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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.26 Lisboa jun. 2010

 

Não há duas sem três: A terceira tentativa paquistanesa para alcançar a democracia

 

Michael Meyer-Resende

Director executivo da Democracy Reporting International (DRI)[i] .

 

Na escuridão exterior vejo apenas uma rede de luzes fracas lá em baixo. Todas terminam numa linha nítida: é supostamente nesse ponto que Carachi termina e o oceano Índico começa. Devem ser os subúrbios. Nos países pobres as luzes brilham com menos intensidade. Perdi o voo de ligação, pelo que terei de passar a noite no aeroporto de Carachi, antes de poder apanhar o avião para a capital, Islamabade. A perspectiva não me deixa propriamente entusiasmado. É a minha primeira viagem ao Paquistão e o pouco que sei sobre Carachi faz-me pensar que a cidade é uma enorme metrópole vítima da pobreza e das guerrilhas de gangues, à mistura com violência política e religiosa.

Mas as coisas não eram como eu esperava, à semelhança do que viria a acontecer várias vezes durante a minha estada no Paquistão. O aeroporto era, afinal, um lugar tranquilo. De facto, poucos paquistaneses podem dar-se ao luxo de andar de avião. O aeroporto de Carachi serve uma cidade com 15 milhões de habitantes, mas conta com um tráfego de passageiros equivalente a metade do Aeroporto da Portela.

Deito-me para tentar dormir num dos bancos do aeroporto. Meia hora depois, sou acordado por um funcionário:

– O senhor quer ir para Islamabade, sim?

– Quero.

– Venha comigo. Eu registo-o no primeiro voo do dia. Não é muito agradável estar aí deitado no banco.

Lá me levou para o balcão de check-in, certificando-se de que me traziam rapidamente a bagagem, que se encontrava na secção de passageiros em trânsito.

Fiquei grato por ter ganho algumas horas, depois de uma viagem de avião que já durava há mais de um dia. E senti-me também satisfeito por encontrar tanta amabilidade nos primeiros paquistaneses com que me cruzei. Pareceu-me bastante improvável que alguém num aeroporto europeu pudesse ser tão atencioso. Como é óbvio, a imagem internacional do Paquistão não é marcada por funcionários de aeroporto prestáveis, mas sim por golpes de Estado militares, campanhas bombistas dos taleban paquistaneses, pelos ataques de drones norte-americanos no Vaziristão e pelas tensões com a Índia. O Paquistão é visto como um país eternamente instável, com um arsenal nuclear que pode um dia cair nas mãos dos taleban.

Islamabade só foi construída durante a década de 1960, quando a capital foi transferida de Carachi para um planalto deserto entre a capital militar, Rawalpindi, e os montes Margalla. Islamabaded parece um grande subúrbio com ruas largas, com trânsito controlado e muitas vivendas rodeadas de muros e cercas recobertas de arbustos e flores.

Na primeira noite tivemos um jantar com alguns diplomatas ocidentais no «enclave diplomático», um bairro de embaixadas cercado por um muro dotado de postos de controlo. É difícil não pensarmos que se um dia a situação se complicar, esta área será semelhante à Zona Verde de Bagdade.

Os diplomatas pouco têm a dizer de positivo acerca do desenrolar dos acontecimentos políticos no país, desde que Musharraf se demitiu na sequência das eleições legislativas de 2008, que colocaram a oposição em peso no poder. O Parlamento está agora a chegar a meio do seu mandato, mas os diplomatas pensam que o Governo democrático tem feito poucos progressos e que a população está desiludida. Os cortes frequentes de electricidade e o elevado preço do açúcar representam um grande transtorno para a maioria dos paquistaneses. O Presidente Zardari, viúvo da falecida Benazir Bhutto, é acusado de corrupção. O Governo e o poder judicial estão em conflito. O principal partido da oposição, o PML-N, de Nawaz Sharif, faz todos os possíveis por dificultar a vida ao Governo.

