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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.25 Lisboa mar. 2010

 

Descontruções e Reconstruções em A Guerra dos Cinco Dias

 

Luís Tomé

Professor na Universidade Autónoma de Lisboa e no Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM), é também professor convidado no curso de Defesa Nacional do IDN. Foi investigador da NATO – EAPC e assessor no Parlamento Europeu. É co-fundador do Centro Português de Geopolítica, e é autor e co-autor de cerca de uma dezena de livros e de inúmeros ensaios e artigos. Está a concluir o doutoramento em Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra com apoio da FCT.

 

 

ARMANDO MARQUES GUEDES

A Guerra dos Cinco Dias. A Invasão da Geórgia pela Federação Russa

Lisboa, IESM e Prefácio, 2009, 159 páginas

 

 

No dia 7 de Agosto de 2008, a Geórgia encetou uma vasta operação militar contra a região separatista da Ossétia do Sul onde estavam estacionados peacekeepers russos. Moscovo reagiu de imediato, fazendo entrar o Exército Federal russo tanto na Ossétia do Sul como na Abcásia (a outra região separatista da Geórgia) e, muito mais significativo, no interior do território georgiano incontestado, ao mesmo tempo que a Força Aérea russa bombardeava posições e cidades georgianas e que a Armada russa bloqueava e controlava a costa da Geórgia no mar Negro. Após a mediação da presidência francesa da União Europeia (ue), as partes em confronto aceitaram estabelecer um cessar-fogo preliminar, a 12 de Agosto. Nesta altura, porém, a situação estava longe do status quo anterior: os intensos combates tinham resultado na expulsão dos militares georgianos da Ossétia do Sul e da Abcásia e no controlo pela Federação Russa de parcelas da Geórgia incontestada, ocupando cidades como Poti ou Gori e criando buffer zones em torno das regiões separatistas e check-points no território georgiano. A 26 de Agosto, Moscovo reconhecia as independências da Ossétia do Sul e da Abcásia, com cujos governos firmou de imediato acordos de assistência bilaterais «legitimando» o posicionamento protector de tropas russas naquelas regiões. Só depois, a 9 de Outubro, ficou concluída a retirada russa do território da Geórgia incontestada.

É este o mote de A Guerra dos Cinco Dias. A Invasão da Geórgia pela Federação Russa, o novo livro de Armando Marques Guedes, co-editado pela Prefácio e pelo Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM) cujo director, o vice-almirante Sabino Guerreiro, assina o lúcido prefácio. Neste estudo monográfico, o antigo presidente do Instituto Diplomático relata os contornos da crise e leva-nos aos bastidores do conflito, desde os registos discursivos dos actores directa e indirectamente envolvidos às operações militares, passando pelas motivações de russos e georgianos ou pormenores inovadores como a «guerra informática da Rússia e dos hackers na Geórgia», complementados com pertinentes imagens da guerra e dos principais intervenientes e ainda mapas esclarecedores colocados em forma de anexo. Estes aspectos já justificariam a pertinência de A Guerra dos Cinco Dias. A obra vai, porém, muito mais além, contendo vários outros motivos de nítido interesse.

A iniciativa que originou o deflagrar desta guerra coube ao Presidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili, como, aliás, sublinham os relatórios da OSCE ou do Parlamento Europeu entretanto divulgados. Saakashvili subira ao poder na sequência da «Revolução Rosa», em 2003, e embora acusado de práticas autoritárias, orientou a Geórgia num sentido claramente «pró-Ocidental/anti-Rússia» e captou o apoio da UE e dos Estados Unidos. Depois de meses de escalada e de provocações mútuas, a manobra do Presidente georgiano visava alcançar vários objectivos de uma só assentada: recuperar o controlo da Ossétia do Sul e da Abcásia, independentes de facto desde o início dos anos 1990 e numa situação de «conflitos congelados» em virtude da presença russa; desacreditar os peacekeepers russos ali estacionados, internacionalizando a questão e substituindo-os por peacekepers ocidentais; remover «abcessos» que travavam a adesão plena da Geórgia à NATO; contrariar a ressurgência da Rússia e reduzir a sua influência na Transcaucásia; e fortalecer a sua própria autoridade internamente. Calculou mal, Saakashvili, muito mal, pois não se pode esperar dar um murro no nariz do urso sem que este reaja: cerca de dois meses depois da «troca de cadeiras» dos agora Presidente Medvedev e primeiro-ministro Putin, uma Rússia ressurgente aproveitou a oportunidade para se afirmar, invocando a «agressão georgiana» e o «precedente do Kosovo» para amputar a Geórgia, ameaçar reivindicar a Crimeia ucraniana, travar virtualmente o processo de alargamento da NATO àqueles dois países, exibir a sua bandeira no mar Negro, articular e promover os seus interesses numa vasta agenda com os Estados Unidos e a UE e mostrar, no fundo, não mais estar disposta a recuar e perder influência na arena internacional e, muito particularmente, no «espaço pós-soviético». Depois dos energy games, se certos rivais «extra-regionais» só respeitam a linguagem da força, a nova Rússia mostrava agora uma nova forma de se fazer ouvir e entender, com uma postura de claro desafio.

