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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.27 Lisboa set. 2010

 

A NATO e o Grande Médio Oriente

 

Bernardo Pires de Lima

Investigador do IPRI–UNL. Doutorando em Relações Internacionais na FCSH–UNL, onde desenvolve uma tese sobre a NATO e o fim da Guerra Fria. Comentador de assuntos internacionais na TVI24 e Rádio Renascença. Colunista da Majalla Magazine. É autor de Blair, a Moral e o Poder (Guerra & Paz, 2008).

 

RESUMO

O Grande Médio Oriente é simultaneamente uma região-chave aos interesses de segurança da NATO, e um dos seus maiores desafios. Do AfPak ao Magreb, do Irão à Palestina, são demasiadas variáveis em jogo para que a Aliança se possa alhear. Este artigo defende um reforço da atenção estratégica da NATO sobre o Grande Médio Oriente, mas aponta algumas lacunas na abordagem do Relatório Albright a esta região. A inevitabilidade estratégica da região para o espaço euroatlântico é ainda acompanhada de incertezas quanto ao comportamento da Turquia enquanto membro da NATO e potência regional determinante.

Palavras-chave: NATO, revisão do Conceito Estratégico, Relatório Albright, Médio Oriente, Turquia

 

ABSTRACT

NATO and the Greater Middle East

The Greater Middle East is simultaneous a key-region to NATO security interests as well as one of its great challenges. From the AfPak to the Maghreb, from Iran to Palestine, there are too many issues for the Alliance to stand aside. This article defends a strengthening of NATO’s strategic focus on the Greater Middle East, but points out some shortcomings in the approach of the report Albright. The inevitability of this strategic region for Euro-Atlantic area needs to be addressed by the uncertainty of Turkish foreign policy, not only as a relevant NATO member, but also as a preeminent and determinant regional power.

Keywords: NATO, Strategic Concept Review, Report Albright, Middle East, Turkey

 

No passado mês de Março, o general David Petraeus confrontou o Comité das Forças Armadas do Senado com uma premissa reveladora da teia de ameaças que rodeia as tropas norte-americanas e da NATO no Afeganistão. Dizia Petraeus que a falta de progressos no processo de paz do Médio Oriente criava um clima de hostilidade permanente aos Estados Unidos, fomentava o antiamericanismo devido à percepção de favoritismo em relação a Israel, dificultava as parcerias regionais indispensáveis aos Estados Unidos e alimentava a Al-Qaida, o Hamas e o Hezzbolah1. Um mês depois, o Presidente Obama, ao discursar sobre proliferação nuclear, aproveitaria o raciocínio de Petraeus, para assumir a existência de uma ligação directa entre o conflito israelo-árabe e a radicalização das sociedades iraquiana e afegã, com consequentes danos para as Forças Armadas americanas nesses teatros2.

Por outras palavras, ambos aceitam implicitamente que a abordagem proposta pela Administração Bush, com inspiração em Eisenhower, da existência de um Grande Médio Oriente, acaba por ter a sua razão de ser: ameaças transnacionais, laços culturais fortes, fomento do radicalismo contra muçulmanos moderados, financiamentos ilícitos com base na fragilidade do controlo dos mares, estreitos e fronteiras terrestres, proliferação nuclear descontrolada. Esta região vai da costa ocidental africana, sobretudo a partir de Marrocos, até ao Paquistão, passando pelo Médio Oriente em sentido geograficamente restrito e tal como habitualmente o olhamos. Ou seja, o maior desafio da NATO, o Afeganistão, tem o seu sucesso ligado directa e indirectamente à segurança de todo o Grande Médio Oriente, o que confere à Aliança Atlântica uma dor de cabeça acrescida ao tradicional âmbito geopolítico do espaço euroatlântico. A alteração deste âmbito, em bom rigor, deixou de existir a 11 de Setembro de 2001.

