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Relações Internacionais (R:I)

versión impresa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.26 Lisboa jun. 2010

 

A traição de Wilson

 

Aurora Almada e Santos

Licenciada em História pela FCSH-UNL, onde frequenta o doutoramento em História Contemporânea, estudando a actividade diplomática dos movimentos de libertação das colónias portuguesas na Organização das Nações Unidas.

  

MANELA, EREZ

The Wilsonian Moment. Self-Determination and the International Origins of Anticolonial Nationalism.

Nova Iorque: Oxford University Press, 2007, 331 páginas

 

 

E quase do domínio do senso comum que a luta pela autodeterminação dos territórios coloniais foi impulsionada de forma significativa pela I Guerra Mundial. Num dos lados da barricada encontravam-se os nacionalistas anticoloniais que foram os protagonistas escolhidos por Erez Manela para o livro no qual analisa as expectativas em relação às possibilidades de autodeterminação surgidas no final da Grande Guerra. Delimitando o âmbito temporal da obra entre Abril de 1917 e Junho de 1919, o autor considerou que essas expectativas estiveram intimamente associadas à difusão da retórica utilizada pelo Presidente norte-americano Woodrow Wilson no período da guerra. Empregando o conceito Wilsonian moment, Manela procurou abarcar os processos resultantes da apropriação pelos nacionalistas anticoloniais dos princípios elaborados por Wilson e as tentativas realizadas no sentido de os implementar. É este Wilsonian moment que estabelece o fio condutor de toda a obra, argumentando-se que os acontecimentos verificados nos territórios objecto de análise – o Egipto, a Índia, a China e a Coreia – foram componentes de um único momento histórico. Por detrás desse conceito encontra-se a ideia de que os movimentos anticoloniais ocorridos após a I Guerra Mundial não foram fenómenos circunscritos aos territórios aos quais se reportaram, mas tiveram uma vertente internacional, favorecida precisamente pela retórica wilsoniana. Essa vertente introduz um terceiro elemento na análise efectuada pelo livro, que articula a difusão dos princípios de Wilson com o impacto que tiveram nos territórios coloniais e a utilização da arena internacional pelos nacionalistas anticoloniais como meio para desafiar os poderes coloniais. A arena internacional retratada é a Conferência de Paz, reunida em Paris após a guerra, cujas expectativas geradas entre aqueles que estavam nas margens da sociedade internacional ocupam parte significativa da obra.

Numa escrita bastante fluida, Manela basicamente descreve a galvanização e o retrocesso das expectativas dos nacionalistas anticoloniais egípcios, indianos, chineses e coreanos em relação à Conferência de Paz. Partindo da análise das esperanças depositadas na figura de Wilson e nas promessas de um mundo mais justo veiculadas pelos princípios por ele defendidos, demonstra-se que o confronto com a realidade foi um duro choque. A apropriação da linguagem wilsoniana por parte dos nacionalistas desses territórios não foi suficiente para que as delegações presentes na Conferência de Paz, cujas atenções estavam concentradas noutras questões, colocassem a hipótese de lhes reconhecer o lugar que consideravam que lhes era devido no seio das nações. Em resultado, disseminou-se pelo mundo colonial um sentimento de traição em relação a Wilson, traduzido nos levantamentos ocorridos na Primavera de 1919.

 

PROMESSAS AMERICANAS

A análise do impacto das ideias de Wilson entre os nacionalistas anticoloniais reflecte-se na divisão do livro em três partes. Na primeira, que serve de enquadramento, aborda-se a emergência das ideias de Wilson na ordem internacional. Na prática, Manela procura explicar o porquê de o Presidente norte-americano ter beneficiado de uma imagem tão favorável junto dos povos coloniais. Entre os finais da guerra e a Primavera de 1919, Wilson era retratado pelos nacionalistas anticoloniais como um ícone e um potencial defensor das suas causas. Esta percepção foi motivada pelos discursos pronunciados durante a guerra, nos quais defendia que o estabelecimento de uma paz duradoura implicaria o reordenamento da sociedade internacional com base em princípios como a igualdade entre as nações, a resolução das disputas de forma pacífica sem recurso à violência e o respeito pela autodeterminação. A explicação de Manela para o surgimento do Wilsonian moment conjuga ainda outros dois factores. Para a imagem de arauto da nova ordem associada a Wilson terá igualmente contribuído o trabalho de disseminação dos seus discursos realizado pela máquina de propaganda de guerra norte-americana e pelas agências internacionais de notícias. Em resultado, as ideias de Wilson ecoaram pelo mundo, sendo apropriadas pelos nacionalistas anticoloniais, dotando-os de uma nova linguagem, na qual se basearam para solicitar o reconhecimento dos seus direitos no palco internacional.

