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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.26 Lisboa jun. 2010

 

Os Estados Unidos da América e a nova identidade internacional do Brasil

 

Thiago Carvalho

Investigador do IPRI-UNL e do Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa (CEHCP). Mestre em História das Relações Internacionais pelo ISCTE, prepara actualmente uma tese de doutoramento sobre as relações luso-brasileiras entre 1968 e 1985.

 

SPEKTOR, MATIAS

Kissinger e o Brasil.

Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009. 234 páginas.

 

 

A recente obra de Matias Spektor, Kissinger e o Brasil, versa sobre um dos momentos mais dinâmicos da política externa brasileira. O pano de fundo diz respeito à reaproximação diplomática entre Washington e Brasília, que procurava estabelecer um novo padrão de relacionamento bilateral ajustado à conjuntura e à identidade internacional dos dois países em meados da década de 1970. A partir desta análise, Spektor questiona a tese da rivalidade emergente, amplamente aceite pelas elites brasileiras e que tem influenciado a concepção e a condução da política externa1. Recorrendo a fontes multinacionais e a documentação recém-desclassificada, o autor elabora uma análise mais sóbria e sofisticada das relações entre os dois países.

Esta revisão é tanto mais oportuna se considerarmos que os vínculos com os Estados Unidos permanecem prioritários para o Itamaraty e que o Brasil assume uma posição de relevo no sistema internacional.

 

O BRASIL E A NOVA ESTRATÉGIA AMERICANA

O ponto de partida deste trabalho é a análise da conjuntura em que decorreu a reaproximação diplomática entre Washington e Brasília. A doutrina Nixon conferia importância acrescida às periferias do sistema na prossecução da política externa norte-americana. Doravante, o Departamento de Estado pretendia partilhar os custos da manutenção da ordem global com determinados países emergentes, enquadrando-os na sua estratégia internacional. É neste contexto que os Estados Unidos demonstram um interesse renovado pelas relações com o Brasil que, devido ao rápido crescimento económico e a uma política externa ambiciosa, assumia crescente protagonismo regional.

O autor observa que a iniciativa de redimensionar os vínculos bilaterais não reunia consenso no seio de ambas as administrações. Em Washington, as opiniões divergiam entre os que questionavam a importância do Brasil e os que viam uma aliança com o país como o meio mais eficaz de implementar a estratégia norte-americana no subcontinente. Junto das elites brasileiras, prevalecia a ideia de que a melhor maneira de assegurar o interesse nacional e a autonomia política seria mantendo uma posição equidistante em relação à potência dominante. Por isso, o Itamaraty recebeu com reservas a iniciativa do Departamento de Estado, estabeleceu um diálogo ambíguo que salvaguardasse alguma margem de manobra, e condicionou qualquer aproximação ao «reconhecimento simbólico do status ascendente do Brasil» (p. 48).

A tentativa de cooperação entre os dois países revelou a existência de divergências de fundo não só quanto às respectivas agendas internacionais mas também quanto ao sentido atribuído por cada parte à reaproximação. O resultado foi que a cooperação assentou num compromisso vago, capaz de adaptar-se às circunstâncias mais adversas. Porém, como observa Matias Spektor, um vínculo com baixo grau de institucionalização tornava-se demasiado sensível aos elementos simbólicos e retóricos e muito dependente da acção dos negociadores directamente envolvidos (p. 62). Por isso, o autor assentou parte substancial da sua tese na análise da relação desenvolvida entre, o então secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, e o seu homólogo brasileiro, António Azeredo da Silveira, considerando-os actores decisivos no processo de reaproximação que levou à ratificação do Memorando de Entendimento (1976) e que estabeleceu um novo desenho para o relacionamento bilateral2. A opção por uma interpenetração histórica centrada na actuação de duas personalidades que deixaram uma marca indelével na política externa dos seus países, procura explicar como a cooperação avançou mesmo quando as suas bases reais eram questionáveis.

Em meados dos anos 1970 parte substancial das preocupações de Washington em relação à segurança vinha do hemisfério Sul. O Departamento de Estado julgava que uma parceria com o Governo brasileiro permitiria relançar a sua estratégia para o subcontinente com um mínimo de concessões. Por sua vez, o Itamaraty ambicionava maximizar os benefícios de uma relação estreita com os Estados Unidos evitando maiores comprometimentos. Foi com estas aspirações contraditórias que ambas as partes procuraram redimensionar os vínculos bilaterais.