É fundamentalmente isto que sustenta o subtítulo deste livro (A Invasão da Geórgia pela Federação Russa), ponto de partida propositadamente controverso. Efectivamente, muito mais do debater quem originou a guerra propriamente dita e independentemente dessas discussões que também «desconstrói», Armando Marques Guedes argumenta que a intervenção da Rússia na Geórgia «fez parte de um conjunto de medidas russas de afirmação nacional numa das suas “zonas de influência” tradicional». Por conseguinte, demonstrando que a reacção russa foi tudo menos improvisada, enfatiza as proactivas «manobras do Kremlin» antes, durante e depois do conflito, situando-as nos contextos geopolítico, geoestratégico e geoeconómico que lhe dão sentido: os efeitos resultantes da ascensão de Putin, a noção de «democracia soberana», as novas política externa e doutrina militar russas, os «interesses especiais» de Moscovo no seu «estrangeiro próximo», os efeitos da crise económico-financeira na Rússia, as relações com os Estados Unidos, a NATO e a UE, a aliança táctica com os «Bolivarianistas» da América Latina, a presença naval russa no Mediterrâneo ou o interesse russo no Árctico são aspectos aqui interligados com a «questão georgiana». O professor catedrático fornece neste trabalho, assim, informações e argumentos de sobra para, pelo menos, nos interrogarmos sobre os fundamentos daquela guerra, situando-a e explicando-a nas suas múltiplas dimensões.

Por outro lado, mesmo que para muitos pareça um problema remoto e um «terramoto» passageiro, a «guerra dos cinco dias» não podia deixar de ter profundas implicações geopolíticas nos níveis regional, macro-regional e global, implicações essas equacionadas igualmente em A Guerra dos Cinco Dias. De facto, empregando uma análise verdadeiramente multidimensional, Armando Marques Guedes reflecte sobre as reconfigurações na política internacional global e, mais concretamente, na bacia do mar Negro à luz do que considera «a invasão da Geórgia», avaliando não só os reposicionamentos da Federação Russa e de outros países «residentes» na área mas também da UE, dos Estados Unidos e da NATO, aludindo igualmente à respectiva «dança sincronizada» dos países europeus, ao regresso à Europa da «política de grandes potências» e de «zonas de influência», aos projectos «ocidentais» de expansão ou às políticas de gestão e segurança energéticas.

A pertinência e o interesse deste livro são salientados ainda pelo facto de as comunidades académicas, militares e político-diplomáticas parecerem desatentas à ressurgência da Rússia, às mutações e jogadas geopolíticas na macro-região do mar Negro à Ásia Central e, em particular, ao significado desta guerra na Geórgia. Manifestamente, Armando Marques Guedes é dos poucos entre nós que exaustivamente vem acompanhando e estudando aquelas temáticas, fazendo uso da sua ecléctica formação académica, de uma ampla variedade de experiências e de uma invulgar rede de contactos e conhecimentos, incluindo a ligação a personalidades e think tanks da região e várias anteriores palestras e publicações sobre temas relacionados. Foi dando continuidade a esse trabalho e desse acervo que retirou muitas das informações e ilações que apresenta em A Guerra dos Cinco Dias. A Invasão da Geórgia pela Federação Russa, empregando um método que apelida de «construtivismo desconstrutivista» e «institucional-construtivista». Como marca fundamental, o livro desconstrói para remontar cuidadosamente; descreve mas também analisa; provoca e contra-argumenta ao mesmo tempo que arrisca explicações; questiona mas responde; denuncia mas compreende.

E porque a realidade é uma construção permanente, particularmente na sequência de acontecimentos «detonadores» como esta guerra, Armando Marques Guedes já deu, entretanto, continuidade àquele estudo, desta feita em conjunto com Radu Dudau, director do Instituto Diplomático da Roménia, num novo ensaio esclarecedoramente intitulado The Regional Aftermath of the «Five-Day War»: Political, Economic, and Security Overheads of the conflict in Georgia. Neste novo trabalho, nesta altura ainda no prelo e a dar à estampa igualmente com a chancela do IESM, Marques Guedes e Dudau dão conta das reorientações político-diplomáticas, económicas e militares do Azerbaijão, da Turquia, da Arménia, do Irão, da Ucrânia e, claro, da Geórgia, na sequência dos impactos e, portanto, das oportunidades e dos riscos percepcionados e desencadeados pelo conflito de Agosto de 2008, relevando as dimensões da segurança e da energia e mapeando, em síntese, as metamorfoses geopolíticas em curso na Grande Região do Mar Negro. Trata-se de mais um trabalho de grande interesse e actualidade. Para melhor o compreender impõe-se, todavia, a leitura prévia e atenta de A Guerra dos Cinco Dias.