, in both its neighbourhood and among the new international emerging powers. It is under this context of mutual changes that this article proposes to analyse the relationship between NATO and Turkey.

Keywords: Turkey, Turkish foreign policy, NATO, Strategic Concept review

 

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) está em mudança. O novo Conceito Estratégico que, ao que tudo indica, será aprovado em Lisboa no fim de Novembro, irá certamente realçar o que desde 1999 – data do último Conceito Estratégico – tem sido uma progressiva reconfiguração da lógica e lugar da NATO no mundo. De uma organização de defesa colectiva do espaço euroatlântico durante a Guerra Fria, a Aliança Atlântica transformou-se numa organização de alcance global, com missões no continente africano (Sudão e golfo de Adem), Ásia (Afeganistão) e Europa (Kosovo), e com parcerias em 36 países desde a Rússia a Marrocos.

Também a Turquia, membro da NATO desde 1952, aparenta estar em mudança, tendo nos últimos ano vindo a revelar-se um actor com uma presença internacional cada vez mais visível, com claro destaque para a região do Médio Oriente. O seu único aliado estratégico na região, Israel, é-o cada vez menos, enquanto que países tradicionalmente vistos com suspeição em Ancara, países como a Síria e o Irão, viram as suas relações com a Turquia consideravelmente melhoradas. Contudo, mais do que a especificidade das políticas de Ancara, importa salientar a sua mudança de estratégia no sentido de tornar a Turquia num actor de reconhecido peso internacional. Este redimensionamento da política externa turca obriga, assim, ao reequacionar do papel deste país no quadro da Aliança Atlântica.

É perante este contexto de mudanças mútuas que discutiremos o papel da Turquia no quadro de uma NATO em vésperas de rever o seu Conceito Estratégico. Será aqui defendido que, ao contrário do que acontecia durante a Guerra Fria, a principal contribuição da Turquia para os interesses da Aliança será sobretudo definida em termos político-diplomáticos e culturais e não tanto em termos militares e estratégicos. Este contributo está, contudo, dependente do papel que a NATO pretenda vir a desempenhar na próxima década. Parece claro, a partir da análise do relatório do grupo de peritos liderado por Madeleine Albright, «NATO 2020», que esse papel passa pela afirmação da NATO enquanto organização de âmbito global. Para atingir esse objectivo, a NATO necessitará não só de reforçar as suas actuais parcerias, como de criar novas parcerias com potências emergentes como a China e a Índia. Importa assim saber qual o potencial contributo da Turquia no contexto de uma NATO de dimensão global. Este artigo procurará, de certa forma, responder a esta questão.

Em termos de estrutura, a primeira parte do artigo debruçar-se-á sobre o significado do relacionamento entre as duas instituições e a forma como este evoluiu desde o final da II Guerra Mundial de modo a melhor perceber o que historicamente a Turquia representa para a NATO e vice-versa. O artigo passa em seguida para a análise e avaliação das principais mudanças na actual política externa turca, sendo aqui destacado o papel do actual ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Ahmet Davutoglu, na promoção de uma visão empreendedora e activa na promoção dos interesses da Turquia no exterior. Finalmente, na última parte serão apresentados os problemas e as mais-valias que a Turquia, enquanto potência emergente, colocará a uma NATO de pendor global.

 

A NATO como pilar ocidental da identidade turca1

Apesar do seu historicamente estratégico posicionamento geográfico, a Turquia só passou a ser vista como um aliado indispensável pelos Estados Unidos após a mudança de percepção por parte de Washington relativamente à emergente ameaça soviética. O receio de contágio do expansionismo soviético ao Sudeste europeu levou o então Presidente Henry Truman a definir o que ficaria conhecido como a «doutrina Truman», pela qual se tornava fundamental garantir que a Grécia e a Turquia não caíssem na zona de influência de Moscovo. Nos anos que se seguiram, a Turquia e os Estados Unidos encetaram uma política de aproximação, com Ancara a providenciar bases militares para os norte-americanos e a contribuir para o esforço de guerra na Coreia e estes a ajudar económica e militarmente a Turquia2.

Enquanto que para os Estados Unidos e aliados a adesão da Turquia à NATO derivava de uma lógica estratégica – só assim se justificava a adesão de um país mais pobre e menos democrático (à semelhança do que já tinha acontecido com Portugal) ao restrito grupo de membros da NATO –, na capital turca, a adesão à NATO revestia-se de outra importância: correspondia à afirmação da Turquia enquanto parte integrante do mundo ocidental3. Mais do que uma questão estratégica era para Ancara uma questão identitária. De acordo com o Ministério dos Negócios Estrangeiros turco, a Turquia «fez a escolha histórica de se aliar ao mundo livre e de se opor ao comunismo e ao expansionismo soviético»4, resultando essa opção na adesão à NATO em Fevereiro de 1952.