 

ÀS PORTAS DO GRANDE BAZAR

As alterações estratégicas imprimidas na NATO nas últimas duas décadas deram-lhe um mote de actuação preciso: «out of area or out of business». Aberta a caixa de Pandora nos Balcãs e em defesa das minorias muçulmanas, a Aliança evoluiu para um teatro de operações mais complexo, longínquo e de prognóstico mais duvidoso. Basta recordar que no Conceito Estratégico de 1999 não aparecem uma única vez referidas as palavras «Médio Oriente», «Paquistão», «Irão», ou «Afeganistão», para termos uma noção do tesouro histórico que esse documento hoje em dia representa3.

A ligação da NATO ao Grande Médio Oriente estava, com a missão no Afeganistão, irremediavelmente marcada pelo compromisso duradouro. Deixou de ser um problema alheio para ser um problema a resolver pela Aliança. Os factos dos últimos oito anos não deixam grandes margens para dúvidas: o terrorismo passou a operar em toda uma região alargada, do Magrebe ao golfo da Guiné, do Líbano ao Iémen, do Paquistão ao Uganda, da Somália ao golfo de Adem, da Turquia a Israel. Ora, é possível dizer que sair derrotada do Afeganistão confere à NATO uma posição de fragilidade acrescida perante o fomento do terrorismo, embora o oposto não seja necessariamente uma realidade: nada nos diz que, para além da sua credibilidade internacional, uma vitória no Afeganistão ou um compromisso com a formação das Forças Armadas no Iraque, possam diminuir ou anular a progressão geográfica das redes terroristas e de crime organizado a elas associadas. Mas de um ponto podemos estar próximos: nenhuma destas realidades tem sido indiferente à NATO, independentemente do que vier a ser aprovado em Lisboa no novo Conceito Estratégico.

Desde 2001, que os membros da NATO estão envolvidos política, económica e militarmente no Afeganistão. Além disso, 16 estados não-membros da NATO têm-se empenhado nessa frente, entre eles a Jordânia. Em Junho de 2004, os aliados acordaram num pro-grama de treino e formação de tropas e polícias iraquianos, inclusive montando uma estrutura permanente na zona de Bagdade que pudesse servir esta missão de auxílio aos quadros militares superiores e ao processo político, dotando as chefias militares de compromissos com as autoridades civis eleitas. Ou seja, logo após a crise transatlântica mais grave desde a fundação da NATO, os aliados mostraram vontade política e recursos para recompor um país devastado pela guerra e central no quadro geopolítico do Grande Médio Oriente.

Ainda em 2004, a NATO lançou a Istanbul Cooperation Initiative, precisamente para desenvolver laços políticos e militares com membros do Conselho de Cooperação do Golfo (Bahrain, Kuwait, Omã, Qatar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos). Mais de seiscentas actividades multilaterais foram entretanto postas em prática, desde as que se ocupam de contraterrorismo, educação militar, segurança energética ou cooperação marítima.

Em 2005, e no quadro da multiplicidade de ameaças que compõem a visão estratégica da NATO deste século, foi enviado para o Paquistão um contingente da sua força de reacção rápida após o terramoto que vitimou mais de 80 mil paquistaneses e desalojou perto de três milhões. A NATO expandiu, ainda neste período, uma outra iniciativa lançada em 1994, o Diálogo Mediterrânico, facilitando canais de diálogo com os países do Grande Médio Oriente, como a Argélia, o Egipto, Israel, Jordânia, Mauritânia, Marrocos e Tunísia. A partir de 2004, foi alargado o âmbito da parceria para operações conjuntas de treino, educação, acesso a financiamentos, periodicidade nas reuniões ministeriais ou troca de informações no combate ao terrorismo.

Por fim, a NATO liderou uma missão internacional de combate à pirataria no Corno de África, desde 2008, de forma a proteger a circulação marítima e assegurar os fluxos energéticos que passam sobretudo pelo golfo de Adem. A Operation Ocean Shield tem um calendário de actuação previsto até Dezembro de 2012.

