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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.25 Lisboa mar. 2010

 

O Tratado de Lisboa e o paradoxo comunitário que linhas divisórias entre os estados-membros e a UE?

 

Luís Lobo-Fernandes

Professor catedrático de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho e titular da cátedra Jean Monnet de Integração Política Europeia.

 

 

STEPHEN C. SIEBERSON

Dividing Lines Between the European Union and its Member States: The Impact of the Treaty of Lisbon

The Hague, The Netherlands, T.M.C. Asser Press, 2008, 298 páginas

 

 

O livro de Stephen C. Sieberson, intitulado Dividing Lines Between the European Union and its Member States: The Impact of the Treaty of Lisbon, é uma das primeiras publicações de grande fôlego sobre o Tratado de Lisboa que entrou em vigor no passado dia 1 de Dezembro de 2009. Trata-se de um excelente trabalho que merece, por certo, uma audiência alargada de cientistas políticos, estudiosos das relações internacionais, juristas, economistas e decisores interessados no projecto europeu. O livro aborda de forma criteriosa um assunto da maior relevância – a delicada relação entre as competências próprias da União Europeia (UE) e os estados-membros – propiciando uma discussão detalhada sobre a questão de saber se o novo tratado altera as «linhas divisórias» anteriormente existentes ou seja, se a nova configuração institucional confere mais poder central a Bruxelas. Ora, a interessante imagem de «linhas divisórias» de Sieberson serve aqui como uma espécie de metáfora para toda a história da integração europeia. As soberanias europeias decidiram agrupar-se para benefício comum mas, como o autor argumenta, não querem perder a sua autonomia relativa nesse processo.

Sieberson, actualmente docente na Creighton University School of Law, examina o Tratado de Lisboa não seguindo a «sequência» das suas provisões, mas antes optando por uma série de passos lógicos organizados em torno de cinco grandes partes: as emendas aos tratados, o carácter da UE, instituições e processos de decisão, as áreas de acção própria da UE e uma conclusão. O esforço de Sieberson representa um contributo importante na clarificação das particularidades da vida institucional europeia, fazendo também referência à questão da democracia (existência de um demos).

A UE é um paradoxo empolgante. Não é um Estado, e nada leva a crer que se transforme em tal, mas os seus membros cometeram-se ao longo do tempo a compartilhar as suas soberanias, algo sem paralelo e mesmo «revolucionário» no seio do ciclo histórico vestefaliano. A UE opera num arco alargado de competências de «tipo estadual». Como refere Sieberson, a UE é uma construção híbrida com dimensões supranacionais significativas, sobretudo na área das regras económicas e monetárias, e da regulação europeia. O mercado interno é hoje o core da nova UE, tendo evoluído para um sistema dinâmico, consideravelmente complexo. Mas, a UE é bastante mais do que um mercado comum, com aspirações a refinar um novo modelo europeu de sociedade.

A apurada análise de Sieberson levanta interrogações fundamentais que vão ao encontro dos principais dilemas da integração e que, em rigor, permitem uma actualização particularmente útil da agenda da investigação sobre a integração europeia. Estas incluem, entre outras:

• Que autoridade deve ser atribuída às instituições europeias?

• Que instrumentos e procedimentos de decisão devem ser empregues?

• Qual o grau de influência dos estados-membros nas instituições?

• Numa UE, ainda em expansão, como deve ser gerido o mercado interno? Deverá ser contemplado um papel para os estados-membros na sua prossecução?

• Como podem as instituições europeias e os processos políticos ser mais democráticos? Pode a democracia «pura» existir na UE?

• Como devem ser conduzidas as relações externas, a segurança e a defesa?

 • Quanta integração é necessária e onde deve parar?

Não existem abordagens fáceis para todo este amplo espectro de questões. Como o autor sugere – para consideração dos leitores – duas dimensões contraditórias emergem de imediato: por um lado, o Tratado de Lisboa é na sua maior parte «fiel» aos tratados anteriores em preservar as linhas divisórias existentes entre a UE e os seus estados-membros; por outro, parece sinalizar uma «nova ordem legal», reduzindo os três pilares a dois, e criando uma UE robustecida com personalidade legal. O Tratado de Lisboa também adopta a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais como um documento com o mesmo valor legal dos tratados. Pode eventualmente argumentar-se que tais desenvolvimentos representam mais estilo do que substância. Sieberson sugere que a melhor posição é talvez considerar que existe alguma substância nas mudanças realizadas, o que poderá indiciar alguma alteração no rumo da integração. O autor explicita que ao conceder personalidade legal à ue, o Tratado de Lisboa oferece-nos uma entidade com estatura acrescida. Ademais, a eliminação do terceiro pilar alimenta o carácter «mais supranacional» da União.