A NATO foi, durante a Guerra Fria, vista por Ancara como central para a sua política de segurança e defesa, sendo que, em contrapartida, a Turquia contribuía para a segurança da Aliança ao defender e controlar um terço da fronteira da NATO com o antigo Pacto de Varsóvia5. Em boa verdade, o facto de pertencer à NATO fez com que até ao final da Guerra Fria, apesar de toda a instabilidade interna, a Turquia tivesse um estável pilar externo onde se apoiar6, ao mesmo tempo que permitia às elites de Ancara cumprir o desígnio kemalista de tornar a Turquia um moderno país ocidental. Tal como salienta o actual ministro da Defesa turco, Vecdi Gönül, «[a] Aliança contribuiu significativamente para a integração da Turquia na área euroatlântica»7, levando, por sua vez, a que a Turquia tenha adoptado «os valores comuns partilhados pelos aliados, defendendo-os de forma empenhada»8.

Com o fim da Guerra Fria, e a necessária alteração na lógica de existência da NATO, também o papel da Turquia na mesma parecia ter perdido alguma da sua razão de ser; contudo, rapidamente se constatou o contrário. A Guerra do Golfo e o eclodir das guerras dos Balcãs veio mostrar que a Turquia continuava a ocupar um papel central no quadro da Aliança Atlântica. Esta era, pelo menos, a percepção de Ancara, para quem a Turquia era agora um membro de valor acrescido no quadro da Aliança, como defendia o então chefe de Estado-Maior das Forças Armadas turcas, o general Bir9 . Ainda de acordo com o mesmo, o país estava agora na linha da frente das novas ameaças e desafios que se colocavam à aliança10 . Deixava assim a periferia, passando a ocupar um lugar de destaque no seu centro nevrálgico. Em confirmação disso mesmo, o ministro da Defesa turco, Vecdi Gönül, teve recentemente oportunidade de afirmar que, com o colapso do Pacto de Varsóvia, a Turquia deixou de ser um flanco da NATO e passou a estar no centro da cintura euroasiática, assumindo assim uma nova relevância no quadro da organização11.

Apesar do fim da Guerra Fria, a Turquia continuava a considerar como fundamental a existência de uma NATO forte e estável12 . Nesse sentido, Ancara assumiu a participação nas missões de paz da organização como prioritárias para os interesses estratégicos do país, tendo estado presente em todas as missões da NATO nos Balcãs: IFOR e SFOR na Bósnia-Herzegovina, KFOR no Kosovo, Essential Harvest, Amber Fox e Allied Harmony na Macedónia13.

Com o 11 de Setembro e o consequente recentrar das atenções a Oriente, a Turquia manteve-se na linha da frente das iniciativas da Aliança. No quadro do Afeganistão, a Turquia já assumiu diversas posições de responsabilidade, incluindo o comando da ISAF entre Junho de 2002 e Fevereiro de 2003 e da ISAF-VII em 2005 e a participação, desde 2006, no Comando Central de Cabul juntamente com a França e a Itália. A Turquia lidera igualmente desde 2006 uma Provincial Reconstruction Team na província de Wardak, mantendo actualmente no país cerca de 1600 soldados. Finalmente, há ainda a realçar que entre 2004 e 2006 a NATO fez-se representar a nível civil no Afeganistão pelo antigo ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Hikmet Çetin14.

Como já referimos, o empenho da Turquia deve-se tanto à importância militar da NATO, como ao poder político e simbólico que esta representa15 . Em bom rigor, apesar de a Turquia considerar a presença na organização como importante na dissuasão de eventuais ataques provenientes do Médio Oriente16 , não deixa de ver com cepticismo, particularmente depois do trauma da Carta de Lyndon Johnson17 em 1964, uma eventual assistência da NATO em caso de ataque iminente. É pois ao nível político que a NATO assume maior relevo para Ancara. A presença da Turquia na NATO constitui um dos pontos de estabilidade na instável relação entre Ancara e Washington18 , ao mesmo tempo que propicia um fórum de socialização com a esmagadora maioria dos países da União Europeia (22 dos 27 estados-membros), importante no quadro do processo de adesão a esta organização. Finalmente, a pertença à Aliança Atlântica é uma clara marca de contraste da Turquia face à sua vizinhança oriental. Na sua batalha pela contínua construção da sua identidade enquanto nação, a Turquia encontra, na pertença a uma organização vincadamente ocidental, um importante pilar no equilíbrio entre a sua herança cultural ocidental e oriental.