Enquanto isto, o Exército combate o ramo paquistanês dos taleban no Vaziristão, nas fronteiras com o Afeganistão. Quase todos os dias explodem bombas nas principais cidades do país. Durante o ano passado, mais de 8600 civis paquistaneses morreram ou foram feridos em consequência de ataques terroristas, o que fez do Paquistão e do Afeganistão a «primeira região de terrorismo», à frente, inclusive, do Médio Oriente, de acordo com o National Counterterrorism Center, dos Estados Unidos. A juntar a tudo isto estão os problemas fundamentais do Paquistão: um Estado pobre com uma identidade indefinida, habitado por 170 milhões de pessoas que falam seis línguas principais diferentes e com uma taxa de analfabetismo a rondar os 50 por cento. Uma federação desigual formada por quatro províncias muito diferentes entre si: o Punjabe, um peso pesado económico, que engloba metade da população paquistanesa; o Sinde, onde, desde a independência, a antiga ordem social tem sido perturbada pelo influxo de muçulmanos oriundos da Índia; o Balochistão, uma província pobre e periférica, apesar das suas riquezas em minério, encravada entre a fronteira com o Irão e o Afeganistão; e a província NWFP [North-Western Frontier Province (Província da Fronteira Noroeste)], que recentemente passou a chamar-se Khyber Pashtoonkwa, habitada sobretudo por pachtuns, próximos dos seus primos afegãos. Já para não referir os territórios directamente dirigidos pelo Estado federal, como as áreas tribais sem lei, na fronteira com o Afeganistão e em certas zonas de Caxemira, o território disputado pela Índia e pelo Paquistão desde 1947.

Podemos perdoar o pessimismo manifestado pelos diplomatas ocidentais a respeito da democracia neste país. No entanto, fico céptico em relação ao seu cepticismo. No enclave diplomático escuto frases que já ouvi demasiadas vezes da boca de diplomatas em funções em democracias frágeis: «Este país não está preparado para a democracia. Precisa de um pulso firme. Você tem de perceber que as pessoas não estão interessadas na democracia. Não tenha grandes expectativas: isto não é a Dinamarca nem a Suécia.» A ideia subliminar é: a democracia é um luxo a que nem todos se podem dar.

Mas os problemas do Paquistão não começaram em 2008. Vejamos, por exemplo, os grupos islâmicos violentos: Zia Ul-Haq, o líder apoiado pelo Ocidente entre 1977 e 1988, era a personificação de um ditador fundamentalista. Zia introduziu a shari’a no Código Penal, implementou currículos de escolas religiosas no ensino e baniu o álcool. Musharraf, também ele apoiado pelo Ocidente depois do 11 de Setembro, incentivou a formação de partidos islâmicos porque os principais partidos, de Bhutto e de Sharif, lhe faziam frente. Em todas as eleições livres a maioria da população paquistanesa votou a favor dos partidos principais, mas nunca houve um parlamento que conseguisse chegar ao fim do seu mandato.

Nos dias seguintes fui aos edifícios altamente fortificados do Parlamento para me encontrar com políticos de todos os partidos. Nos últimos anos, trabalhei principalmente em países árabes, que são muito fechados em termos políticos, e, por isso, fiquei agradavelmente surpreendido pela abertura dos políticos paquistaneses. São educados e corteses estão sempre a servir chá e bolinhos, têm um discurso elaborado e ficam satisfeitos por poderem defender os seus pontos de vista. E, ao contrário de outros países, não começam os debates a questionar a legitimidade dos forasteiros que vêm analisar o seu país.

O Governo é muito criticado pelos políticos da oposição, mas todos nos deixam com a sensação de que desejam que esta democracia tenha sucesso e de que querem manter o Exército afastado do processo político. Isto representa uma diferença em relação ao último período democrático, durante os anos 1990, quando os Sharif foram acusados de conspirar ao lado do Exército para derrubar o Governo de Benazir Bhutto e vice-versa.

Claro está, seria um erro confundir os partidos políticos do Paquistão com os que encontramos nas democracias consolidadas: os partidos paquistaneses são fortemente dirigidos por famílias influentes, em particular os Bhutto no Sinde, e os Sharif no Punjabe. Também não se pode falar de uma democracia estruturada no seio dos partidos. No entanto, os partidos não são monolíticos e as famílias necessitam de acolher vários pontos de vista e diferentes interesses. E o Paquistão é sem dúvida um país muito pluralista.

