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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.25 Lisboa mar. 2010

 

«Será que verei Lisboa?» Peregrinações de franceses no Processo Revolucionário em Curso

 

Vítor Pereira

Doutorado pelo Institut d’Etudes Politiques de Paris. É actualmente pós-doutorando da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH– UNL.

 

Entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, o processo revolucionário que ocorre em Portugal suscita um interesse invulgar em França. Centenas de franceses afluem a Portugal, sobretudo a Lisboa, para conhecer a Revolução, vivê-la e participar nela. Que fenómenos explicam este entusiasmo e esta peregrinação? Que procuram estes peregrinos em Portugal? Estes turistas singulares têm influência sobre o PREC? Este artigo descreve como esta peregrinação se inscreve no campo cultural francês do período final dos «anos 68», se articula com debates internos ao campo político francês e resulta da promoção de um novo turismo pelo esquerdismo cultural.

Palavras-chave: PREC, relações França-Portugal, Maio de 68, intelectuais

 

«Will I see Lisbon?». Frenchs’ Peregrination on the Revolutionary Process in Course

In Portugal, between April 25, 1974 and November 25, 1975, the revolutionary process elicited an unusual interest in France. Hundreds of Frenchs came to Portugal, mainly to Lisbon, to know, live and participate in the Revolution. Which reasons explain this enthusiasm and peregrination? What were the peregrines looking for in Portugal? Did these singular tourists have any influence on PREC? This article describes how the peregrination could be included on French cultural developments of 1968, and how it could be articulated with French internal and political debates.

Keywords: PREC, France-Portugal relationship, May 68, intellectuals

 

Entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, o processo revolucionário que ocorria em Portugal suscitou um interesse invulgar em França. Os meios de comunicação social, que até ao 25 de Abril de 1974 pouco interesse demonstravam por Portugal, passariam a cobrir pormenorizadamente os acontecimentos portugueses. Centenas de franceses vieram a Portugal, sobretudo a Lisboa, para conhecer a Revolução, vivê-la e participar nela. O auge desta atenção surgiu entre o 11 de Março de 1975 e Setembro do mesmo ano. Acabados o Verão e as férias, e Vasco Gonçalves já não sendo primeiro-ministro, a mediatização do PREC em França e as vindas de franceses diminuem. A 15 de Setembro de 1975, nas suas crónicas para o semanário socialista L’Unité, François Mitterrand notava que «Portugal está em descida de nível nas margens da imprensa audiovisual»[1]. É então entre Março e Setembro de 1975 que conflui em Lisboa o maior número de «peregrinos revolucionários». A maioria fica alguns dias ou algumas semanas. Alguns fazem várias idas e vindas entre Lisboa e Paris. Alguns irão mesmo residir vários meses em Portugal. Quem eram estes peregrinos? Maioritariamente das várias sensibilidades da esquerda, eram intelectuais (alguns dominantes no campo intelectual francês como Jean-Paul Sartre, Alain Touraine, Jean-François Revel ou Jean Daniel), homens políticos (como Pierre Mendès-France, François Mitterrand, Gaston Deferre, Antoine Blanca, Lionel Jospin, Georges Marchais, Alain Krivine, Daniel Bensaïd), sindicalistas, jornalistas, artistas, estudantes, militantes de grupos de extrema-esquerda. Obviamente, alguns pertenciam a categorias que não eram estanques.

Este artigo tentará descrever as modalidades da peregrinação revolucionária de franceses a Portugal durante o PREC e compreender os diferentes motivos que explicam este fenómeno singular nas relações entre Portugal e a França.