É perceptível que o Tratado de Lisboa propõe um importante aumento da autoridade legislativa do Parlamento Europeu (PE). A extensão do processo de co-decisão – que passa doravante a ser a regra geral no processo legislativo – a mais de 50 domínios coloca o PE mais próximo do Conselho relativamente à grande maioria da legislação da UE. O Parlamento ganha uma nova centralidade na arquitectura institucional da UE, e adquire também novas competências importantes em matéria de orçamento e de acordos internacionais. Podemos dizer que o novo tratado expande, pois, a co-decisão ao torná-la parte do processo legislativo regular. As novas áreas de co-decisão incluem sectores-chave como a energia, transportes, regulação delegada, e o direito de estabelecimento. Também para lá do seu papel próprio em matéria do orçamento, o novo tratado confere poderes de «plafonamento» em várias categorias de despesas da UE. No que respeita ao objectivo de aumentar a transparência no funcionamento geral da União, o texto consagra o carácter público das reuniões, e oferece ao público o direito de livre acesso aos documentos do Parlamento. A Iniciativa dos Cidadãos prevê a possibilidade de um milhão de cidadãos – de entre uma população de cerca de 475 milhões – convidarem a Comissão a apresentar uma nova proposta. Estas provisões não têm precedentes nos tratados anteriores. Porém, deve sublinhar-se que continua a não ser contemplada a possibilidade de um direito de iniciativa legislativa por parte do PE.

Os responsáveis pelo novo tratado enfatizaram de forma bastante visível tanto os limites da acção da UE como a soberania dos estados-membros. Por exemplo, a impossibilidade do PE em desalojar o Conselho Europeu e o Conselho de Ministros dos centros críticos da decisão demonstra, de acordo com Sieberson, a ausência de um sistema completo de checks and balances a nível da UE, bem como a continuidade da afirmação do poder dos estados-membros (p. 165). Segundo Sieberson, tal como acontece com os tratados anteriores, o Tratado de Lisboa está permeado de linguagem que sublinha a proeminência e integridade dos estados-membros, bem como as suas competências dentro do sistema comunitário. Em particular, de acordo com o chamado principle of conferral (pp. 137-139) – que está agora mais claramente articulado no novo tratado – à União só será permitido actuar dentro dos limites da autoridade outorgada pelos estados-membros. Não obstante, a afirmação do Parlamento Europeu na arquitectura institucional parece ser agora um dado inultrapassável, contribuindo quer para a hibridez do edifício europeu, quer para acentuar aquilo que tenho designado de excepcionalismo comunitário.

Mas, como Sieberson assinala, um traço fascinante da União europeia é que o seu cunho fundacional tem sempre dois lados distintos. Na mesma linha, a clarificação das competências do novo tratado revela dois sentidos contrários: confirma a propriedade de alguma acção da União, e simultaneamente define os limites a essa mesma acção dando maior ênfase aos poderes dos estados-membros. Neste sentido, o Tratado de Lisboa vai efectivamente em direcções opostas. Poderíamos dizer que tal ambiguidade – que se adensa com o novo figurino – torna o paradoxo comunitário ainda mais obscuro. Perante esta solução (que constituiu o compromisso possível, segundo a esperada lógica do mínimo denominador comum), impõe-se todavia perguntar até que ponto será possível sustentar o elevado patamar de integração económica e monetária já alcançado, com um nível muito mais fraco de integração política, aquilo que Amitai Etzioni designou de «halfway supranationality»[i].

O tratado inclui, sublinha Sieberson, garantias consideráveis para os governos nacionais na forma de interpretações mais restritivas da acção das instituições comuns, no sentido de acautelar quaisquer «incursões» da União nas áreas que são prerrogativas dos estados-membros. A regra perene do interesse nacional reemerge de forma mais vincada na actual fase do processo europeu, com expressões inesperadas de competição estratégica entre os três grandes. Precisamente por isso, os estados-membros carregam agora uma maior responsabilidade política.

O alcance da construção europeia é deveras único, configurando uma garantia real de paz para todo o continente europeu. A investigação oportuna de Stephen C. Sieberson mostra como, e até que ponto, o Tratado de Lisboa é intrinsecamente similar à ue que lhe precedeu, mesmo quando as linhas divisórias entre os estados-membros e a União não são preservadas na sua totalidade. O futuro próximo propiciará seguramente respostas mais explícitas, que as proposições analíticas de Sieberson ajudam em todo o caso a antecipar.

 

NOTA

[i] Cf. Etzioni, Amitai – Political Unification Revisited: On Building Supranational Communities. Lanham, MD: Lexington Books, 2001, p. xxiv.        [ Links ]