 

O Relatório Albright

A proposta de Conceito Estratégico da NATO elaborada pelo grupo de peritos liderado pela antiga secretária de Estado norte-americana, Madeleine Albright, olha para o Médio Oriente sob três grandes perspectivas, todas elas afectando directamente a segurança da Aliança: o extremismo aliado ao terrorismo, as tensões israelo-palestinianas e a falta de cooperação com a comunidade internacional por parte do Irão4. O relatório discorre mesmo sobre este último ponto, como passível de ser incluído na próxima década debaixo do chapéu do artigo 5.º, no que toca à dimensão nuclear do regime ameaçadora da segurança transatlântica. Ou seja, de acordo com esta visão, a NATO pode vir a ser forçada a usar a força contra o Irão, caso este venha a adquirir armamento nuclear. A dúvida que se põe é se este ponto se esvaziará ou não durante a Cimeira de Lisboa, uma vez que a moldura estratégica em debate nos últimos meses parece inclinar-se para uma restrição das acções da Aliança face ao adoptado na última década. No Relatório Albright, o Grande Médio Oriente merece atenção apenas na medida em que é reconhecido o trabalho feito no quadro das parcerias estratégicas com o Mediterrâneo, o Magrebe e o golfo Pérsico5.

Dito de outra forma, a dimensão política da NATO é sublinhada como tendo dado frutos na relação com a região do Grande Médio Oriente e, por isso mesmo, não deve ser abandonada, mas sim fortalecida – ao nível educativo, na cooperação técnico-militar, nas reuniões periódicas que promovem o conhecimento entre elites políticas e militares. A grande crítica que se pode fazer ao relatório é a formulação das condutas em que a NATO se deve envolver na região, uma vez que nos parece difícil que apenas por, ela própria, mesmo que após decisão consensual, possa encontrar terreno amigável nos contextos que considera ameaçadores, sem com isso despertar ainda mais hostilidade do que a demonstrada no quadro pós-Afeganistão e Iraque. O relatório, minimalista se adoptarmos a crítica anterior, acaba por ser prudente na abordagem a um assunto em aberto (Irão), mas provavelmente ambicioso num outro onde demonstra fortes indícios de vontade de monitorização (Israel-Palestina). Quanto a este ponto vale a pena debruçarmo-nos um pouco.

 

ENTRE ISRAEL E A PALESTINA?

O Relatório Albright procura incutir na NATO um papel de acompanhamento da mediação entre Israel e a Palestina, no pressuposto de que será negociado entre as partes um justo e duradouro acordo de paz. A crença é louvável e só nesse caso entraria a NATO em cena, assistindo à implementação desse acordo segundo uma vontade expressa de ambos os signatários e com autorização do Conselho de Segurança da ONU. Ou seja, o texto acaba por dar à NATO um protagonismo no terreno apenas e só após o estabelecimento de um quadro político até agora inatingível. A ideia não é inovadora, já Bill Clinton, em Camp David, tinha sugerido a presença de uma força internacional6 – embora sem a nomear –, o conselheiro de segurança nacional do Presidente Obama, James Jones, veio entretanto partilhar com os seus antecessores Scowcroft e Brzezinski esse desígnio para as forças da NATO7, e mais recentemente ainda o então secretário-geral da NATO, Jaap de Hoop Scheffer, veio reiterar esse papel na Palestina8. A pergunta que se coloca sobre esta matéria é: existem condições para tal ou esta narrativa serve apenas para tentar ilustrar uma suposta capacidade da NATO de carácter global e de fortalecimento da paz?

Vamos por partes. Partindo do pressuposto que um acordo de paz é alcançado na década a que se refere o Relatório Albright (2010-2020), a NATO viverá em paralelo situações de retirada e/ou acompanhamento no terreno dos teatros de operações do Afeganistão e Iraque, para só falar dos que estão directamente relacionados com o tema. Para se envolver de forma positiva após um acordo de paz, precisará de um cenário sem recuos na vontade entre as partes, uma retirada de Israel dos territórios palestinianos, a anulação dos movimentos do Hamas, a aceitação por parte das populações e a negação da violência por grupos que possam ficar à margem dos acordos. Este ambiente seria o único que poderia fortalecer a NATO no papel de «fazedora da paz» e não de uma força tendenciosa que se quer impor na região por esta porta.