 

UMA REVOLUÇÃO ACOLHEDORA

Ao contrário da transição espanhola, verificou-se em Portugal uma ruptura profunda com as instituições e o pessoal político e administrativo da ditadura[2]. Depois do 25 de Abril de 1974, de um dia para o outro, não apenas os exilados puderam voltar a Portugal como também estrangeiros que até então teriam sido expulsos na fronteira (nos aeroportos sobretudo). Até ao 25 de Abril de 1974, a polícia política, que vigiava as fronteiras (a entrada, permanência e estada de estrangeiros em Portugal)[3], impedia a entrada da maioria dos estrangeiros cuja opinião política era contrária ao Estado Novo. Os estrangeiros que, em Portugal, manifestavam opiniões públicas julgadas inconvenientes pelas autoridades eram expulsos imediatamente. Foi o caso do coreógrafo Maurice Béjart, em Junho de 1968, depois de ter pedido ao público do Coliseu de Lisboa um minuto de silêncio em memória de Robert Kennedy, assassinado dois dias antes, e «contra todas as formas de violência e de ditadura»[4]. Assim, se muitos franceses vieram para Portugal, foi porque as barreiras que existiam antes do 25 de Abril de 1974 desapareceram. Indivíduos que não queriam visitar um país dominado por uma ditadura poderiam doravante vir. Alguns acompanharam antigos exilados ou emigrantes que voltavam para Portugal, caso de Rui Cabeçadas que regressou a Portugal a 30 de Abril de 1974 com o casal Gervais-Marx[5].

Em 1974 e 1975, registou-se também em Portugal uma crise do Estado[6]. As instituições que constituíam o Estado não colaboravam, o poder estava fragmentado entre várias entidades antagonistas, parte da população não acatava as ordens consideradas ilegítimas, a polícia, conotada com o regime ditatorial, quase não intervinha. Em suma, o Estado quase não funcionava. Esta crise do Estado levou a que o controlo da entrada e a estada de estrangeiros no País fosse reduzido. Os estrangeiros podiam ficar em Portugal, e por vezes irregularmente, sem temer a expulsão ou a monitorização da sua presença pelas instituições estatais. Primeiro, a Polícia Judiciária, que herdou as atribuições da Direcção-Geral de Segurança em Abril de 1974; depois a psp que recebeu estes mesmos poderes em Maio de 1974; e, por fim, a direcção do Serviço de Estrangeiros, criada em Novembro de 1974, não tinham o «poder infra-estrutural»[7] para fiscalizarem a presença de estrangeiros no País. Nesta perspectiva, no processo de «recuperação da capacidade coercitiva do Estado»[8], processo que se inicia em Setembro de 1975 e se reforça com o 25 de Novembro de 1975, as autoridades tentaram fazer respeitar a legislação sobre a estada dos estrangeiros em território português e expulsar estrangeiros considerados indesejáveis. Um despacho do ministro da Administração Interna, datado do 28 de Outubro de 1975, estabeleceu «algumas condições para uma maior eficácia no controlo de estrangeiros, cujas actividades, especialmente políticas, são causa de grandes preocupações»[9]. Um relatório do Serviço de Estrangeiros, de 1977, notava que as

«transformações políticas operadas em Portugal que abriram oportunidades de fixação a nacionais de outros países, perseguidos políticos, criaram um novo tipo de população que transporta consigo traumatismos diversos, reivindicações e um desejo de afirmação das suas opiniões políticas […]. As transformações políticas já referidas […] ofereceram condições favoráveis ao desenvolvimento de actividades contrárias aos interesses nacionais, umas de carácter político outras de natureza económica – especulativa, com feição criminosa»[10].