Em suma, apesar de terem sido factores estratégicos, em detrimento dos valores e princípios proclamados no Tratado de Washington, a determinar a adesão da Turquia à NATO, a importância da pertença deste país à Aliança Atlântica foi-se igualmente alicerçando no seu significado político e simbólico, essencial na definição da identidade turca como tendencialmente ocidental. Esta dimensão identitária é fundamental para perceber as razões pela qual a Turquia continua a ver a Aliança Atlântica como central na sua política externa, apesar de, como veremos em seguida, algumas das suas recentes medidas e atitudes na cena internacional poderem, por vezes, indiciar o contrário.

 

A política externa do Partido Da Justiça E Do Desenvolvimento

Com a vitória eleitoral do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) em Novembro de 2002 e a consequente formação de um governo maioritário de cariz socialmente conservador, a Turquia entrava numa nova fase da sua conturbada história política. Apesar de algum cepticismo interno e externo, o Governo de Recep Tayiip Erdogan rapidamente se mostrou interessado em seguir as linhas de política externa traçadas pelos seus antecessores, com um claro enfoque no processo de integração europeia.

A grande excepção seria a questão do Iraque, criadora de divergências entre Washington e Ancara e construtora de desconfianças mútuas que se prolongariam pelo resto da Administração Bush. Na verdade, o Governo de Erdogan havia chegado a acordo com os Estados Unidos relativamente ao estabelecimento de uma frente de ataque a partir do Sudeste da Turquia; contudo, Washington veria as suas intenções serem chumbadas pelo Parlamento de Ancara depois de mais de cem deputados do partido do Governo se terem juntado à oposição no chumbo da proposta. O relacionamento entre os Estados Unidos e a Turquia conheceria aqui um forte período de turbulência, agravado pela inércia norte-americana – na perspectiva de Ancara – relativamente ao reacender do conflito com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).

A invasão do Iraque e consequente autonomização da região curda do Norte do país (único pólo de estabilidade no Iraque) estabeleceram as condições necessárias para o PKK aí encontrar um refúgio seguro a partir de onde encetar os seus ataques em território turco19. Apesar dos pedidos de Ancara para que os Estados Unidos interviessem no sentido de retirar as bases de apoio ao movimento rebelde curdo, Washington respondeu sempre de forma ineficaz, procurando promover o diálogo entre as diversas partes envolvidas na questão, protelando sempre a tomada de medidas que pusessem em causa a estabilidade dos seus aliados do Norte do Iraque20.

Só a partir de finais de 2007 é que os Estados Unidos começaram a assumir uma atitude mais convergente com os anseios securitários turcos21, aceitando uma incursão militar limitada de Ancara na zona das montanhas Qandil no Norte do Iraque, no sentido de erradicar as bases do PKK. Contudo, a desconfiança em Ancara de que Washington privilegiava o seu relacionamento com os líderes curdos iraquianos Massoud Barzani (presidente da região) e Jalal Talabani (Presidente do Iraque), em detrimento da aliança entre os Estados Unidos e a Turquia, não se desfez com este consentimento norte-americano.

Apesar de estarem muito longe do período áureo dos anos 1950, as relações entre Ancara e Washington melhoraram consideravelmente com a Administração Obama. Na sua visita à Turquia em Abril de 2009, a primeira a um país muçulmano o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, deu sinais claros de querer reavivar as relações entre os dois países22. Washington parece ter percebido a importância da Turquia no quadro de um sistema internacional em que os eixos de poder se parecem mover para leste. Alheias a este facto não serão certamente as mudanças em matéria de política externa que a Turquia tem operado nos últimos anos. Importa pois agora analisar em que é que se consubstanciam essas mudanças e quais as lógicas que lhes estão subjacentes.

 

Davutoglu e o «regresso» da Turquia

Seria abusivo afirmar que a passagem de Davutoglu do gabinete do primeiro-ministro para ministro dos Negócios Estrangeiros marca o ponto de inflexão da política externa turca da última década, na medida em que muitas das medidas e atitudes tomadas desde então não foram mais do que a continuação do primeiro mandato do AKP e até de governos anteriores; contudo, com Davutoglu ao leme do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a política externa turca passou a ter uma coerência estratégica que não detinha nos primeiros anos do Governo de Erdogan.