Como este cenário é altamente improvável nesta década que se inicia, a eventual adopção no Conceito Estratégico, após a proposta do Relatório Albright, facilmente cairia em 2020 num rotundo fracasso para a Aliança. Do que ela não precisa nesta fase é de passos maiores que a perna e de voluntarismos individuais que neguem a existência de outros parceiros para a concretização de alguns objectivos. Por exemplo, nesta matéria, faria sentido assumir o envolvimento de organizações de estados como a Liga Árabe ou o Conselho para a Cooperação do Golfo, bem como da própria União Europeia, podendo esta assumir um papel importante na ajuda ao desenvolvimento na Palestina.

 

SEGURANÇA ENERGÉTICA E TURQUIA

O Relatório Albright é particularmente fraco no que toca à segurança energética. Estando a NATO presente no combate à pirataria em zonas tão sensíveis ao comércio energético transatlântico como são o Corno de África e o golfo de Adem, seria de esperar que fosse abordada esta matéria de forma mais profunda. Por um lado, 45 por cento das importações europeias de petróleo têm origem no Médio Oriente, o que releva a importância da estabilidade dos seus quadros políticos internos e da segurança do transporte marítimo. Aqui, é extremamente importante para a NATO reservar às suas marinhas um destaque particular no seu investimento material e ainda na sua investigação científica. Mais: cerca de 25 por cento das exportações de petróleo no mundo passam pelo estreito de Ormuz e cinco por cento por Bab el-Mandeb, um pequeno estreito que liga o mar Vermelho e o golfo de Adem. Além disto, 60 por cento das reservas conhecidas de petróleo e 40 por cento de gás estão no Médio Oriente e o seu peso reflecte-se nas exportações de países como a Arábia Saudita (85 por cento), Irão (83 por cento), Kuwait (94 por cento) ou Líbia (90 por cento). A sustentabilidade destes regimes depende directamente da manutenção de modelos económicos baseados quase em exclusivo na produção e exportação de crude.

Por outro lado, garantir a segurança do trânsito naval no estreito de Ormuz e no golfo de Adem é vital para a região euroatlântica: 95 por cento do comércio feito pela União Europeia e 20 por cento do comércio global passam pelo golfo de Adem, e aproximadamente 15 tanques por dia transitam por Ormuz carregando 17 milhões de barris de crude cada. Isto representa quase 40 por cento dos carregamentos por via marítima de petróleo no mundo, como 90 por cento do petróleo exportado pela região9. Em termos prospectivos, calcula-se que o peso da OPEP na produção mundial de petróleo subirá dos 44 por cento (2007) para os 51 por cento (2030), e que a Arábia Saudita, o maior produtor mundial de crude e com as maiores reservas conhecidas, projectará a sua produção até aos 15 milhões de barris/dia (2030) em contraste com os actuais 10 milhões10.

É perfeitamente admissível que a NATO tenha reservas em abordar a segurança energética como um dos seus eixos de acção estratégica da próxima década, mas não pode ignorar a sua importância para as economias euroatlânticas e modelos de sociedade que quer salvaguardar. Deve ter uma visão integrada onde as várias dimensões do poder podem, também elas, oferecer fontes de insegurança às quais a NATO não se tem confrontado. Por exemplo, quando numa situação de plena crise financeira e económica global, e em que os próprios orçamentos da Defesa dos membros da NATO continuarão a ser afectados, então estamos perante uma directa influência da capacidade de gerar riqueza e de produzir segurança.

E como a geografia continua a merecer protagonismo, é importante perceber a relevância da Turquia, enquanto Estado-chave no trânsito energético e um enorme eixo estratégico para o abastecimento dos europeus. Mas não é apenas em matérias energéticas que a Turquia se irá afirmar na próxima década como um player da maior relevância para a NATO. A partir da revisão que vem fazendo da sua política externa, sobretudo desde que Ahmet Davutoglu passou a chefiar a diplomacia, Ancara tem diversificado os seus targets e, por via disso, assumido outro protagonismo no Médio Oriente. A política externa turca vai ser um dos desafios com que a NATO terá que lidar no futuro: a grande questão é saber se será um pivô complicativo ou um honest broker para a Aliança.