O fim da crise do Estado português fez emergir de novo uma pensée d’Etat sobre o estrangeiro tido como indesejável, como fonte de desordem pública, e ameaça à estabilidade política, económica ou social[11]. Ora, no período revolucionário, a presença de estrangeiros, que não fossem «simples» turistas, era desejada por parte da população portuguesa. A Revolução portuguesa foi acolhedora para os estrangeiros em geral e para os franceses em particular. Os milhares de portugueses que viviam em França em 1974 convidaram para Portugal amigos de trabalho, de militância, de estudo. Para estes exilados e emigrantes ser português constituía uma mais-valia nas interacções sociais. Portugal já não era automaticamente conotado com miséria, ditadura, guerra ou atraso. Pelo contrário, Portugal parecia estar na vanguarda e era sinónimo de dinamismo e de efervescência. Por isso, muitos portugueses tinham um certo orgulho em convidar franceses a conhecerem o seu país. João Freire recorda os «entusiasmos partilhados»[12] pela Revolução e as estadas em Portugal de amigos franceses, «correndo atrás dos eventos políticos que se sucediam»[13]. Para alguns era também uma forma de retribuição dos auxílios prestados no, muitas vezes, difícil período do exílio[14]. Assim, em Outubro de 1974, Álvaro Cunhal convida o secretário-geral do Partido Comunista Francês, Georges Marchais, ao 7.º Congresso do Partido Comunista Português, em sinal da «profunda gratidão dos comunistas portugueses para a solidariedade activa do Partido Comunista Francês relativamente aos comunistas, à classe operária e ao povo de Portugal, ao longo dos anos negros da ditadura fascista»[15].

Os próprios membros do Governo Provisório português convidaram individualidades para virem a Portugal e aí dar conselhos. Assim, em Setembro de 1974, José da Silva Lopes, ministro das Finanças, convidou, em nome do Governo português, o antigo presidente do Conselho francês e dirigente do psu, Pierre Mendès-France. Para Silva Lopes, o antigo ministro da Economia francês podia guiar o Governo português «na solução dos difíceis problemas que se colocam agora à economia portuguesa»[16]. Devido a problemas de saúde, Mendès-France só veio a Lisboa em Fevereiro de 1975. Ficou duas semanas e conversou com várias personalidades portuguesas, pouco antes do 11 de Março de 1975 e das nacionalizações.

As várias formações partidárias presentes na fluida configuração política também convidavam estrangeiros; algumas para obter recursos indispensáveis à sua sobrevivência, outras para as suas estratégias de conquista do poder. Nos congressos dos partidos que se foram multiplicando em 1974 e 1975 (muitos dos quais realizados primeira vez), a presença de estrangeiros era uma forma de obter um reconhecimento internacional, de filiar-se em famílias políticas transnacionais e de facilitar a canalização de recursos. No primeiro congresso do cds, no Porto, que foi cercado por elementos de extrema-esquerda, havia militantes franceses do partido Republicains Indépendants, como Dominique Bussereau, que preveniram o Presidente francês Valéry Giscard d’Estaing dos acontecimentos[17]. O Partido Socialista português, que organizou o seu primeiro congresso legal em Lisboa, entre 13 e 15 de Dezembro de 1974, também convidou várias individualidades francesas entre as quais Robert Pontillon, Lionel Jospin, Roger Fajardie e Antoine Blanca[18]. Em pleno Verão Quente, pouco depois da saída dos ministros do Partido Socialista do IV Governo Provisório e no mesmo dia da manifestação da Fonte Luminosa (19 de Julho), a Associação António Sérgio acolhia numerosos intelectuais e homens políticos franceses para debaterem os «problemas da construção do socialismo». Entre os sessenta e oito convidados estavam Jacques Attali, Charles Bettelheim, Jean-Pierre Chevènement, Jean-Pierre Cot, Régis Debray, Jean-Marie Domenach, Maurice Duverger, Georges Friedman, Roger Garaudy, Gisèle Halimi, Edmond Maire, Pierre Mendès France, Michel Rocard, Alain Touraine[19]. Embora nem todos comparecessem, estes convites demonstram que os actores políticos portugueses usaram os seus contactos com estrangeiros para reforçar as suas posições no campo político português[20]. Num período em que denunciava a suposta intenção do Partido Comunista Português em tomar o poder e impor um regime político influenciado pelas democracias populares da Europa de Leste, com este convite a intelectuais da esquerda não comunista europeia o Partido Socialista queria inserir, profundamente, Portugal na Europa, isto é, favorecer a implantação de uma democracia parlamentar. A proliferação das solidariedades europeias era uma arma da luta que o Partido Socialista travava com o Partido Comunista Português.

