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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.25 Lisboa mar. 2010

 

A ilusão colectiva do colapso americano

 

Luís Pais Bernardo

Licenciado em História pela FCSH– UNL. Mestrando em Política Comparada no ICS– UL.

 

 

JOSÉ LUÍS FIORI, CARLOS DE AGUIAR MEDEIROS E FRANKLIN SERRANO

O Mito do Colapso do Poder Americano

Rio de Janeiro, Editora Record, 2008, 280 páginas

 

 

A 11 de Setembro de 2001, os Estados Unidos sofreram o primeiro ataque terrorista dentro das suas fronteiras continentais. Foi a primeira demonstração de que a maior potência global não auferia de imunidade total e de que o seu território continental era, de facto, atingível. Em suma, a queda do World Trade Center constituiu um choque para a estratégia americana, provocando uma reflexão prolongada em torno das assunções básicas do posicionamento americano dentro do sistema internacional. A ideia emergente de que o «poder» americano, essa esfera agregada composta pela situação estrutural e diacrónica dos Estados Unidos (cuja excepcionalidade tem sido tacitamente assumida, até, pelos seus opositores intelectuais e estratégicos mais aguerridos), estaria em declínio, transformou-se em tema de um debate cujo fim não está à vista.

De facto, tal como no caso de todas as potências historicamente tendentes a um posicionamento hegemónico, os Estados Unidos definem os termos de todo o debate em torno da topologia e da ciclicidade do sistema internacional. A maioria dos participantes neste debate tem defendido a reconfiguração do sistema internacional, que acarretaria a redistribuição (necessariamente assimétrica) do poder. O corolário lógico desta posição é a de que o poder americano teria entrado num processo de declínio adaptativo; alguns teóricos mais radicais, como Immanuel Wallerstein ou Giovanni Arrighi, investidos de um projecto epistemológico específico, identificaram – baseando-se na ideia de que o sistema internacional capitalista teria entrado num novo ciclo – uma trajectória declinante dos Estados Unidos.

 

TRÊS CAPÍTULOS, UMA PERSPECTIVA DE BASE

A obra de Fiori, Medeiros e Serrano contraria esta perspectiva. Com base no campo da economia política internacional, em que os três se especializaram, através de estadas prolongadas em Cambridge, o livro em análise é constituído por três capítulos estruturados como artigos independentes e de índole distinta, mas guiados por uma noção fundamental: o poder americano não está em declínio; pelo contrário: nos últimos anos do século xx e no princípio do século xxi, o poder político e económico dos Estados Unidos, em termos agregados, terá aumentado substancialmente e encontra-se em expansão.

 

O SISTEMA INTERNACIONAL COMO «UNIVERSO EM EXPANSÃO»

No primeiro desses artigos, intitulado «O sistema interestatal capitalista no início do século xxi», José Luís Fiori empreende uma crítica à ideia, propagada, por exemplo, pelos já referidos Wallerstein e Arrighi, de que o sistema internacional estaria em presença de uma «crise terminal» do poder americano. O autor afasta a hipótese de que o desenvolvimento histórico da economia política mundial possa ocorrer em termos de «ciclos hegemónicos» (pp. 12-22), declarando a impossibilidade de comparar a situação actual dos Estados Unidos a qualquer outro processo histórico, dada o seu carácter excepcional. Ou seja, para Fiori, o desenvolvimento do sistema-mundo dá-se de forma incremental. Por outras palavras, o sistema internacional é um «universo em expansão contínua» e os seus momentos conjunturais críticos são «explosões expansivas». Assim, o momento actual não é teórica ou empiricamente comparável a momentos análogos de outras dominações hegemónicas. Desse modo, o autor examina a realidade com base na noção de que a presença dos Estados Unidos, como actor contemporâneo de um processo histórico de muito longa duração, detém vantagens significativas sobre todos os outros actores. A própria presença da potência hegemónica é transformada em motor do sistema: a «pressão competitiva» observada em anos recentes é uma função dessa presença. A ascensão da China e da Rússia, recuperada da desestruturação enfrentada nos anos 1990, é um produto da nova corrida imperialista. Ao invés de um conflito declarado, o autor sustenta que a crescente interdependência financeira entre os Estados Unidos e a China será o fenómeno a ter em conta no início do século xxi (p. 68). A corrida imperialista não significará, para Fiori, um declínio do poder americano: será uma função da sua continuidade (pp. 60-68).

 