Esta coerência deriva, em larga medida, do seu trabalho enquanto professor de Relações Internacionais nas universidades de Marmara e Beykent, na Turquia. Aí desenvolveu uma linha de pensamento que defendia a necessidade de a Turquia aceitar a sua condição de potência pluri-regional e de se afirmar enquanto tal nos diferentes cenários de actuação na sua vizinhança. No seu livro Profundidade Estratégica (2001), Davutoglu afirma que a Turquia tem responsabilidades históricas (do Império Otomano à adesão à NATO) e um posicionamento geográfico que a deveriam levar no sentido de um maior activismo externo23, de carácter mais cultural e económico24, que começasse na estabilização da sua vizinhança: a «política dos problemas zero»25.

Esta profundidade estratégica a que Davutoglu se refere acaba, de certa forma, por retomar a ideia do neo-otomanismo desenvolvida pelo antigo Presidente turco Turgut Özal. Apesar de não se poder falar de uma ligação directa entre o pensamento de Özal e a actual política do AKP 26, ambos partem dos mesmos dois pressupostos: que a Turquia tem de ter uma presença activa na cena internacional e que essa presença deve estar alicerçada na combinação da sua história com o seu posicionamento geográfico. O neo-otomanismo do AKP possui uma grande visão estratégica em que a Turquia se afirma como um actor de pacificação regional e que serve de ponte efectiva entre o Oriente e o Ocidente. Três factores ajudam a definir o neo-otomanismo do AKP.

Em primeiro lugar, é uma perspectiva que assume uma atitude mais moderada relativamente à influência do islão na Turquia e no exterior, em detrimento tanto do secularismo radical kemalista, como do radicalismo islâmico. Essa moderação deve, pois, de acordo com esta visão, servir de instrumento no desenvolvimento das relações com o restante mundo muçulmano. O neo-otomanismo é um conceito que, de acordo com Omar Taspinar, redefine o próprio sentido de identidade turca, salientando a sua multiculturalidade e pluralidade geográfica27 , na medida em que a Turquia é, na opinião de Davutoglu, um país de múltiplas identidades regionais devido ao seu posicionamento entre o Médio Oriente, os Balcãs, o Cáucaso, a Ásia Central, o Mediterrâneo, o golfo Pérsico, o mar Cáspio e o mar Negro28.

O segundo aspecto diz respeito à auto-redefinição do poder da Turquia face ao panorama regional e internacional. O neo-otomanismo considera a Turquia como uma «superpotência regional»29que deve desenvolver as relações com o exterior com confiança e determinação. Finalmente, o terceiro aspecto diz respeito à materialização da ideia da Turquia enquanto «ponte» entre o Ocidente e o Oriente. Uma ideia que faz parte do discurso de e sobre a Turquia, e que, embora estivesse longe de corresponder à realidade até há pouco tempo, assume agora uma verdadeira centralidade no projecto de política externa turca.

O neo-otomanismo distingue-se, assim, do kemalismo que dominou várias décadas de política externa turca nestas três dimensões: favorece um activismo regional em oposição à precaução e modéstia kemalista; favorece o multiculturalismo e laicismo liberal em oposição ao nacionalismo quase-étnico e a um secularismo radical; e, finalmente, tenta avançar no sentido da integração europeia e do estabelecimento de boas relações com os Estados Unidos, enquanto os kemalistas vêem ambos com ressentimento e frustração30.

A Turquia tem, nesse sentido, promovido a inflexão de relacionamentos tendencialmente confrontacionais, promovendo a diplomacia cultural e económica como factor de aproximação. Em Outubro de 2009, assinou um acordo com a Arménia no sentido de restabelecer as relações diplomáticas, apesar das questões do genocídio arménio e do conflito entre arménios e azeris em Nagorno-Karabagh permanecerem por resolver31. Ainda em 2009, depois de périplos pelo Médio Oriente de Erdogan e Davutoglu, a Turquia assinou acordos com a Síria, o Líbano, a Líbia e a Jordânia no sentido de abolir a necessidade de visto para cidadãos destes países entrarem na Turquia32. Também com o Irão, a Turquia tem desenvolvido um relacionamento mais estreito, fruto dos interesses económicos turcos nesse país. O volume do investimento da Turquia no Irão atingiu, no último ano, os dez mil milhões de dólares, esperando-se que venha a triplicar no futuro próximo33. O seu papel de país próximo de Teerão fez com que, juntamente com o Brasil, chegasse em Maio último a um compromisso com o regime de Ahmadinejad no sentido de o Irão transferir 1200 quilos de urânio pouco enriquecido (que continuaria a ser iraniano) para a Turquia em troca de um reactor de pesquisa34 compromisso esse cuja implementação veio posteriormente a ser rejeitado pelos Estados Unidos.