Alguns grupos de extrema-esquerda beneficiaram também da ajuda exterior, na perspectiva do internacionalismo. Nas suas memórias, o dirigente do partido trotskista Ligue Révolutionnaire Communiste (LCR), Alain Krivine, refere que «no Verão de 1974 e até Novembro de 1975, centenas de militantes franceses (e europeus), dentro dos quais militantes da Ligue e da IV Internacional, residiram em Portugal. O seu primeiro objectivo era ajudar a Liga Comunista Internacionalista, organização irmã da Ligue em Portugal»[21]. Um dos militantes da LCR, Gérard Filoche, recorda que «milhares de páginas foram escritas dia após dia para comentar, participar, seguir, ajudar, aconselhar e influenciar os militantes que actuavam em Portugal»[22]. Esta solidariedade resultava também das sociabilidades criadas em França, onde milhares de portugueses pertenciam a uma miríade de grupos de extrema-esquerda portugueses mas também franceses. A vinda de militantes franceses para Portugal traduzia muitas vezes a sequência de lutas iniciadas antes do 25 de Abril.

 

APROPRIAÇÕES

Para entender o interesse francês na Revolução portuguesa deve-se, contudo, estudar o campo intelectual e político francês que, nas décadas de 1960 e 1970, vive sob a influência da «internacional das referências»[23]. O estrangeiro – nos anos 1960, sobretudo o Vietname – é omnipresente no campo intelectual e político francês. Che Guevara, Fidel Castro, Mao e Ho Chi Minh são figuras que se inserem nos imaginários e debates intelectuais e políticos[24]. Para a esquerda, o combate contra o capitalismo e o imperialismo é mundial. Desta forma, existe uma solidariedade com os povos e grupos oprimidos. A luta contra a intervenção americana no Vietname e a solidariedade com o povo deste país mobilizou parte da juventude francesa antes de Maio de 68. A solidariedade contestatária que unia milhares de jovens europeus também se fazia através de viagens: muitos estudantes estrangeiros vieram a França participar nos acontecimentos de Maio de 68[25].

O interesse pela Revolução portuguesa resulta também da sua inserção numa temporalidade peculiar do campo intelectual e político francês: o pós-Maio de 68, ou «os anos 68», que para alguns historiadores franceses representam uma sequência que corre de 1962 até 1981[26]. A radicalização política e intelectual que nasce para alguns com o investimento militante durante a Guerra da Argélia, desemboca sobre uma vontade de mudança, de revolução. A extrema-esquerda, dividida entre várias correntes, conhece um crescendo nos anos 1960 e um apogeu entre os acontecimentos de Maio de 68 e 1971, ano marcado pela morte do militante maoísta Pierre Overney, às portas da Renault, em Boulogne-Billancourt. O PREC situa-se assim nos últimos anos da efervescência esquerdista em França. Aliás, o 25 de Novembro de 1975 pode ser visto como um dos marcos do refluxo esquerdista, os sonhos de revolução desaparecem. Com ele, o fracasso da revolução socialista parece patente. Assim, Dominique Pouchin, um dos enviados especiais do jornal Le Monde e antigo militante trotskista, designará a Revolução portuguesa como o último evento «leninista»[27].

Nas memórias de intelectuais ou de militantes franceses, a Revolução portuguesa é muitas vezes referida como um «outro Maio de 68». Danièle Gervais-Marx escreve que Portugal viveu em 1974-1975 «uma espécie de Maio de 68 ininterrupto»[28]. Jean Daniel assinala que no conjunto daqueles que foram para Portugal, havia os «herdeiros de Maio de 68»[29]. A Revolução dos Cravos é um marco decisivo para a geração que esteve «na primeira linha dos actores de Maio, ou estudantes ou que sentiram o seu efeito intelectual e político»[30]. Para aqueles que participaram nos eventos de Maio de 68, o que acontecia em Portugal era uma repetição, a oportunidade de viver outra vez o que tinha constituído um ponto alto nas suas existências. Para os que não viveram as jornadas de Maio, os mais jovens, por exemplo, a Revolução portuguesa era uma possibilidade de assistir ao que haviam falhado seis ou sete anos antes. Mas como já foi referido, o 25 de Novembro de 1975 assinala o fim de um ciclo cujo auge foi Maio de 68. Uma das biógrafas de Jean-Paul Sartre designa a Revolução dos Cravos como «o último espasmo romântico revolucionário europeu»[31].

