SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número25Descontruções e Reconstruções em A Guerra dos Cinco DiasO Comité de Londres ou a tentativa de contenção da Guerra Civil de Espanha índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.25 Lisboa mar. 2010

 

Um olhar diferente sobre a República Islâmica

 

Margarida Santos Lopes

Redactora principal do jornal Público. Escreve sobre Israel, o mundo árabe e muçulmano desde 1979. É autora de Dicionário do Islão, Palavras, Figuras e Histórias (Editorial Notícias) e Arafat, A Pedra Que Os Palestinianos Lançaram ao Mundo (ed. Público).

 

 

NAHID MOZAFFARI (ORG.)

Um Bom Escritor É Um Escritor Morto – Antologia de Escritores Iranianos

Tradução: Luís Oliveira Santos e Manuel Abrantes

Lisboa, Nova Vega, 2009, 216 páginas

 

 

O romancista Esmail Fassih observou, em 1987, que «nas esplendorosas terras do Irão, um bom escritor é um escritor morto» – é este o título, em português, de uma admirável antologia editada pela Nova Vega, que permite um olhar diferente sobre a República Islâmica. Infelizmente, sob o actual regime teocrático, já nem os escritores mortos são bons escritores. Veja-se o caso de Anna Karenina de Tolstoi, arrasado por um grupo de deputados ultraconservadores de Teerão, porque «propaga a cultura do álcool e das relações extraconjugais, elimina o estigma associado ao pecado e glorifica a aristocracia».

Tolstoi não foi o único a ser atacado. «Dostoievski precisa de licença», titulou em primeira página um jornal de Teerão, referindo-se à decisão do Presidente Mahmoud Ahmadinejad de reforçar as «competências» dos censores, dando-lhes poderes não apenas para impedir a publicação de novos títulos mas também a reedição de clássicos da literatura persa e mundial.

A amarga realidade é constatada em Crónica da Vitória dos Magos, de Hushgang Golshiri, um dos escritores incluídos nesta antologia, na seguinte passagem: «E quando dermos por isso, nem sequer permitem Ferdowsi nos nossos cemitérios. As coisas não tinham chegado a esse ponto, embora houvesse quem dissesse que os poemas de Ferdowsi estavam a ser eliminados dos manuais escolares» (p. 32). Autor do monumental Shahnameh (“Livro dos Reis”), Ferdowsi é o grande poeta nacional do Irão. Os iranianos inscrevem os seus poemas nas lápides das sepulturas.

Desde a sua primeira eleição, em 2005, Ahmadinejad recrutou mais e mais censores para o Ministério da Cultura e Orientação Islâmica e, com isso, mais e mais editoras abriram falência. Nada é publicado no Irão sem emendas e aprovação oficial.«Escritores e editores contam histórias kafkianas de censores invisíveis, que apenas são conhecidos pelos seus números – a qualquer momento, o censor 101 pode agarrar numa obra e bloqueá-la», observou Kasri Naji, autor da biografia Ahmadinejad – The Secret History of Iran’s Radical Leader.

Leia-se esta estória de Ghazi Rabihavi, outro autor que a editora iraniana Nahid Mozaffari incluiu (p. 58) e cita na introdução (pp. 14-15) da antologia que organizou:

«Uma vez, um escritor iraniano escreveu um romance de 179 páginas e, como qualquer escritor iraniano, apresentou-o ao Ministério da Orientação Islâmica no sentido de obter autorização para o publicar. Depois o escritor esperou. O livro começava com a seguinte passagem: “Ela sabia que se sentiria melhor assim que o marido lhe trouxesse uma chávena de café, tal como nos outros dias. De pé à beira da janela, o vento deslizava delicadamente sobre os seus braços castanhos e os seus olhos estavam postos sobre o sol nascente que se erguia sobre os edifícios do governo. Era um nascer-do-sol que era como um pôr-do-sol.” Após treze meses passados a subir as escadas escorregadias da burocracia, o escritor iraniano conseguiu finalmente uma reunião com o director da censura. O director era apenas uma cabeça. O seu corpo estava escondido por detrás da secretária e parecia reclinar-se delicadamente contra algo macio. A cabeça proferiu o seguinte discurso: “Infelizmente, o seu livro tem alguns problemas que não podem ser corrigidos. Estou certo de que concordará comigo. Atente nestas primeiras frases… em lado nenhum na nossa nobre cultura encontrará uma mulher à espera que o marido lhe leve uma chávena de café. Certo? Bom, outro problema é a imagem do vento deslizando sobre os braços nus que é provocadora e tem conotações sexuais. Por fim, em lado nenhum, em qualquer cultura nobre, encontrará um nascer do sol que se pareça com um pôr-do-sol. Talvez seja um erro tipográfico. Pronto. Aqui tem o seu livro. Espero que escreva outro em breve. Nós apoiamo-lo. Apoiamo-lo.” E a sua cabeça escorregou por debaixo da mesa.»