 

O PRAGMATISMO RESPONSÁVEL E A COOPERAÇÃO COM OS ESTADOS UNIDOS

Uma das principais marcas do Governo de Ernesto Geisel (1974-1979) foi o desenvolvimento de uma política externa de longo alcance que ficou conhecida por pragmatismo responsável3. A obra de Matias Spektor dá um contributo importante para a sua compreensão, nomeadamente ao aprofundar o estudo da relação existente entre o processo político interno e a orientação da diplomacia face à proposta de cooperação norte-americana. O autor observa que, apesar do franco entendimento existente entre o Presidente Geisel e o seu chanceler, Azeredo da Silveira, ambos faziam leituras distintas dos dividendos a esperar do pragmatismo responsável.

No entender de Ernesto Geisel, a política externa deveria concorrer para o seu plano de liberalização do regime. Neste sentido, ao apoiar uma inserção internacional mais autónoma e flexível, livre dos condicionalismos da Guerra Fria, o Presidente não só pretendia viabilizar o projecto nacional-desenvolvimentista como alterar o equilíbrio político interno. Ao relativizar a importância do combate ao comunismo, o Governo enfraquecia o principal argumento que a linha dura do regime usava para justificar as suas acções arbitrárias e o endurecimento político. Esta apropriação simbólica da diplomacia em curso foi uma constante neste período. No que diz respeito à reaproximação aos Estados Unidos, o Governo apresentou-a aos sectores mais conservadores como um sinal inequívoco de que o Brasil permanecia no campo do Ocidente. Por sua vez, os termos vagos da cooperação bilateral deveriam constituir uma prova da autonomia brasileira em relação à superpotência, atenuando as críticas das esquerdas do regime. Matias Spektor chama a atenção para o facto de que a política externa tinha o propósito de fortalecer o Presidente num contexto de progressivo declínio do regime militar, assegurando que fosse ele a conduzir o processo de liberalização até ao fim (p. 79).

Para o chanceler Azeredo da Silveira a diplomacia deveria projectar o país no futuro. A política externa por ele implementada pretendia aproveitar aquilo que considerava ser uma conjuntura favorável – o relativo declínio norte-americano e a multilateralização das relações internacionais – e conquistar para o Brasil uma nova posição no sistema. Este propósito concorreu para que os vínculos com os Estados Unidos fossem percepcionados para além do binómio alinhamento versus distanciamento, procurando conciliar a defesa do interesse nacional com os benefícios de uma relação estreita com Washington. Neste contexto, a proposta de cooperação avançada pela Administração Nixon, que reconhecia uma voz própria à diplomacia brasileira, foi entendida como uma oportunidade não só para reformular as relações bilaterais em termos mais favoráveis como para afirmar a nova identidade internacional do Brasil.

O empenho pessoal de Kissinger e Silveira não foi suficiente para pôr termo às desconfianças recíprocas e às incertezas existentes em ambos os lados quanto ao modelo e à eficácia da cooperação. Por conseguinte, a aproximação foi gradual e pensada caso a caso, dando origem a um compromisso vago e flexível que subvertia a estratégia até então seguida por Washington na sua relação com as periferias emergentes. O resultado foi que pela primeira vez o Brasil foi visto como um parceiro capaz de participar na construção da ordem global norte-americana e com margem de manobra para discutir a sua visão de mundo com os Estados Unidos.

 

O 25 DE ABRIL E A DESCOLONIZAÇÃO DE ANGOLA

O trabalho de Matias Spektor revela como a actuação do Itamaraty durante o 25 de Abril e a descolonização de Angola contribuíram para a projecção do Brasil como um actor global, nomeadamente junto de Washington.

No que diz respeito à Revolução portuguesa, a diplomacia brasileira manteve desde o princípio contactos estreitos com o novo regime, o que favoreceu a avaliação de que a transição encaminhar-se-ia para a democracia liberal. Ao actuar com eficácia num cenário onde os Estados Unidos vinham encontrando alguma dificuldade, o Governo brasileiro apresentava-se como um interlocutor credível e um parceiro privilegiado em Washington. Como observou o autor, este foi o primeiro momento em que o Itamaraty «começou a sugerir que o Brasil tinha capacidade de agregar valor à política externa americana em termos globais» (p. 101). Dessa maneira, as relações com Lisboa transpunham a sua importância bilateral e inseriam-se numa estratégia mais ampla que pretendia assegurar um novo estatuto internacional para o país.