 

O LABORATÓRIO PORTUGUÊS

A romantização posterior à Revolução portuguesa não deve esconder que a peregrinação política em Portugal foi objecto de um forte investimento político. Muitos militantes que vinham a Portugal acreditavam no sucesso da Revolução e queriam participar nesta façanha. Para Gérard Filoche, militante da Ligue Communiste Révolutionnaire, o PREC era um «laboratório, o teste com as dimensões reais, em directo, dos nossos debates em matéria de orientação revolucionária»[32]. Filoche descreve o PREC nas páginas do jornal Rouge, tira ilações sobre a Revolução com um R maiúsculo e debate com os outros grupos franceses da extrema-esquerda[33]. No debate que existe em França sobre a Revolução, a ruptura com o capitalismo, o poder popular, o controlo operário, Portugal é um campo de intervenção e um campo de estudo. Os artigos e os livros sobre a revolução portuguesa e sobre os caminhos da Revolução multiplicam-se[34]. O interesse era tão evidente que muitas das experiências desenvolvidas em Portugal eram influenciadas por intelectuais e políticos franceses.

Assim, Ernesto Melo Antunes confessou que as suas principais influências políticas e económicas vinham de França, nomeadamente da deuxième gauche, liderada por Michel Rocard no campo político, e pela CFDT no campo sindical, que tentava «conciliar a ideia de socialismo com a necessidade de a desligar da de colectivismo»[35]. Várias delegações da CFDT visitaram Portugal em 1974 e 1975. A Revolução foi o objecto de importantes debates no seio do sindicato francês que via com interesse as tentativas de autogestão mas que temia a falta de pluralidade sindical. Em Setembro de 1975, o Bureau National da CFDT recapitulava alguns pontos essenciais: «não pode haver uma hierarquia entre socialismo e liberdade»; «as transformações devem ser feitas pela maioria e não por uma vanguarda»; «a emancipação da classe operária» não pode ser feita sem um «sindicalismo construído livremente pelos trabalhadores nos lugares de trabalho» e o pluralismo e a legitimidade eleitoral devem ser reconhecidos[36].

 

O ESPELHO PORTUGUÊS

Porém, o interesse manifestado por Portugal era muitas vezes meramente instrumental. Nem sempre o que interessava era Portugal em si próprio, mas o uso de Portugal nos debates internos do campo intelectual e/ou político francês. Como sublinha Jean-François Sirinelli, «é também uma constante da vida política francesa durante todo o nosso século [xx] repercutir num eco franco-francês os tremores e os confrontos exteriores»[37]. Quais foram as controvérsias em que a Revolução portuguesa se inseriu? Sem querer ser exaustivo, podemos distinguir três.

Na primeira, digladiavam-se as várias correntes da extrema-esquerda que a partir da Revolução portuguesa queriam compreender os caminhos que conduziam ao sucesso da Revolução. Os acontecimentos portugueses trouxeram à tona várias perguntas. A extrema-esquerda deveria aliar-se ao Partido Comunista? Deveria apoiar-se nas Forças Armadas? Deveria favorecer-se o poder popular? Para muitos militantes da extrema-esquerda, o sucesso da Revolução era uma certeza. Maio de 68 tinha sido um ensaio geral, e a Revolução portuguesa iniciaria um efeito dominó: todos os países da Europa do Sul e a Europa no seu todo conheceriam também um movimento revolucionário. Como analisou um dos dirigentes da Ligue Communiste Révolutionnaire, Alain Krivine, «muitos militantes da esquerda radical esperavam que o desmoronamento das ditaduras espanhola e portuguesa provocaria um movimento de contestação que alimentaria uns e outros»[38].

