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Relações Internacionais (R:I)

versión impresa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.26 Lisboa jun. 2010

 

A União Europeia na filosofia da história

 

André Santos Campos

Investigador do Instituto de Filosofia da Linguagem da FCSH-UNL, onde desenvolve um pós-doutoramento, e professor auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa. Doutorado em Filosofia pela Universidade de Lisboa, na especialidade de Filosofia da Política e do Direito, com trabalhos publicados e em preparação no âmbito da filosofia política moderna e da filosofia do direito contemporânea.

 

MCCORMICK, JOHN. P. WEBER

Habermas, and Transformations of the European State. Constitutional, Social and Supranational Democracy.

Cambridge, Cambridge University Press, 2007, 318 páginas

 

 

APELOS À ORIGINALIDADE CONTEMPORÂNEA DA EUROPA

Da miríade de livros publicados todos os anos sobre a presente condição histórico-política da Europa e sobre a União Europeia (UE), não parecem ser muitos os merecedores de atenção por conterem análises de genuína originalidade. É porventura com o intuito de evitar diluir-se nesse conjunto pouco diferenciado de textos que este último livro de John. P. McCormick almeja recategorizar a actual natureza político-administrativa da UE fundamentando-a numa filosofia da história desenvolvida a partir de leituras críticas ao pensamento de Max Weber e de Jürgen Habermas. McCormick tem claramente uma tese a defender: a de que há lugar para novidades na progressão histórica das realidades políticas institucionais que não são enquadráveis em categorias históricas anteriores, sendo a actual UE uma dessas realidades políticas sem paralelo, de natureza supranacional. Porquê então recuperar o pensamento de Weber e de Habermas para uma tal empresa? Precisamente, para inscrever a diferença desta nova realidade perante o que McCormick considera serem os dois modelos hegemónicos de organização política dos dois séculos anteriores, nomeadamente o Estado de direito (Rechtstaat) liberal do século XIX, teorizado por Weber, e o Estado-Providência (Sozialstaat) social do século XX, teorizado por Habermas. Neste sentido, a novidade da UE assinala um número de transformações fundamentais ao nível das esferas jurídico-políticas e socioeconómicas na dinâmica de exercício do poder, pelo que no contexto europeu um novo modelo hegemónico de organização política surge sem precedentes e cheio de mutáveis potencialidades para o futuro – McCormick designa-o de Sektoralstaat.

 

A ENCRUZILHADA DE WEBER ENTRE O RECHTSTAAT E O SOZIALSTAAT

Em rigor, porém, apenas um dos capítulos do livro não constitui uma abordagem crítica e aprofundada ao que Weber e Habermas sustentaram acerca do Rechtstaat e do Sozialstaat. A divergência de fundo opondo McCormick a Weber e a Habermas está subjacente à sua necessidade de recategorizar a actual experiência europeia institucional como uma Sektoralstaat, e consiste sobretudo na validação atribuída a diferentes metodologias a empregar na história das organizações políticas europeias. Segundo McCormick, a incapacidade de aceitação por Weber de uma extensão do Estado ao âmbito da providência social é resultado da circunstância de aplicar uma categoria política passada para tentar compreender o que não é senão uma nova realidade política – nesta medida, Weber é acusado de incompreender o Sozialstaat por empregar uma metodologia histórica que impõe o modelo do Rechtstaat como paradigma político universal e intemporal. Habermas, porém, consegue superar, para McCormick, estes constrangimentos metodológicos estabelecidos por Weber no estudo da realidade estadual, e por conseguinte consegue integrar a categoria do Sozialstaat no âmbito da acção comunicativa das sociedades modernas. Não obstante, quando Habermas intenta penetrar na análise da dinâmica institucional e política da actual configuração europeia, McCormick aponta a aparência de Habermas cometer exactamente o mesmo erro de metodologia histórica já antes praticado por Weber: emprega o modelo do Sozialstaat como paradigma universal e intemporal à experiência da UE, e ao fazê-lo vicia de antemão quaisquer afirmações conclusivas às quais possa chegar no prosseguimento da sua análise.

No capítulo em que se debruça sobre o conteúdo da Sociology of Law de Weber a partir da leitura crítica de Habermas (cap. II), esta divergência de fundo está patente desde o início. Weber é interpretado no sentido de valorizar o seu presente diante de um futuro projectado como passado, e nessa valorização legitima uma concepção do direito enquanto conjunto de prescrições racionais-formais em detrimento da produção de precedentes jurisprudenciais e de direito privado substancial emergindo das relações económicas entre agentes políticos não institucionais. Nesta medida, a sua concepção do direito reflecte a arquitectura formal do Rechtstaat, a qual não é suficiente para explicitar a dinâmica social emergindo das novas relações jurídicas no Sozialstaat. Se o futuro do direito estadual é assim posto enquanto reprojecção do passado, toda a mudança escapando a esse conceito jurídico do passado (que é afinal um preconceito) designa então uma regressão civilizacional. O desenvolvimento do Estado-Providência seria portanto, para Weber, uma recapitulação das estruturas de poder feudais da Idade Média, pois embora parecesse recuperar o formalismo legal do Rechtstaat, tal aparência surgiria apenas como imagem social escondendo a irracionalidade inerente às novas alterações emergindo no Estado. No entanto, para McCormick, não só o Estado-Nação regido puramente por direito formal racional sempre se revelou insuficiente para cumprir o ideal de garantia dos direitos individuais (p. 288), como também a própria classificação da era do Estado providente enquanto decadência civilizacional decorre de um método lacunar de estudar a história das instituições.