O desenvolvimento das suas relações com Teerão, Damasco, Riad, Cairo ou Doha – em 2008, 25 por cento do comércio externo saudita e 65 por cento do realizado pelos Emirados Árabes Unidos foram feitos com a Turquia –11, o esfriamento da ligação a Telavive e o olhar para os investimentos militares provenientes de Moscovo, tornam Ancara um dos actores principais em toda a região. Em três grandes domínios. Primeiro, a recente crise com Israel mostrou uma diplomacia turca com vontade em ocupar um lugar de pivô entre palestinianos e israelitas e, também, entre Damasco e Telavive. O próprio Davutoglu assumiu-o recentemente numa conferência em Londres12 . É, em todo o caso, um membro da NATO que o pretende fazer. Das duas, uma: ou a Aliança Atlântica se remete ao acompanhamento das acções turcas à distância, ou não lidará de todo com o assunto enquanto aliança, acabando por ver prevalecer as diplomacias individuais dos seus membros.

Em segundo lugar, na forma como continuará a lidar com a minoria curda no seu território e no Norte do Iraque. As intenções independentistas curdas levadas a cabo pelo PKK e as retaliações constantes de parte a parte, têm feito subir o tom de agressividade e preocupação das autoridades turcas. Este é, aliás, um ponto que as aproxima dos sírios, também eles com uma minoria curda no seu território e cuja perspectiva autonomista pode ser fomentada por um Curdistão iraquiano suficientemente rico e poderoso para servir de modelo na região13 . Do comportamento da NATO em relação à segurança da Turquia também dependerá o nível de antiocidentalismo da sua população, o qual, no que toca por exemplo aos Estados Unidos, tem estado num nível baixo nos últimos anos14 .

Por fim, na tentativa de inversão das intenções nucleares do Irão. A recente iniciativa promovida pela Turquia e pelo Brasil com vista a uma solução para o problema do nuclear iraniano, à margem do Conselho de Segurança – previamente encorajada pela Administração Obama –, mostrou que Ancara procura um papel de mediação, fugindo do regime internacional de sanções que pesam sobre Teerão por afectarem directamente a economia turca, como reconheceu recentemente o ministro Davutoglu15 . Do seu ponto de vista, a assinatura do acordo de Teerão, no passado 17 de Maio, é uma vitória da diplomacia turca: em trinta anos, o Irão não havia ido tão longe na confiança com parceiros internacionais sobre as suas intenções nucleares. Para Davutoglu, sendo o objectivo tornar o Médio Oriente vazio de armas nucleares, tal implicará o desmantelamento da própria capacidade de Israel. Ora, isto constitui um desafio para a NATO, na medida em que a conquista de um espaço de acção turco demasiado grande nas relações com os países da região – em consonância com os anseios da sua população, que nesta matéria duplicaram em percentagem no último ano – 16, contrasta com a diminuição do peso das principais capitais europeias. As duas questões nesta altura centram-se em saber se, por um lado, as tensões que possam existir no interior da NATO afectarão a sua capacidade de decisão e, por outro, se a Turquia entrou numa fase de menor compromisso com a NATO em detrimento de uma maior autonomia na região.

 

HÁ UMA ESTRATÉGIA PARA O IRÃO?

Vale a pena recuarmos a 1999 para lermos o que dizia o Conceito Estratégico da NATO sobre compromissos assumidos no que toca à proliferação nuclear: «os objectivos de defesa e controlo de armas, desarmamento e não-proliferação permanecem em harmonia»17, ou seja, a segurança colectiva da Aliança deve fazer tudo para que estes objectivos se concretizem. O que vimos desde então foi a manutenção do descontrolo no número de estados com capacidade nuclear ou, no mínimo, ambições declaradamente assumidas para tal fim, o aumento do volume de negócios global de armamento convencional – a Ásia e Oceânia, só entre 2005 e 2009, representaram 41 por cento do total de importações, e o Médio Oriente, em igual período, representou 17 por cento, embora com um aumento de 22 por cento em relação ao período entre 2000 e 2004 –18, e ainda o investimento nos orçamentos de Defesa de potências emergentes, como a China, a Índia ou o Brasil19 . No quadro dos objectivos estabelecidos em 1999, a NATO falhou em todos eles. Mas o caso mais premente é o Irão.