A excepção tem residido no relacionamento com Israel, cujo recente caso da flotilha humanitária para Gaza interceptada pelos militares israelitas, que levou à morte de oito cidadãos turcos e de um cidadão norte-americano de origem turca35, foi o último episódio. A subida de intensidade na retórica turca, apoiada pela maioria da opinião pública turca e acompanhada de medidas como a interrupção de relações diplomáticas entre os dois países, faz antecipar uma estrutural deterioração do relacionamento entre os dois países. O próprio Presidente Abdullah Gül fez questão de referir nas cerimónias fúnebres dedicadas às vítimas do ataque à flotilha humanitária, que as relações com Israel «não voltarão a ser iguais»36.

As alterações de comportamento turco a nível externo vão, contudo, muito para além do Médio Oriente. A Turquia tem hoje relações mais sustentadas com a Rússia, a Índia e a China, reforçou a sua presença no Cáucaso e na Ásia Central, tem sido um importante aliado da Bósnia-Herzegovina e tem promovido uma política de diversificação de mercados, alargando o seu relacionamento a países da América do Sul (com destaque para o Brasil) e África, continentes onde desenvolve uma agressiva política de abertura de novas embaixadas37. Isto porque um dos aspectos defendidos por Davutoglu, e por vezes subestimada por analistas alarmados com a dimensão político-cultural da política externa turca no Médio Oriente38, diz respeito ao papel que a geoeconomia assume neste ressurgimento internacional da Turquia. Como salienta Nora Fischer Onar, para Davutoglu é fundamental que Ancara expanda os seus laços económicos através do estabelecimento de ligações comerciais com novos países, com destaque para mercados emergentes39. Esta expansão deve, contudo, obedecer a uma lógica estratégica que se enquadra nas restantes vertentes da política externa turca. A Turquia tem tido um constante crescimento económico acima dos cinco por cento ao ano, esperando para 2010 um crescimento de 6,8 por cento40. Apesar de não ser critério único na definição da actual política externa turca, não deixa de ser um factor a ter em consideração, na avaliação da actual política externa turca, assim como na análise do potencial contributo da Turquia para o futuro da Aliança Atlântica.

 

A Turquia na redefinição da lógica de existência da NATO

Como refere Jamie Shea, director de planeamento político do secretário-geral da NATO, nunca a elaboração de um Conceito Estratégico gerou tanta expectativa e cobertura mediática, factor que salienta a importância do documento para a Aliança neste momento particular41. De acordo com o relatório do Grupo de Peritos liderado por Madeleine Albright, o novo Conceito Estratégico deve clarificar «o que a NATO devia fazer por cada Aliado e o que cada Aliado devia fazer pela NATO»42. Também para Shea, o novo Conceito Estratégico deve colocar uma ênfase acentuada no papel global da NATO, com um claro enfoque no relacionamento para lá das suas fronteiras, o que obrigará ao desenvolvimento de mais parcerias com novos países, que não visam a adesão à organização, mas sim a estabilização de relações com a Aliança Atlântica43. Tal como reiterou o grupo de peritos no relatório «NATO 2020», «o novo Conceito Estratégico deve reconhecer que, à medida que a NATO avança para 2020, não irá, em geral, actuar sozinha. Parcerias, em toda a sua diversidade, ocuparão um lugar central na vida diária da Aliança»44, num quadro em que a NATO nem sempre ocupará um papel central no plano internacional: «É provável que a NATO, entre 2010 e 2020, apareça menos no palco central das questões globais.»45 Se, como tudo indica, a NATO caminha para a sua afirmação de enquanto organização de alcance global, então a Turquia terá, tal como defende o seu ministro da Defesa46 , um papel importante a desempenhar no seio da organização. Cenários como o Afeganistão47, o Médio Oriente e os Balcãs ou questões como o terrorismo e a proliferação nuclear, colocam a Turquia como actor central no quadro das políticas da Aliança Atlântica.