O segundo debate em que foi inscrita a Revolução portuguesa foi a aliança entre partidos socialistas e partidos comunistas. Em França, muitas vezes se confundia François Mitterrand com Mário Soares, Georges Marchais com Álvaro Cunhal. Em 1972, o Partido Socialista francês, liderado por François Mitterrand, e o Partido Comunista, cujo secretário-geral era Georges Marchais, assinaram o programa comum e iniciaram a união da esquerda. Porém esta união não estava isenta de segundas intenções e de desentendimentos. Para muitos observadores, a união da esquerda foi usada por François Mitterrand para conquistar a predominância à esquerda à custa do Partido Comunista. Apesar do acordo, registaram-se vários desacatos entre os dois partidos, alguns deles suscitados pelos acontecimentos portugueses. Alex MacLeod sublinha a importação da Revolução portuguesa no debate entre o PCF e o PSF:

«é através dum prisma bem francês que o Partido Comunista Francês e o Partido Socialista olham agora para Portugal. Quando os comunistas franceses acusam Mário Soares de querer reduzir o PCP ao papel de uma força complementar, dirigem-se a François Mitterrand e ao seu próprio eleitorado para os informarem de que não perderam nada da sua tenacidade e que as coisas não ocorreriam da mesma forma em França. Por seu lado, o Partido Socialista vê no Partido Socialista Português o exemplo de um partido irmão que enfrenta, com sucesso, as pressões de um Partido Comunista Português particularmente tenaz.»[39]

A Revolução portuguesa podia assim comprometer a união da esquerda em França e dar argumentos à direita que atacava o Partido Socialista por aliar-se com o Partido Comunista. Ela podia também fragilizar ainda mais a posição do Partido Socialista Francês na Internacional Socialista. Com efeito, esta organização era dominada pelas social-democracias alemã, sueca e austríaca que recusavam a colaboração com partidos comunistas[40]. Ora, com a ajuda do partido de François Mitterrand, o Partido Socialista e o Partido Comunista Português tinham assinado um contrato político em 1973. Para o Partido Socialista Francês, este contrato político permitia o alargamento das teses que defendia. Exportando a sua estratégia, o Partido Socialista Francês esperava liderar um socialismo da Europa do Sul. Porém, os desentendimentos entre socialistas e comunistas portugueses, começando com o assunto da organização sindical, prosseguindo com o caso República e nos confrontos do Verão Quente, davam razão à social-democracia e enfraqueciam a estratégia de Mitterrand. No entanto, tanto o Partido Comunista Francês como o Partido Socialista Francês tentaram controlar os desacatos suscitados pelos eventos portugueses. E isto apesar de cada partido francês apoiar incondicionalmente o seu homólogo português.

O principal casus belli português que foi importado em França e que ameaçou as relações entre os dois principais partidos da esquerda francesa foi o caso República. A perda de controlo pelos socialistas do jornal punha o problema do socialismo e da liberdade de expressão. Mário Soares deu um relevo especial ao caso e favoreceu a sua instrumentalização internacional. A repercussão em França foi importante. A 23 de Junho de 1975, um jornal francês, o Quotidien de Paris, chegou a publicar uma tiragem do República no qual se encontrava um artigo, falsamente atribuído ao dirigente soviético Boris Ponomarev, que relatava a estratégia comunista de tomada de poder em Portugal. Não foi difícil ao PCF provar que este artigo era falso e que, usando o caso República, a «direita» queria enfraquecer a união da esquerda. No entanto, houve algumas disputas sobre o jornal português entre, por um lado, Claude Estier e François Mitterrand, e, por outro, Georges Marchais e Pierre Laurent.