 

CHEIRAM A TUA BOCA

No país onde o principal censor para o cinema foi até recentemente… um cego, veterano da Guerra Irão-Iraque (1980-1988), a censura tornou-se tão generalizada que 134 escritores publicaram, em 1994, uma «carta aberta ao povo do Irão», alertando para uma grave crise social e cultural. Um extracto dessa declaração consta também de Um Bom Escritor É Um Escritor Morto, magnífico livro que, em inglês, mereceu o título de Strange Times, My Dear, justa homenagem a Ahmad Shamlu – um dos poetas contemporâneos iranianos mais importantes.

Ao contrário da versão em inglês, a edição portuguesa inclui apenas obras de ficção e não de poesia, por isso, um dos mais belos poemas de Shamlu, In This Blind Alley, grito de revolta contra os que usaram o derrube do imperador Pahlavi para construir uma teocracia e não a democracia, está ausente desta antologia. A tradução do persa, por Karimi-Hakkak, pode ser lida em From Desire to Disillusion: Three Poems by Ahmad Shamlu (Iranian Studies, vol. 30, 1997).

«They smell your mouth

lest you might have said: I love you,

they smell your heart.

Strange times, my dear.»[i]

Foi um trabalho excepcional, o de Nahid Mozzafari, doutorada em Estudos do Médio Oriente pela Universidade de Harvard. Com o apoio de várias instituições, em particular, do PEN Center USA, não hesitou em instaurar um processo judicial ao Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, que proíbe a «colaboração directa» entre editores americanos e escritores de «nações inimigas» (como o Irão ou Cuba), para dar a conhecer aos leitores ocidentais «os novos rumos» da literatura iraniana.

 

QUESTÕES NOVAS E TABUS VELHOS

Assim, os que já conheciam o épico de Ferdowsi, as Rubbâyat de Omar Kayyam, o Jardim das Rosas de Sa’adi Shirazi, os poemas sufis de Rumi (que muitos veneram como «o Corão persa») e/ou o Diwân de Hafez (presente em todas as casas iranianas) podem agora apreciar outros escritores – homens e mulheres – como Simin Daneshvar, a primeira romancista iraniana, que ainda vive em Teerão, ou Nassim Khaksar, exilado na Holanda.

Daneshvar e Khaksar incluem-se num primeiro grupo, onde também estão Mahmud Dowlatabadi, Hushgang Golshri e Iraj Pezeshkad – «os já publicados e estabelecidos» antes da queda da monarquia em 1979 e que «continuaram a escrever depois dela». Os seus temas incidem sobre «poder e corrupção, diferenças de classe ou incerteza de identidade, alienação e fraquezas dos intelectuais». Absolutamente delicioso, o conto «Consequências atrasadas da Revolução», de Iraj Pezeshkad, uma crítica mordaz à vida ociosa da antiga elite da corte Pahlavi agora no exílio.

É extraordinário, também, que alguns destes escritores nos levem, através das suas narrativas, ao encontro e reencontro de outros, como Nasser Khosrow, o poeta e filósofo do século xi (pp. 53 e 69), Sadegh Hedayat (1903-1951), famoso pela linguagem coloquial, autor de Alaviyeh Khanum (p. 62), Hakim Nezami Ganjavi, que escreveu, no século xii, Leyli e Majnum, tragédia amorosa semelhante à de Romeu e Julieta (p. 140).

Num segundo grupo, o dos que «começaram a escrever, publicar e a ser lidos depois da revolução», Nahid Mozzafari incluiu Reza Daneshvar, Farkondeh Aghai, Aashgar Abdollahi, Seyyed Ebrahim Nabavi (duas vezes detido por a sua sátira «ser, talvez, demasiado satírica»), Shahriyar Mandanipur, Ghazi Rabihavi e Goli Taraghi – a escritora a que totalmente nos rendemos «Num outro lugar» (pp. 164-211), o conto final.

Este segundo grupo é o dos escritores mais jovens, os que abordam questões novas e velhos tabus. Destaque para o relato da amizade singular entre o muçulmano Idris e o judeu Elfi, em «Um quarto cheio de pó» (p. 128), e para a descrição comovente da execução de um homossexual, em «Pedra Branca» (p. 158).

Um Bom Escritor É Um Escritor Morto é um livro precioso, com excelente tradução de Luís Oliveira Santos e revisão de tradução de Manuel Abrantes. As notas de rodapé contribuem, em muito, para esta preciosidade, porque constituem um guia excepcional para o leitor menos familiarizado com as tradições sociais, religiosas e políticas da antiga Pérsia e do actual Irão.  

 

NOTA

[i] Tradução da autora: «Eles cheiram a tua boca / não vás ter dito: amo-te / eles cheiram o teu coração / Tempos estranhos, minha querida».