Conversámos com um político do partido dos Sharif, que tem vindo a contestar os resultados eleitorais num círculo eleitoral rural do Punjabe. Falámos sobre a necessidade de aprovar melhores leis eleitorais, com maior transparência e maiores garantias de uma administração imparcial das eleições, para que o povo aceite os resultados do escrutínio de modo a reduzir o potencial de violência. Mas no final do debate ele faz um sorriso rasgado e diz: «Mas eleições são eleições...» Isto parece um comentário pessimista, como quem diz «as eleições hão-de ser sempre difíceis, desonestas e à margem das regras». E, contudo, ouço algumas coisas positivas. No Paquistão as eleições são eleições porque não se sabe quem vai ganhar. É verdade: são desonestas e difíceis mas só vale a pena enfrentar as dificuldades e a desonestidade se os resultados estiverem em aberto. Ao contrário do que sucede noutros países, onde as eleições parecem maravilhosamente pacíficas porque o resultado já é conhecido. Aí, as eleições são selecções.

Tivemos um encontro com Raza Rabbani, um senador de voz suave, activista pró-democracia desde há longos anos. O senador Rabbani está à frente de um comité pluripartidário para introduzir reformas na Constituição paquistanesa. Pinta-nos um quadro de nuances: há de facto um afastamento perigoso entre o ramo judicial e o ramo executivo do poder, mas com uma história dominante de governação militar, não é de espantar que os braços do poder tenham de encontrar e definir o seu papel. O Parlamento tem sido pouco activo, mas começa a desempenhar o seu papel. Pela primeira vez, o Parlamento debateu o orçamento do Exército, que até agora era uma única linha no orçamento, sem qualquer tipo de supervisão civil. Os meios de comunicação social são pouco profissionais, e produzem muitas vezes peças informativas abertamente parciais ou caluniosas, mas, por outro lado, o pluralismo nos mediaaumentou grandemente nos últimos dez anos. Podemos encontrar todo o tipo de opiniões no domínio público e não há qualquer receio de censura. Rabbani compara a democracia do Paquistão com um rio que esteve retido numa barragem durante muito tempo. Ao abrir as comportas, o rio torna-se uma corrente louca e desgovernada que necessita de tempo para encontrar o seu caminho e o seu leito.

Nos últimos doze meses o senador presidiu a 77 sessões do Comité de Reforma Constitucional e conseguiu obter o acordo de todos os partidos para a adopção de emendas constitucionais de grandes repercussões: o sistema político passará a ser parlamentarista, de acordo com a versão inicial da Constituição de 1973, que acabaria por ser transformado num sistema presidencialista. O Presidente deixará de poder dissolver o Parlamento por sua exclusiva vontade e o primeiro-ministro passará a indigitar as mais altas patentes militares. Os membros da comissão de eleições serão designados conjuntamente pelo Governo e pela oposição.

As reformas de Rabbani, conhecidas como a 18.ª Emenda da Constituição, foram adoptadas por unanimidade de ambas as câmaras parlamentares em Abril. Poucos dias depois, o Presidente Zardari assinou o diploma, dando-lhe força de lei. Trata-se de um caso raro em que um presidente foi signatário da redução dos seus próprios poderes.

Seria absurdo tentar prever o futuro do Paquistão. O país enfrenta desafios como poucos países têm de enfrentar. Mas é importante vermos ambas as faces do Paquistão. A imagem mediática de um Estado profundamente frágil e disfuncional acarreta o risco de se criar uma profecia que o país pode acabar por cumprir contra si mesmo, profecia segundo a qual é inevitável um novo golpe militar. Mas não é assim. Os ditadores militares têm sido o problema do país, e não a sua solução. O Paquistão está a fazer a sua terceira tentativa para se tornar uma democracia. No interesse do Paquistão, e no interesse de todos nós, resta-nos ter esperança no seu êxito e dar o nosso melhor para que se atinja esse fim.

 

18 DE MAIO DE 2010.

TRADUÇÃO: JORGE FILUZEAU GARCIA

 

[i] A DRI é uma organização, sediada em Berlim, de apoio à participação política. A DRI tem um gabinete em Islamabade com o objectivo de implementar um programa com fundos da União Europeia de apoio às reformas eleitorais e aos parlamentos federal e provinciais.