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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.27 Lisboa set. 2010

 

A Cimeira de Lisboa

 

Luís Amado

Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal

 

A Cimeira de Lisboa constituirá um momento importante da história da Aliança. Não só porque ficará associado à aprovação de um novo Conceito Estratégico da organização, mas também porque se esperam novas e decisivas orientações em relação à situação no Afeganistão, ao futuro das relações com a Rússia, à definição do novo sistema antimíssil e ao processo de reformas da Aliança.

O novo Conceito Estratégico da Aliança substitui o conceito aprovado na Cimeira de Washington em 1999, quando a nato celebrava os seus cinquenta anos, num ambiente de relativa euforia depois da vitória na Guerra Fria. Muita coisa ocorreu no mundo desde então. Uma série de acontecimentos mudou significativamente o contexto geoestratégico global na última década: os ataques terroristas em Nova York, em Londres e Madrid; as intervenções no Afeganistão e no Iraque; a controvérsia sobre o programa nuclear iraniano; o conflito na Geórgia; a crise financeira e económica mundial, a crise da dívida soberana da Grécia. Todos estes acontecimentos tiveram, e têm, particular impacto no mundo ocidental, pondo directamente em causa a hegemonia consagrada há apenas duas décadas pelo colapso do império soviético.

A crise mais recente que eclodiu no coração do sistema financeiro ocidental veio, por outro lado, revelar as mudanças estruturais ocorridas na economia mundial, evidenciar profundos desequilíbrios macroeconómicos com inegáveis consequências geopolíticas, deixando clara uma nova relação de forças no sistema internacional com implicações directas nos sistemas de segurança e defesa mundiais e, naturalmente, no papel da NATO.

É neste contexto que a Aliança Atlântica terá, pois, de definir o seu relacionamento com o mundo que a rodeia, tendo igualmente em consideração o reposicionamento estratégico dos Estados Unidos sob o comando da Administração Obama, o reset do relacionamento com a Rússia e as suas implicações políticas, a redefinição da Política Comum de Segurança e Defesa europeia à luz do Tratado de Lisboa e as mudanças perceptíveis nas regiões «emergentes» e nas respectivas estruturas regionais de segurança e defesa.

O novo Conceito Estratégico deverá absorver esta nova realidade com que a Aliança se confronta. Pelo que temos dado particular ênfase, no debate que se vem desenvolvendo, a quatro questões: o papel da nato num mundo global, o lugar da União Europeia na Aliança, o modelo de relações com a Rússia, a problemática da não-proliferação. Sobre a primeira questão defendemos para a Aliança um papel mais de global security partner do que de global security actor, papel que se vinha insinuando no contexto do anterior conceito.

Em segundo lugar, é importante que, tendo em conta a aprovação do Tratado de Lisboa e a criação da Política Comum de Segurança e Defesa, se reforce o pilar europeu da Aliança e se valorize mais o multilateralismo europeu no contexto estratégico da Aliança.

Em terceiro lugar, defendemos que o enquadramento das relações com a Rússia no novo Conceito deve consolidar um modelo de cooperação NATO-Rússia e evitar a confrontação estratégica.

Por último, é importante que seja definido com exactidão o posicionamento da NATO face ao novo regime de não-proliferação, considerando esta questão a principal ameaça à paz e segurança mundiais com que nos confrontamos.

A par da aprovação do novo Conceito Estratégico pelos 28 membros da Aliança, a Cimeira de Lisboa constituirá também ocasião para a realização de uma reunião dos estados contribuintes da ISAF num momento crucial da definição do futuro do Afeganistão. Em Lisboa, deverão ser decididos passos significativos no quadro do processo de transição para as autoridades afegãs, na sequência designadamente das deliberações das conferências de Londres e Cabul. Tratar-se-á de decisões de um enorme impacto e responsabilidade que deverão ser tomadas com base numa avaliação aprofundada da situação no terreno, no cumprimento das condições apropriadas e com os recursos adequados. Portugal continuará, neste contexto, a assumir plenamente as suas responsabilidades, assegurando uma contribuição na medida das nossas possibilidades e das necessidades da operação no terreno. Insere-se nessa estratégia, aliás, a recente decisão de se proceder a uma reconstituição das forças destacadas pelo nosso país, correspondendo à prioridade dada à formação das forças militares e policiais afegãs, no quadro da NTM-A (NATO Training Mission Afghanistan), essencial ao êxito da transição para a responsabilidade afegã pela segurança do país.

A reforma da Aliança estará também na ordem do dia da Cimeira de Lisboa. Na sequência de decisões tomadas em anteriores reuniões ministeriais, tem-se vindo a discutir as possibilidades de se proceder a reformas no âmbito da estrutura de Comandos e das Agências da NATO. Em Lisboa, serão apresentadas sugestões num e noutro âmbito. Portugal tem participado, de modo construtivo, no processo de reflexão em curso, consciente de que as alterações de circunstâncias no quadro estratégico mundial e o actual contexto económico e financeiro internacional impõem efectivamente uma adaptação e racionalização das estruturas existentes. No entanto, quaisquer decisões nesta matéria terão de ter devidamente em conta o enquadramento definido para o futuro da Aliança a delinear no novo Conceito Estratégico.

Portugal, no processo ainda em curso de preparação da cimeira, continuará a defender o interesse de se prosseguir o trabalho de aproximação entre a Aliança e a Rússia. A estratégia que defendemos de definição de um novo papel da NATO no quadro de reestruturação da política de segurança e defesa a nível global, passa necessariamente pela consolidação de um novo tipo de relacionamento com a Rússia, assente no diálogo e na cooperação. Não escamoteando a persistência de factores de divisão, temos vindo a insistir na importância de nos concentrarmos nos interesses que nos unem e que são cada vez mais significativos. Sabemos que essa é também a leitura feita pelo secretário-geral da NATO que conta com todo o nosso apoio para promover a realização de uma reunião do Conselho NATO-Rússia ao mais alto nível.

A agenda da Cimeira de Lisboa reúne todas as condições para criar uma marca indelével na história da Aliança Atlântica. O Governo português vai empenhar-se para que, na boa tradição nacional, e dentro das contingências que a actual situação impõe, ser um anfitrião à altura do acontecimento.