Se nos anos 1950 a ameaça soviética justificava a adesão da Turquia por questões estratégicas, a sua actual presença na Aliança é necessariamente compreendida de outra forma. Em boa verdade, se havia uma clara discrepância entre a identidade que a NATO pretendia assumir e a realidade da presença de países como a Grécia, a Turquia e Portugal, agora a presença turca pode ser um aspecto-chave na actual lógica de existência da NATO, uma lógica de flexibilidade, operacionalidade e intervencionismo político e militar.

A Turquia possui um dos maiores exércitos da NATO, com experiência de contra-insurreição; tem maior facilidade em estabelecer relações de proximidade em regiões onde a NATO é vista, no mínimo, com suspeição, como, por exemplo, no Afeganistão. Para Ancara, a sua política externa proactiva na sua vizinhança é uma mais-valia para a NATO. Numa entrevista concedida ao jornal turco Today’s Zaman, um diplomata turco junto da NATO48 considerou que a actual política externa turca lhe dá mais credibilidade junto dos restantes 27 estados-membros e que reforça a presença da NATO em regiões como o Médio Oriente e os Balcãs49 . Ainda de acordo com o mesmo, esse efeito já se faz sentir com a Turquia a ser cada vez mais consultada no quadro da NATO relativamente ao evoluir das operações da organização50.

Este activismo externo turco tem, contudo, consequências potencialmente negativas. Tal como houve ocasião de salientar noutra circunstância51 , seguindo a teoria dos complexos regionais de segurança da Escola de Copenhaga, a Turquia é um «insulator», isto é, uma entidade política afectada por vários complexos regionais, sem que no entanto pertença a qualquer um deles52 . Isto faz com que, na realidade, a sua presença seja sempre a de um actor exterior a interferir no relacionamento intra-regional. Por muito próximo que esteja dessas mesmas regiões, por muito eficaz que seja a influência que tenta assumir sobre estas e por muito negativas que sejam as externalidades oriundas dessas mesmas regiões, a verdade é que a influência da Turquia será neste contexto sempre limitada pela sua condição de actor exterior. Ao envolver-se directamente no complexo regional do Médio Oriente, a Turquia tem tentado alterar as relações de segurança da região. Em termos práticos, conseguiu aproximar-se de países como a Síria e o Irão ao mesmo tempo que se distanciou de Israel. A sua intenção de actuar como mediador na região serviu para mostrar as suas próprias limitações enquanto tal. A verdade é que a Turquia parece cada vez menos isenta nesse contexto. Por exemplo, em Outubro de 2009 a Turquia retirou o convite a Israel para os regulares exercícios militares com a NATO em território turco. No mesmo dia, anunciou a realização de exercícios com a Síria, semanas depois de Ancara e Damasco terem estabelecido um «conselho de cooperação estratégica», como fórum de diálogo estratégico entre os dois países53. Quanto mais a Turquia se envolve na região, mais se deixa influenciar pelos precários equilíbrios de poder aí existentes, correndo o sério risco de passar de mediador a desestabilizador.

Em suma, contrariamente à mais-valia estratégica (derivada do seu posicionamento geográfico) e militar (derivada do seu poder militar), a Turquia apresenta agora uma mais-valia política e diplomática, sendo capaz de dialogar, negociar e ser ouvida em países onde a NATO, enquanto organização, não tem acesso. Contudo, a materialização dessa mais-valia implica a aceitação dos seus limites enquanto «insulator» e enquanto membro da Aliança Atlântica. Um envolvimento demasiado acentuado na região pode facilmente tornar essa mais-valia uma dor de cabeça para a Aliança Atlântica, com o potencial de ver um dos seus principais membros arrastado para o explosivo clima securitário da região.

 

Conclusão

Como salienta Jamie Shea, vai ser difícil à NATO distanciar-se muito do documento apresentado pelo grupo de trabalho liderado por Madeleine Albright54 . Nesse sentido, a ideia da NATO global, mas não necessariamente central, parece ser o cenário que se desenha para o novo Conceito Estratégico. Nesse contexto, a Turquia, enquanto potência emergente alicerçada na combinação de um poder militar sem igual na região, com um crescimento económico superior a qualquer outro membro da Aliança e com um património histórico e cultural únicos, pode e quer desempenhar um papel central no futuro da NATO. Isso acarreta, contudo, responsabilidades para ambas as partes: para a Turquia, a aceitação dos seus limites, principalmente no quadro do Médio Oriente; para os restantes membros da Aliança Atlântica, a compreensão das mais-valias que uma Turquia forte e diplomaticamente activa pode trazer para o seio de uma organização, que, de um quadro de Guerra Fria, necessita agora de se situar num mundo de potências emergentes, de polaridade indefinida.