O Irão não é apenas uma ameaça à segurança do Médio Oriente se vier a possuir armas nucleares: parte do território europeu ficará ao seu alcance e isto representará um descrédito profundo do regime de não proliferação nuclear e das próprias instituições que o pretendem regular. Ainda de acordo com declarações feitas em Maio passado, pelo até há pouco tempo responsável militar máximo da NATO no Afeganistão, general Stanley McChrystal, o Irão «providencia armamento e treino aos Taleban», inclusive no próprio território iraniano20 . Ou seja, é admitido pela cadeia de comando militar da Aliança que o Irão é um player desestabilizador no Afeganistão, além de se considerar, num plano mais alargado e que envolve a NATO e a União Europeia, um foco de instabilidade regional quando possuir armas nucleares.

Num recente relatório da Assembleia Parlamentar da NATO, de 2008, embora sem alcance vinculativo para a Aliança, transmite uma sensibilidade entre os seus membros que incita a organização a colocar o problema nuclear iraniano no topo da sua agenda21 . Podemos considerar essa mesma ausência de vinculação numa posição destas como dando uma margem maior para que um assunto delicado possa ser tratado nestes termos. Mas o facto é que todo o relatório é consistente na argumentação que liga a pouca colaboração do Irão com as instâncias internacionais, o seu patrocínio a grupos como o Hamas e o Hezzbolah que podem aceder ao arsenal nuclear e crescerem como fontes de instabilidade no Médio Oriente, ou a ameaça da posse de arsenal nuclear para outros players da região, nomeadamente a Arábia Saudita, Israel, a Turquia e os países do Golfo. Dito de outro modo, este impulso dado do interior das instituições da Aliança Atlântica e de outras plataformas que pensam e estudam as ameaças à segurança transatlântica22 acabaram por ter algum eco no Relatório Albright. Ao ser admitida a hipótese de o Irão poder vir a ser uma «importante ameaça ao Artigo 5.º da Aliança esta década»23 , está-se a abrir a porta para que seja a própria NATO a usar a força contra Teerão. Uma das dúvidas coloca-se nos meios com que se retaliará o regime dos ayatolahs: tendo em conta a diminuição de arsenais nucleares nos estados--membros da NATO, como alertou Gregory Schulte, embaixador dos Estados Unidos na Agência Internacional de Energia Atómica entre 2005 e 2009, esta pode vir a limitar o grau de acção pretendido24 . Talvez por isso, Washington tenha iniciado uma aproximação estratégica a alguns países do Golfo com vista à instalação de mais um escudo antimíssil na zona – o modelo AN/TPY-2, já existe em Israel, assim como no Japão para a sua defesa – aproveitando o sentimento de ameaça que o Irão representa para muitos dos seus vizinhos, estando o Qatar, o Kuwait e o Barém na primeira linha para o receber25 .

Por esta leitura, o Irão passa ao topo da agenda ainda antes de ser uma ameaça concreta ao espaço territorial da NATO, o que levanta novamente a questão de critérios de actuação futuros que, após a missão no Afeganistão, estiquem demasiado os orçamentos dos membros da Aliança, dos seus meios militares e dos custos políticos a suportar. Todavia, a NATO pode, através desta matriz em que volta a identificar claramente uma ameaça concreta, renovar o seu core business de actuação que, mesmo sendo out of area novamente, põe de lado o out of business26.

 

CONCLUSÕES

As quase seis dezenas de páginas do Relatório Albright deverão sofrer um corte significativo para se poder tornar no próximo Conceito Estratégico da NATO. Tal implicará um critério definido sobre o que deve ser a NATO nesta década que se inicia, que estratégia deve moldar a sua acção, que ameaças será chamada a combater e como pode continuar a ser uma aliança produtora de segurança, numa era marcada por uma crise económica global e por dimensões inerentes ao conceito de segurança que ultrapassam aquilo a que tradicionalmente a NATO se habituou a lidar.

Neste artigo procurou analisar-se a postura da NATO face ao Grande Médio Oriente, assumindo que a região por ele definida tem características que suscitam uma avaliação integrada de todo esse espaço. Identificámos a forma como a NATO se tem relacionado com a região, que modelos de cooperação tem promovido e de que modo o Relatório Albright avaliou essa estratégia. Sendo ele um documento extenso, olha porém de forma deficiente para uma região que concentra em si mesma ameaças presentes e potenciais para a segurança transatlântica.