A apropriação da linguagem wilsoniana pelos nacionalistas egípcios, indianos, chineses e coreanos é amplamente realçada na segunda parte do livro, que foi enriquecida com as citações das publicações e dos documentos escritos pelos colonizados. Ao se dar voz aos nacionalistas, ficou patente que a apropriação da linguagem de Wilson não foi isenta de uma certa distorção ou, pelo menos, de um entusiasmo precipitado. Os princípios delineados por Wilson tinham em mente antes de mais o quadro europeu. Aos territórios coloniais requeria-se que realizassem um processo evolutivo, tutelado pelos países ditos civilizados, no término do qual poderiam alcançar a autodeterminação. Esta concepção gradualista a respeito da autodeterminação dos povos coloniais não impediu que as ideias de Wilson tivessem ganho vida própria, sendo interpretadas de uma forma muito mais vanguardista do que aquilo que o próprio Presidente pretendia. A forma como as promessas de Wilson sobre a nova ordem mundial foram encaradas dependeram, concluiu Manela, das percepções, objectivos e contextos do mundo colonial. Dentro dos contextos coloniais o autor deu escassa atenção àqueles que eram cépticos em relação às promessas contidas nos discursos de Wilson. Exceptuando breves apontamentos, o livro traça a ideia de uma percepção quase unânime em relação às possibilidades que os princípios enunciados por Wilson iriam ter para os povos coloniais. O autor poderia ainda ter desenvolvido esforços no sentido de uma maior conjugação entre os aspectos nacionais e internacionais da apropriação da linguagem wilsoniana. Embora haja uma extensa contextualização sobre a evolução de cada um dos territórios analisados, pouco se percebe do impacto que as dinâmicas internas, entre 1914 e 1918, tiveram nessa apropriação.

 

CONFRONTO COM A REALIDADE

De posse de uma nova linguagem, os nacionalistas anticoloniais egípcios, indianos, chineses e coreanos consideraram a Conferência de Paz e a presença de Wilson em Paris como uma oportunidade para alcançar a autodeterminação. As tentativas realizadas nesse sentido são referidas nas segunda e terceira partes do livro, nas quais Manela explora para cada território a forma como os nacionalistas anticoloniais colocaram as suas reivindicações no contexto dos desenvolvimentos internacionais. A análise alterna de um território para o outro e somente em casos pontuais faz a ponte entre as várias realidades. Embora seja mencionado que não se pretendia fazer uma história comparada, estas duas partes certamente teriam sido enriquecidas com as ilações resultantes da comparação entre os quatro territórios.

Dito isto, resulta da análise do autor que os nacionalistas egípcios, indianos, chineses e coreanos definiram como objectivo primordial a deslocação de delegações à Conferência de Paz para solicitar o reconhecimento do direito à autodeterminação. A análise da campanha internacional desencadeada nesse sentido é um dos pontos fortes do trabalho de Manela, que evidencia os contributos das comunidades de emigrantes e de estudantes no estrangeiro, que, à semelhança dos nacionalistas residentes nas colónias, inundaram a Conferência de Paz, as delegações dos diversos países e inclusive o próprio Wilson com petições nas quais denunciavam que os seus territórios eram vítimas de exploração colonial. Essa campanha foi contudo frustrada pelas potências coloniais, na medida em que somente os delegados chineses conseguiram assento em Paris. As reivindicações nacionalistas dos territórios coloniais esbarravam com as persistências de uma ordem internacional inalterada, dominada pelas grandes potências, que conseguiram que as petições remetidas à Conferência de Paz ficassem fora de circulação.