 

Notas

1 Todas as citações contidas neste artigo estavam originalmente em inglês, tendo sido traduzidas pelo próprio autor.

2 KIRISÇI, Kemal – «U.S.-Turkish relations: New uncertainties in a renewed partnership», In RUBIN, Barry e KIRISÇI, Kemal (orgs.) – Turkey in world politics. An emerging multiregional power, Istambul: Bogazici University Press, 2002, p. 171

3 RUBIN, Barry – «Turkey: A transformed role», In RUBIN, Barry e KIRISÇI, Kemal (orgs.) – Turkey in world politics. An emerging multiregional power, Istambul: Bogazici University Press, 2002, p. 3.

4 Ministry of Foreign Affairs – «Turkey’s Security (NATO)», 2008, Disponível em: http://www.mfa.gov.tr

5 Ministry of Foreign Affairs – «Turkey’s Security (NATO)».

6 Cf. KUT, Sule – «The contours of Turkish foreign policy in the 1990s», In RUBIN, Barry e KIRISÇI, Kemal (orgs.) – Turkey in world politics. An emerging multiregional power, Istambul: Bogazici University Press, 2002, pp. 7-18.

7 GÖNÜL, Vecdi – «Turkey-NATO relations and NATO’s new strategic concept», In Hurriyet Daily News & Economic Review, 27 de Julho de 2010.

8 Ibidem.

9 ÖZCAN, Gencer – «The military and the making of foreign policy in Turkey». in RUBIN, Barry, e KIRISÇI, Kemal (orgs.) – Turkey in World Politics. An Emerging Multiregional Power. Istambul: Bogazici University Press, 2002, p. 35.

10 Ibidem.

11 GÖNÜL, Vecdi – «Turkey-NATO relations and NATO’s new strategic concept», In Hurriyet Daily News & Economic Review, 27 de Julho de 2010.

12 ROBINS, Philip – Suits and Uniforms. Turkish Foreign Policy Since the Cold War. Londres: Hurst&Company, 2003, p. 20.

13 GÖNÜL, Vecdi – «Turkey-NATO relations and NATO’s new strategic concept».

14 Ibidem.

15 Cf. Williams, Michael – Culture and Security. Symbolic Power and the Politics of International Securit y. Londres: Routledge, 2007.

16 ERALP, Yalim – «An Insider’s View of Turkey’s Foreign Policy and Its American Connection», In ABRAMOWITZ, Morton (org.) – The United States and Turkey. Allies in Need. Nova York: The Century Foundation Press, 2003, p. 117

17 Em 1964, num contexto de crescente polarização social e política no Chipre, o presidente norte-americano Lyndon Johnson, aconselhou à não intervenção da Turquia na ilha, sob pena de originar uma resposta da união soviética (URSS) e de nada garantir que a NATO pudesse intervir em defesa da Turquia.

18 ERALP, Yalim – «An insider’s view of Turkey’s foreign policy and its American connection», p. 117.

19 LARRABEE, Stephen – «Revitalizar las relaciones con Estados Unidos», In Vanguardia Dossier, 32, Julho/Setembro 2009, p. 101.

20 Cf. BARRINHA, André – «The Copenhagen School in US-Turkey relations: the ‘War on Terror’ in Northern Iraq», Oficina do CES, n.º 295, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, 2008.

21 Ibidem.

22 Cf. ONAR, Nora Fisher – «Neo Ottomanism, historical legacies and Turkish Foreign Policy», EDAM Discussion Paper Series, 2009.

23 BARYSCH, Katinka – «Can Turkey combine EU accession and regional leadership?», Policy Brief, Center for European Reform, 2010, p. 4.

24 Ibidem, p. 5.

25 Ibidem, p. 6.

26 Sobre as diferenças entre uma e outra doutrina ver ONAR, Nora Fisher – «Neo Ottomanism, historical legacies and Turkish Foreign Policy».

27 TASPINAR, Omer – “La compleja política turca para Oriente Médio”, In Vanguardia Dossier, 32, Julho/Setembro, pp. 108-109.

28 DAVUTOGLU, Ahmet – «Turkish Foreign Policy and the EU in 2010», In Turkish Policy Quarterly, vol. 8, n.º 3, 2009, p. 12.

29 TASPINAR, Omer – «La compleja política turca para Oriente Médio», p. 109.

30 Ibidem, p. 110.

31 Cf. GRIGORIADIS, Ioannis – “The Davutoglu Doctrine and Turkish Foreign Policy”, Working Paper n.º 8, Middle Eastern Studies Programme, ELIAMEP, 20100.