O PODER AMERICANO COMO ESTRATÉGIA ECONÓMICA

Franklin Serrano empreende uma análise mais especificamente económica do poder americano, reflectindo acerca dos padrões de acumulação capitalista e da dívida externa americana. Em «A economia americana, o padrão dólar flexível e a expansão mundial nos anos 2000», o autor sustenta que o maior obstáculo ao crescimento dos Estados Unidos não é um conjunto de desvantagens competitivas conjunturais, mas a excessiva desregulação do seu sistema financeiro, que também é a causa da crise actual. O fraco crescimento da procura e a crescente desigualdade na redistribuição de rendimento constituem o principal factor limitador da economia americana: o crescimento agregado da economia mundial, nos anos 1990, terá sucedido pelo incremento exponencial dos mercados internos asiáticos, ao mesmo tempo que o padrão dólar flexível continuava – e continua – a mediar todas as relações financeiras internacionais. Assim, e malgrado uma trajectória de crescimento aparentemente desvantajosa para os Estados Unidos, estes continuaram e continuam numa posição altamente privilegiada, apesar de se cristalizarem desigualdades internas e de, por exemplo, a capacidade de pressão dos trabalhadores estar em decréscimo acentuado (p. 163). A potência hegemónica continua a dominar, ipso facto, o acesso ao sistema financeiro mundial. Em suma, Serrano admite que existe, de facto, uma redução do poder agregado dos Estados Unidos, visível na crise do acesso ao crédito, mas que, longe de ter entrado em colapso, o poder da maior potência global continua assente em elementos estratégicos essenciais, especialmente a «moeda mundial» (pp. 110-134).

 

TRANSIÇÕES ECONÓMICAS E INFLUÊNCIA EXTERNA

O último artigo da obra, da autoria de Carlos Aguiar de Medeiros, empreende uma análise comparativa da transição económica na China e na Rússia. Em «Desenvolvimento económico e ascensão nacional: rupturas e transições na Rússia e na China», o objectivo é claro: demonstrar que a transição entre modelos económicos, nos dois países em causa, é explicável, em grande medida, pelo papel dos Estados Unidos. Embora defenda que as configurações internas de poder, a gestão dos desafios transicionais pelas elites governativas e a concepção estratégica das reformas devem ser consideradas variáveis explicativas, Medeiros atribui um papel essencial à evolução do sistema internacional definido pelas prioridades dos Estados Unidos. Ou seja, o desmoronamento da União Soviética terá sido, num grau maior do que é, geralmente, suposto, um efeito das políticas e decisões estratégicas americanas ao longo de um período relativamente extenso; a adaptação da Rússia a uma nova realidade foi feita num contexto de supremacia americana e incapacidade governativa das elites herdeiras da URSS. Na China, por outro lado, a transição iniciada por Deng Xiaoping e continuada, até ao presente, pelo Partido Comunista Chinês, ocorreu de forma controlada e num contexto de interdependência crescente entre a República Popular e os Estados Unidos. Assistimos, actualmente, a uma reaproximação entre Moscovo e Pequim. Em suma, e controlando as restantes diferenças, o factor diferenciador da transição económica na China e na Rússia é a sua relação com os Estados Unidos e a estrutura do sistema internacional.

 

UM EXAME EMPIRICAMENTE QUESTIONÁVEL

O resumo alargado dos artigos em causa revela-se necessário pela diversidade de argumentos construída a partir de uma única assunção: o poder dos Estados Unidos não entrou em colapso. Uma primeira aproximação crítica a esta obra obriga-nos a sustentar a hipótese de que o exame empírico não foi efectuado com as precauções necessárias para diminuir o enviesamento resultante das posições ideológicas e epistemológicas dos autores. Consideramos, de facto, que a assunção de posições claras é refrescante, num contexto académico em que a negação da interpretação se tornou, em si mesma, um axioma normativo e enviesado. Contudo, esta obra centra-se, em excesso, na inversão da análise empírica dotada de princípios básicos de cientificidade. Embora concebamos a hipótese de que o poder americano se tenha mantido incólume, parece-nos que os autores não efectuaram uma análise sistemática ou simétrica do desenvolvimento do sistema internacional. Por outras palavras, a estrutura da obra – que, repetimos, não pretende ser uma obra asséptica, é o produto de convicções devidamente fundamentadas (teorica e politicamente) – é problemática porque não existem falhas na confirmação empírica das proposições analíticas dos artigos; a coerência dos postulados teóricos com as inferências empíricas é artificial.

 

PARA UMA LEITURA CRÍTICA DA OBRA

Embora o artigo de Franklin Serrano seja menos sugestivo, dado limitar a afirmação mais clara de conclusões taxativas, é o mais bem-sucedido, propondo uma conclusão coerente com a análise empírica efectuada. José Luís Fiori, por outro lado, procura limitar a comparabilidade da situação actual dos Estados Unidos, afirmando que o seu declínio «relativo» esconde a manutenção de uma hegemonia agregada; a sua crítica à teoria dos ciclos hegemónicos e adopção da ideia de um «universo em expansão contínua» é, na nossa opinião, um artifício intelectual erigido no sentido de confirmar uma pressuposição. Carlos Medeiros, ao efectuar uma análise histórica comparativa das transições económicas na Rússia e na China, incorre no erro de atribuir uma significância arbitrária à influência e padrão de decisões estratégicas americanas; ainda assim, trata-se de um estudo descritivamente interessante.

Em conclusão, trata-se de uma obra cujo interesse advém da sua honestidade intelectual. Na medida em que os postulados teóricos e o posicionamento dos autores são claros, o leitor estará na posse das ferramentas necessárias a uma leitura crítica dos três artigos, que confirmam taxativamente as pressuposições dos autores, com a excepção relativa de Serrano. Nesse sentido, O Mito do Colapso do Poder Americano oferece uma interessante visão alternativa do sistema internacional contemporâneo, mas é uma leitura a efectuar com precaução e um olhar crítico muito atento.