No Verão Quente, com os assaltos às sedes do PCP e agressões de militantes comunistas[41], houve também um importante debate em França em torno do anticomunismo e da possibilidade de uma união entre partidos socialistas e comunistas. O PCP criticava o PSF por não denunciar as violências anticomunistas. O PSF, que apoiava Mário Soares, realçava o comportamento antidemocrático do PCP. Jean Daniel, director do Nouvel Observateur, semanário de esquerda que tinha uma certa influência em Portugal, nomeadamente junto de Mário Soares e de Melo Antunes, participou activamente neste debate. Jean Daniel veio várias vezes a Portugal depois do 25 de Abril, encontrando-se com Mário Soares e alguns oficiais do MFA. Por ocasião do caso República, defendeu a liberdade de expressão e criticou Georges Séguy, secretário da CGT, que via neste caso um simples conflito de trabalho. Em Agosto de 1975, Jean Daniel, nas páginas do Nouvel Observateur atacava o PCP e a «sua lógica bolchevique implicando a eliminação dos outros partidos operários»[42], justificando a aliança do psp com a direita para impedir uma ditadura comunista. Este artigo valeu-lhe uma dura resposta do jornal do PCF, L’Humanité, que argumentava que Daniel legitimava massacres anticomunistas. Parte da esquerda não comunista, casos de François Mitterrand, Michel Rocard, Edmond Maire, apoia Jean Daniel perante o ataque do PCF. Contudo, os dirigentes dos dois principais partidos da esquerda francesa tentam limitar as consequências dos eventos portugueses no seu relacionamento. Assim, a 13 de Agosto de 1975, o PSF, o PCF e o Mouvement des Radicaux de Gauche assinam um comunicado apelando «à aproximação e cooperação das forças democráticas e progressistas em Portugal»[43].

Por fim, a Revolução portuguesa constituiu-se como mais um episódio da oposição entre dois dos principais intelectuais franceses do século xx: Raymond Aron e Jean-Paul Sartre. Raymond Aron, «ao invés de muitos intelectuais, não fez a peregrinação a Lisboa»[44]. Todavia, acolheu com «alegria a Revolução dos Cravos»[45], apoiou o Partido Socialista de Mário Soares e alarmou-se nas colunas do Figaro da deriva ditatorial do MFA e do PCP. Antes de tudo, Aron defendeu a democracia liberal. Já Sartre, não querendo contentar-se com relatos indirectos e querendo ver Lisboa, veio a Lisboa pouco depois do 11 de Março de 1975, de 23 de Março a 6 de Abril de 1975. Acompanhado de Simone de Beauvoir, que já tinha vindo a Portugal em 1945[46], e do seu secretário Benny Lévy[47], Sartre, ficou hospedado no Hotel Mundial, visitou os principais lugares da radicalização do PREC, nomeadamente o RAL 1 onde, segundo Hervé Hamon e Patrick Rotman, é acolhido como o «messias»[48] e é fotografado com uma G3 na mão. Sartre também dá algumas conferências e visita fábricas em autogestão. Num diálogo com Simone de Beauvoir, Pierre Victor, Philippe Gavi e Serge July, Sartre confia ao jornal Libération as suas impressões face a esta revolução inédita e original. Pouco antes do 25 de Abril de 1975, Sartre demonstra a sua desconfiança perante o acto eleitoral:

«Penso que o que é essencial é o poder popular que está a formar-se. Esta assembleia não me inspira confiança: os partidos não colam a um movimento popular que pediria qualquer coisa. Os partidos em Portugal representam uma espécie de ligação estranha que não corresponde a nada. As fábricas em autogestão, por exemplo, são uma manifestação de massa muito mais entendida pelas Forças Armadas que pelos partidos que se opuseram a elas.»[49]

Como sabemos, Sartre sempre demonstrou uma hostilidade perante a democracia parlamentar. Em 1973, publicou um artigo com o título sugestivo: «Élections piège à com»[50]. Esta desconfiança perante a democracia parlamentar e as eleições explica a desilusão de muitos intelectuais franceses depois do 25 de Novembro de 1975. Para muitos, depois desta data, não há nada a esperar de Portugal. Por isso, como ironizava Raymond Aron, «Portugal, primeiro, socialista segundo Mário Soares, depois moderado, deixou de figurar na primeira página dos jornais europeus. Ninguém se preocuparia com Cuba se Fidel Castro tivesse criado uma democracia representativa e pluralista, pró-ocidental»[51].