32 Cf. BARYSCH, Katinka – «Can Turkey combine EU accession and regional leadership?», Policy Brief, Center for European Reform, 2010.

33 MATTHEWS, Owen – «Ankara in the Middle», In Newsweek, 2 de Agosto de 2010.

34 «Iran signs nuclear fuel-swap deal with Turkey». in BBC News, 17 de Maio de 2010, disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/middle_east/8685846.stm

35 «Turkey mourns Gaza aid flotilla dead». in The Daily Telegraph, 3 de Junho de 2010.

36 Ibidem.

37 GRIGORIADIS, Ioannis – “The Davutoglu Doctrine and Turkish Foreign Policy”, Working Paper n.º 8, Middle Eastern Studies Programme, ELIAMEP, 2010, p. 8.

38 O director do programa de política árabe do Washington Institute for Near East Policy questiona mesmo se o governo ‘islamista’ de Ancara, em face da orientação de política externa turca e em face dos seus problemas internos, devia ter acesso à próxima geração dos Joint Strike Fighter, aviões caça que serão entregues à Turquia em 2014, aviões tecnologicamente muito avançados (SCHENKER, David – «A NATO Without Turkey?», In The Wall Street Journal, 5 de Novembro de 2009).

39 ONAR, Nora Fisher – «Neo Ottomanism, historical legacies and Turkish Foreign Policy», EDAM Discussion Paper Series, 2009, pp. 11-12.

40 «Turkey growth forecast almost doubled by OECD», In Hurriyet Daily News & Economic Review, 26/05/2010.

41 SHEA, Jamie – «What Will be in NATO’s New Strategic Concept?», In Turkish Policy Quarterly, Vol. 9 (1), 2010, p. 47

42 ALBRIGHT, Madeleine et al. – «NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement». Analysis and Recommendations of the Group of Experts on a new strategic concept for NATO, 17 de Maio de 2010, p. 6.

43 SHEA, Jamie – «What Will be in NATO’s New Strategic Concept?», In Turkish Policy Quarterly, Vol. 9 (1), 2010, p. 56

44 ALBRIGHT, Madeleine et al. – «NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement», 17 de Maio de 2010, p. 10

45 Ibidem, p. 12.

46 GÖNÜL, Vecdi – «Turkey-NATO relations and NATO’s new strategic concept».

47 No caso do Afeganistão, a OTAN já reconheceu oficialmente a centralidade do papel da Turquia. De acordo com o porta-voz da OTAN, James Appathurai, nenhum outro membro da Aliança “pode desempenhar o papel que a Turquia desempenha na região – especialmente o seu papel político” (In ÇELIK, Minhac – «Turkey’s role in Afghanistan unique, NATO spokesman says», In Today’s Zaman, 27 de janeiro de 2010).

48 Falando sob condição de anonimato.

49 ÇELIK, Minhac – «Turkey’s role in Afghanistan unique, NATO spokesman says».

50 Ibidem.

51 BARRINHA, André – “A Turquia e a ilusão do Médio Oriente”, In revista Relações Internacionais, nº 21, IPRI-UNL, 2009.        [ Links ]

52 Cf. BUZAN, Barry e WÆVER, Ole – Regions and Powers. The Structure of International Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. Cf. KAZAN, Isil – Regionalisation of Security and Securitisation of a Region: Turkish Security Policy After the Cold War. PhD Series. Copenhaga: Institute of Political Science, University of Copenhagen 2003.

53 SCHENKER, David – «A NATO Without Turkey?», In The Wall Street Journal, 5 de Novembro de 2009.

54ALBRIGHT, Madeleine et al. – «NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement», p. 48.

 

Referências Bibliográficas

ECE, Nazife – «Where is NATO in Turkey?», In Turkish Policy Quarterly, Vol. 9 (1), pp. 85-93, 2010.

FULLER, Graham E. – The New Turkish Republic. Turkey as a pivotal state in the Muslim world. Washington DC: USIP, 2008.

KALIN, Ibrahim – «Turkey and NATO: Is non-alliance an option?», In Today’s Zaman, 04 de Setembro de 2008.

UZGEL, Ilhan – «The Balkans: Turkey’s stabilizing role». In RUBIN, Barry e KIRISÇI, Kemal (orgs.) – Turkey in world politics. An emerging multiregional power, Istambul: Bogazici University Press, 2002, pp. 65-92.