 

A ENCRUZILHADA DE HABERMAS ENTRE O SOZIALSTAAT E O SEKTORALSTAAT

Nos três capítulos seguintes, McCormick denota movimentar-se com maior conforto pelo pensamento de Habermas do que pelo de Weber. Ao contrário do que ocorrera com a sua abordagem a Weber, centrada sobretudo na Sociology of Law, a sua leitura de Habermas desenvolve-se num escopo bem mais vasto da produção habermasiana. Com efeito, uma das críticas primordiais que elabora consiste na confrontação do jovem Habermas com o maduro Habermas. Segundo McCormick, as produções iniciais de Habermas denotam fortes tendências marxistas, numa fase de metodologia histórica sobretudo hegeliana onde seriam encontradas chaves para a compreensão dos processos dialécticos da progressão histórica e instrumentos teóricos para a emergência de críticas estruturais. Em contrapartida, as produções mais tardias de Habermas denotam uma fuga destes modelos dialécticos em direcção a uma perspectiva kantiana (p. 163), na qual se aceita a efectivação de fundamentos transcendentais garantindo as condições de possibilidade da acção comunicativa racional nos âmbitos ético e sociopolítico – tal racionalidade com fundamento justificativo transcendental é assim componente necessário na avaliação de legitimidade de todo e qualquer processo democrático. O principal desafio para Habermas seria a aplicação destes princípios comunicativos à nova realidade estrutural da UE.

Teoricamente, Habermas defende que a UE pode ser construída seguindo o mesmo desenvolvimento histórico pelo qual passaram os diferentes estados europeus, ou seja, uma vez estabelecida a percepção de uma conexão social mínima (de índole nacionalista), o Estado seguir-se-ia a partir de tal fundação. Porém, esta é já, para McCormick, uma maneira inadequada de inteligir a consolidação do Estado, uma vez que negligencia as condições económicas, os meios de produção e os modos de relação comercial que contribuíram para a formação dos estados. Por conseguinte, ao sugerir a concretização da experiência da UE nos mesmos moldes em que entende a formação estadual, Habermas recorre a um mecanismo interpretativo já lacunar de antemão. Mesmo assim, Habermas continua a afirmar que os estados europeus devem imbuir-se cada vez mais na emergente «ordem continental e supranacional» (p. 205) da UE, em especial no âmbito do direito comunitário, o qual se legitima pela mera participação democrática dos agentes comunicativos intervindo na sua produção – tal participação é já tida por constitutiva das estruturas dos estados existentes e das próprias instituições europeias, pelo que Habermas concebe então facilmente a UE mais como um Estado do que como uma amálgama de estados. Este movimento argumentativo de Habermas reflecte afinal o mesmo que Weber também reflectira: o modelo do Sozialstaat é posto como pináculo da modernidade promovido inclusivamente ao nível supranacional (o que contraria os esforços metodológicos do jovem Habermas), e por conseguinte Habermas «sobrevaloriza a continuidade» (p. 202) ao invés de reconhecer a especificidade das alterações qualitativas ocorrendo nas esferas sociopolíticas da UE.

 

O TRIUNFO DO SEKTORALSTAAT NA UE

Se o movimento histórico recente apresenta então especificidades progressivas na experiência europeia (e este será porventura o centro de imputação de divergência maior entre Habermas e McCormick, que este último não chega a desenvolver), deve ser explicado para McCormick segundo uma nova categoria. Essa categoria é afinal a introduzida como Sektoralstaat no contexto da UE (Cap. VI): uma configuração composta por processos de produção política (policymaking) a nível trans e infranacional que operam sob os auspícios da Comissão Europeia e sob a eventualidade de «múltiplas políticas públicas europeias» dentro da própria UE (p. 180); um modelo envolvendo em simultâneo esferas micropolíticas e sectores económicos de larga escala nos quais bem mais do que três actores principais (capital, trabalho e Estado) participam na discussão das políticas públicas, e incluindo subgrupos específicos dos estados-membros na elaboração das esferas macropolíticas sem que chegue a haver uma política comum europeia delineada em todos os sectores da economia (p. 23).

No final, McCormick atinge o momento da recategorização da UE enquanto modelo analisável pelas ciências jurídicas e políticas, o que permite catalogar esta obra como trabalho sobre a UE. Contudo, todo o itinerário seguido para a efectivação desse momento desenvolve-se a partir de divergências a nível da metodologia a empregar na análise histórica de instituições jurídico-políticas: Weber e Habermas são acusados de operar com idealizações preconcebidas do Estado e da soberania que, por serem estanques, não permitem introduzir o novo numa dinâmica histórica tida, por forte influência hegeliana, como progressiva. Daí a divergência primordial entre McCormick e o par Weber-Habermas ser sobretudo metodológica (p. 124). Isto justifica porque, talvez mais do que um livro sobre a UE, esta obra seja afinal um livro sobre filosofia da história aplicada à experiência europeia – o que preocupa McCormick é que os cientistas sociais revejam e refinem as suas noções de tratamento da História (p. 25). O título da obra é longo precisamente porque a sua temática central não é clara: é em simultâneo sobre o pensamento histórico e jurídico de Weber, sobre a filosofia política de Habermas, sobre a UE, e sobre filosofia da história.