Embora o relatório sublinhe a dimensão política como a maior conquista das relações entre a NATO, o Mediterrâneo e os países do golfo Pérsico, identifica com alguma ligeireza o seu papel no processo de paz do Médio Oriente, na gestão do dossiê do nuclear iraniano, da segurança energética e da renovada política externa da Turquia. Eventualmente não teriam estes tópicos de ser abordados num relatório como este, mas este argumento não deve servir para anular uma abordagem cuidada sobre a forma como todos estes domínios se podem vir a tornar nos maiores desafios da NATO na próxima década.

O quadro transatlântico pós-intervenção no Afeganistão ficará profundamente marcado pelos efeitos desta missão. As sensibilidades no interior da Aliança e que apontam para uma maior restrição geográfica nas suas futuras missões, prevalecerão provavelmente no texto final da Cimeira de Lisboa. Contudo, e independentemente disso, a NATO terá vantagens em acompanhar de perto a região mais próxima do continente europeu e a que agrupa o maior número de ameaças à segurança transatlântica. Pode, no futuro, encontrar aí um novo desígnio estratégico. Para tal seria indispensável que os meios correspondessem às ambições e que estas fossem descritas com clareza e precisão. A indefinição, essa, seria o princípio do erro.

 

NOTAS

1 Cf. PETRAEUS, General David H. – «Statement Before the Senate Armed Services Committee on the Posture of U.S Central Command», Senate Armed Services Committee, Washington D.C, 16 de Março de 2010, p. 56. Disponível em: http://armed-ervices.senate.gov/statemnt/2010/03%20March/Petraeus%2003-16-10.pdf

2 Cf. OBAMA, Barack – «Press Conference by the President at the Nuclear Security Summit», Washington Convention Center, Washington D.C, 13 de Abril de 2010. Disponível em: http://www.whitehouse.gov/the-press-office/press-conference-president-nuclear-security-summit

3 Cf. YOST, David S. – «NATO’s Evolving Purposes and the next Strategic Concept», In International Affairs, Vol. 86, n.º.2, Março de 2010, p. 513        [ Links ]

4 «NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement – Analysis and Recommendations of the Group of Experts on a New Strategic Concept for NATO», 17 de Maio de 2010, p. 16.

5 «NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement – Analysis and Recommendations of the Group of Experts on a New Strategic Concept for NATO», 17 de Maio de 2010, p. 28.

6 In GAUB, Florence – «NATO: Peacekeeping in the Holy Land? A Feasibility Study», Research Division, NATO Defense College, Rome, n.º 57, Março 2010, p. 1.

7 Cf. PERAINO, Kevin – «NATO in the West Bank», In Newsweek, 6 de Dezembro de 2008.

8 SCHEFFER, Jaap de Hoop – «Speech at an event jointly organized by the Institute for National Security Studies and the Atlantic Forum of Israel», 11 de Janeiro de 2009. Disponível em http://www.nato.int/cps/en/SID-757985A2-B5428676/natolive/opinions_49673.htm?selectedLocale=en .

9 Cf., por exemplo, MONAGHAN, Andrew – «NATO Targets Energy security», In Per Concordiam, Vol. 1, n.º 1, Março 2010, pp. 18-23; GALLIS, Paul – «NATO and Energy Security», CRS Report for Congress, Washington, Agosto de 2007.

10 Cf. Statistical Review of World Energy, British Petroleum, 2008.

11 Cf. SCHUMACHER, Tobias – «Transatlantic Cooperation in the Middle East and North Africa and the Growing Role of Gulf States», In Mediterranean Paper Series, The German Marshall Fund of the United States, Julho de 2010, p. 20. Disponível em: http://www.gmfus.org/galleries/ct_publication_attachments/Schumacherimpaginatofinalcomplete.pdf.

12 DAVUTOGLU, Ahmet – «The Role of Transatlantic Relations in the New World Order”, Chatham House Conference, 8 de Julho de 2010. Disponível em: http://www.chathamhouse.org.uk/files/16966_080710davutoglu.pdf.