Ao reconhecer o MPLA como representante do novo Estado angolano o Governo brasileiro tomou uma decisão de longo alcance que contribuiu determinantemente para alterar a sua imagem em África. Mais uma vez o Itamaraty seguira uma estratégia própria e em discordância com o Departamento de Estado, obtendo êxito num cenário que se revelaria de suma importância e onde os Estados Unidos não estavam presentes. Matias Spektor demonstra como a diplomacia brasileira procurou actuar como um intermediário entre Luanda e Washington, explorando ao limite a dimensão simbólica que este papel poderia ter tanto no plano externo como no interno. Caso Washington recorresse aos préstimos de Brasília, não só reconhecia a sua intenção de actuar como mediadora no diálogo Norte-Sul, nomeadamente entre o Ocidente e os movimentos de libertação, como conferia alguma equidade ao relacionamento bilateral. Por outro lado, a cooperação com Washington, no que diz respeito à questão angolana, poderia contribuir para aplacar as críticas internas e externas relativas ao apoio brasileiro a um movimento de inspiração marxista (pp. 118-122). No que diz respeito a uma hipotética acção concertada na África, nomeadamente em Angola, teria sido oportuno que o autor avaliasse até que ponto o Itamaraty e o Departamento de Estado pretendiam realmente implementá-la e tinham possibilidades de o fazer.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O livro de Matias Spektor elucida como a aproximação entre o Brasil e os Estados Unidos, ao longo da década de 1970, esteve sujeita às estratégias e objectivos de cada momento. Enquanto que para Brasília as relações com Washington eram centrais, para o Departamento de Estado o Brasil era apenas parte de uma política mais ampla. Estas diferenças de percepção explicam a formulação de um acordo vago que não foi capaz de resistir às suas próprias contradições. No princípio da década de 1980 a incipiente cooperação bilateral seria rapidamente substituída por conflitos crescentes. O unilateralismo da Administração norte-americana e o reacender das tensões da Guerra Fria diminuíram a importância do Brasil em Washington. Por sua vez, o neoliberalismo emergente e o declínio do diálogo bilateral ressuscitou junto das elites brasileiras a ideia de que a melhor maneira de salvaguardar o interesse nacional seria distanciando-se dos Estados Unidos.

Ao reavaliar as relações entre o Brasil e os Estados Unidos, Spektor dá um contributo fundamental para o estudo da política externa brasileira. Em primeiro lugar, permite compreender em profundidade a história recente do principal vínculo externo do país. Em segundo, questiona pertinentemente a teoria da rivalidade emergente ao demonstrar que o desenvolvimento económico e a afirmação internacional do Brasil não eram de todo contrários aos interesses estratégicos norte-americanos.

Em terceiro, elucida que apesar da reaproximação bilateral ter ficado aquém dos propósitos iniciais o seu legado foi inequívoco. Isto é, marcou o momento em que o Brasil foi reconhecido pelos Estados Unidos como um actor global capaz de influenciar a agenda internacional. Kissinger e o Brasil reflecte sobre um dos raros episódios em que as duas partes estiveram empenhadas em aprofundar a cooperação, revelando as contradições e potencialidades deste projecto. Ontem como hoje é imperativo que ambos os países mantenham um diálogo que concilie as divergências com o respeito pelas respectivas aspirações.

 

NOTAS

1 A tese da rivalidade emergente defende que a modernização económica do Brasil e a sua projecção internacional seriam entendidas pelos estados Unidos como um desafio à sua hegemonia. Como consequência, era expectável que Washington procurasse conter o desenvolvimento brasileiro. Esta teoria é transversal a diversos segmentos da sociedade brasileira e encontrou eco em inúmeros trabalhos académicos, dentre os quais destacamos: BANDEIRA, Luiz A. Moniz – Brasil-Estados Unidos: a Rivalidade Emergente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989; BUENO, Clodoaldo, e CERVO, Amado L. – História da Política exterior do Brasil. Brasília: UNB, 2002; VIZENTINI, Paulo F. – A Política Externa do Regime Militar Brasileiro. Porto Alegre: UFRGS, 1998.

2 O memorando de entendimento (1976) constituiu um marco ao formalizar a parceria estratégica entre Washington e Brasília. A sua importância foi tanto prática quanto simbólica. Pela primeira vez, os Estados Unidos comprometiam-se a manter encontros regulares com um país em desenvolvimento, reconhecendo assim o novo estatuto internacional ambicionado pelo Brasil.

3 O pragmatismo responsável assentava em três vectores: a política externa era entendida como um instrumento do desenvolvimento económico; a diversificação das relações diplomáticas pretendia a integração do país na economia mundial, ampliando o seu peso internacional e relativizando as suas vulnerabilidades; e a maximização da capacidade de decisão do estado face ao sistema internacional.