A resistência das potências coloniais é apenas um dos argumentos avançados pelo livro em explicação do falhanço das tentativas dos nacionalistas anticoloniais. A outra explicação reside nos objectivos definidos pelo Presidente norte-americano para a Conferência de Paz. Nos horizontes de Wilson estavam o estabelecimento de um acordo para as questões europeias e a criação de mecanismos internacionais que prevenissem guerras futuras, a Liga das Nações. Wilson acabaria por não responder aos documentos que lhe foram enviados pelos nacionalistas anticoloniais, uma vez que durante o período em que esteve em Paris as únicas questões coloniais das quais se ocupou foram as resultantes directamente da guerra. A autodeterminação dos territórios coloniais nunca esteve na agenda das três grandes potências – os Estados Unidos da América, a Grã-Bretanha e a França –, que na prática definiram o rumo da Conferência de Paz. O próprio Wilson acabaria por afirmar que as questões coloniais seriam reservadas para a futura Liga das Nações.

Conclui-se do encadeamento do livro que as tentativas dos nacionalistas anticoloniais estavam à partida destinadas ao fracasso. O desencanto resultante da frustração das expectativas motivou a Revolução de 1919 no Egipto, as sublevações na Índia, os acontecimentos que se seguiram às manifestações de 4 de Maio na China e o Movimento de 1 de Março na Coreia, que foram igualmente analisados na terceira parte do livro. Manela apresenta estas irrupções como um momento de viragem na luta pela autodeterminação desses povos, que, mais uma vez, procuraram junto de Wilson o apoio de que necessitavam, mas sem sucesso. Os Estados Unidos responderam através do reconhecimento do protectorado britânico sobre o Egipto, do silêncio em relação aos apelos dos indianos, do apadrinhamento do controlo japonês sobre a província chinesa de Shandong e da confirmação da anexação da Coreia pelo Japão. O sentimento de traição manifestado pelos nacionalistas não os impediu, no entanto, de continuar nos anos que se seguiram a insistir junto da comunidade internacional, tanto em Paris, como em Londres ou nos Estados Unidos, para o reconhecimento dos seus direitos. Isto demonstra a percepção que tinham da importância da luta na arena internacional e testemunha o fenómeno explicado por Manela, segundo o qual o Wilsonian moment produziu uma transformação e uma oportunidade para internacionalizar a luta dos nacionalistas anticoloniais.

 

VIRAGEM PARA A RÚSSIA

Algumas das reflexões mais importantes de Manela encontram-se na parte final do livro, onde defende que o Wilsonian moment alterou as relações entre colonizadores e colonizados. O momento é descrito como simultaneamente internacional e transnacional dada a interacção entre estados soberanos, a localização dos actores em vários pontos do globo, a percepção de que faziam parte de um quadro mais abrangente e global, a utilização do palco internacional para alcançar a opinião pública mundial, a defesa de uma nova visão do mundo e a realização de acções que transcenderam as fronteiras políticas existentes. Os acontecimentos que desencadeou na Primavera de 1919 tornaram-se elementos centrais da construção da identidade dos quatro territórios, conduzindo ao fortalecimento dos programas políticos e das organizações defensoras da autodeterminação. O livro indica que, no seu rescaldo, os nacionalismos anticoloniais tornaram-se mais radicais, desviando a atenção de Wilson para a Rússia à procura de modelos e de meios alternativos de apoio para a luta pela autodeterminação. O autor atribuiu esta viragem ao falhanço do liberalismo anticolonial de Wilson, que não conseguiu corresponder às expectativas. Contudo, não explorou cabalmente a asserção segundo a qual se pode considerar que é no Wilsonian moment que se encontram as raízes do antiamericanismo entre muitos povos coloniais. As incursões efectuadas pelo autor justificavam que no final retomasse essa questão que foi meramente aflorada no início do livro.

Talvez as duas mais importantes lições colhidas neste livro sejam a apropriação das ideias de Wilson por parte dos líderes nacionalistas e a utilização da arena internacional como forma de legitimação da autodeterminação. Mesmo após o esbatimento da imagem de Wilson como o messias de uma nova era, a linguagem da autodeterminação continuou a ser utilizada, tornando-se a componente central das reivindicações nacionalistas. Essa linguagem inspirou os nacionalistas nas décadas seguintes, que continuaram a insistir junto da comunidade internacional para o reconhecimento das suas reivindicações. Os nacionalistas egípcios, indianos, chineses e coreanos estiveram na vanguarda de um caminho que mais tarde seria trilhado por outros, designadamente por alguns movimentos de libertação das colónias portuguesas, que conjugaram o recurso à luta armada com a actividade diplomática junto de instituições como a Organização das Nações Unidas.