13 Cf., por exemplo, LARRABEE, F. Stephen – «Turkey’s New Middle East Activism», In Atlantic Council, 14 de Julho de 2009. Disponível em http://www.acus.org/publication/us-turkey-relations-require-new-focus/larrabee; COOK, Steven A. – «Turkey’s Problematic Middle East Role», Council on Foreign Relations, 17 de Abril de 2008. Disponível em: http://www.cfr.org/publication/16057/turkeys_problematic_middle_east_role.html.

14 A Turquia é o país entre os 12 europeus e os Estados Unidos, alvos de sondagens anuais, aquele que menos aceitação demonstra às vantagens e ao papel liderante dos Estados Unidos nos vários domínios internacionais. Essa percepção negativa tem sido crescente. Sobre esta sondagem ver The German Marshall Fund, Transatlantic Trends 2009. Disponível em: http://www.gmfus.org/trends/index.html

15 DAVUTOGLU, Ahmet – «The Role of Transatlantic Relations in the New World Order”, Chatham House Conference, 8 de Julho de 2010. Disponível em: http://www.chathamhouse.org.uk/files/16966_080710davutoglu.pdf.

16 LESSER, Ian – «Turkey’s New Foreign Policy Direction and Implications for U.S Policy». The German Marshall Fund of the United States, 28 de Julho de 2010. Disponível em: http://www.gmfus.org/galleries/ct_publication_attachments/Lesser_testimony_Jul10_draft_2.pdf.

17 North Atlantic Council – Strategic Concept, Chapter VI, 24 de Abril de 1999.

18 Cf. HOLTOM, Paul; BROMLEY, Mark; WEZEMAN, Pieter D. e WEZEMAN, Simon T. – «Trends in International Arms Tranfers 2009», SIPRI Fact Sheet, Estocolmo, Março de 2010, pp. 4-5. Disponível em: http://books.sipri.org/files/FS/SIPRIFS1003.pdf.

19 A China, por exemplo, aumentou os investimentos em defesa a uma média de 10 por cento ao ano entre 1989-2007 e 17 por cento entre 2007-2008; cf. YOST, David S. – «NATO’s Evolving Purposes and the next Strategic Concept». In International Affairs, Volume 86, n.º 2, Março de 2010 p. 514.

20 Citado em «NATO General in Afghanistan: Taliban train in Iran», ABC News, 30 de Maio de 2010. Disponível em: http://abcnews.go.com/international/wirestory?id=1078223.

21 Cf. ROSS, Mike – «Iran: Making a Case for NATO’s Engagement», NATO Parliamentary Assembly, Committee Report 166PCTR 08 E bis, Annual Session, 2008

22 Cf. SCHULTE, Gregory – «Iran’s Nuclear Threat to NATO», In Atlantic Council, 8 de Fevereiro de 2010. Disponível em: www.acus.org/new_atlanticist/iran-nuclear-threat-nato

23 «NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement – Analysis and Recommendations of the Group of Experts on a New Strategic Concept for NATO», 17 de Maio de 2010, p. 16

24SCHULTE, Gregory – «Iran’s Nuclear Threat to NATO».

25 Cf. «US raises stakes on Iran by sending in ships and missiles», In The Guardian, 31 de Janeiro de 2010. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/world/2010/jan/31/iran-nuclear-us-missiles; «US plans for Middle East missile shield take shape», In Reuters, 27 de Maio de 2010. Disponível em: http://www.reuters.com/assets/print?aid=USTRE64Q6U120100527

26 Cf., por exemplo, a sugestão de CHIVVIS, Christopher S. – «Recasting NATO’s Strategic Concept: Possible Directions for the United States», Occasional Paper, RAND Project Air Force, 2009; SCHNEIDER, Jiri e ZANTOVSKY, Michael – «NATO and the Greater Middle East: A Mission to Renew NATO?», Policy Paper, n.º 1, Program of Atlantic Security Studies, Prague Security Studies Institute, 26 de Agosto de 2006; HAMILTON, Daniel (coord.) – «Alliance Reborn: An Atlantic Compact for the 21st Century», 2009, p. 41, disponível em: http://www.acus.org/files/publication_pdfs/65/NATO-AllianceReborn.pdf