 

UM KATMANDU EUROPEU

As viagens de franceses a Portugal inscrevem-se numa outra faceta do legado de Maio de 68: o esquerdismo cultural[52]. Para muitos jovens da classe média, a viagem é um acto político que exprime uma vontade de cortar com o conforto da sociedade capitalista, um desejo de conhecer-se a si próprio mas também conhecer novas culturas, novas formas de viver e novos horizontes[53]. Portugal inseria-se nas partidas para os países longínquos do Terceiro Mundo. De certo modo, Portugal parecia ser a réplica da Revolução cubana de 1959. Ali se encontra a revolução, o sol, um ambiente festivo[54]. Sinal da semelhança entre as duas revoluções: Sartre e Beauvoir visitaram ambas. Mas, ao contrário de Cuba, a vinda a Portugal estava nas possibilidades financeiras de um maior número de franceses. Pode vir-se para Portugal de avião, de comboio, de carro... Os voos charter que se multiplicam nesta época permitam aos estudantes vir de forma económica para Portugal. E o facto de Portugal ser abandonado pelos turistas «tradicionais», que preferem a ordem, constituiu um incentivo suplementar para muitos franceses. Com efeito, uma prática das viagens que se desenvolveu nos anos 1960 e 1970 pretendia romper com o turismo de massas. Alguns não queriam ser associados a «simples» turistas, pretendiam fugir das massas e das viagens organizadas[55]. Para aqueles que procuravam a distinção, Portugal é então o destino ideal como o comprova um artigo do Primeiro de Janeiro, a 19 de Março de 1975:

«os franceses, que tradicionalmente desprezavam as atracções turísticas de outros países, estão este ano vivamente interessados em visitar Portugal, exactamente por causa da transformação política que se opera. Os agentes de viagens de Paris dizem que numerosas organizações de esquerda, que detestavam o anterior regime português, pretendem agora organizar excursões para observar “in loco” o que se passa em Portugal.»[56]

A proximidade de Portugal e o custo acessível da viagem fazem então da viagem a Portugal um evento particular no conjunto das várias peregrinações políticas do século xx[57]. É possível a um cada vez maior número de pessoas deslocarem-se a Portugal do que viajar até Cuba, à União Soviética ou à China. Assim, em Portugal convergiram milhares de pessoas que relacionam política, lazer, descoberta de novas culturas e procuram novos encontros, num ambiente próximo do Maio de 68. Um dos expoentes desta nova forma de encarar a viagem, o Guide du Routard, criado em 1973, começa em 1977 a apresentar Portugal como destino. O guia convidava os turistas a rumar a Portugal e «verificar que ali se respira bem a liberdade»[58]. Na autobiografia de um dos criadores do guia, Philippe Gloaguen, a viagem a Portugal, nos anos 1974-1975, era apontada como o destino incontornável dos «globe-trotters da Internacional»[59]. Segundo Catherine Bertho-Lavenir, o Guide du Routard continha em si o paradoxo do suposto «novo turista» que nasce nos anos 1960-1970: o turista que não quer ser considerado como um turista mas para o qual «se organiza em massa viagens longe das massas»[60]. Assim são com voos charter, símbolos da massificação do turismo, que afluem a Lisboa peregrinos revolucionários. E, muitas vezes, é em grupo que viajam os turistas revolucionários porque a militância nos grupos de extrema-esquerda implicava muitas vezes um fenómeno de agregação em grupos onde não se separava política e lazer. A militância era uma actividade a tempo inteiro e o lazer, passado com os camaradas, fortalecia o habitus militante[61]. Jean-Christophe Cambadélis, na altura militante do grupo trotskista Alliance des Jeunes pour le Socialisme, relembra que «se organizou um verdadeiro tour-révolution. Partia-se […] para visitar a Revolução na Europa, com passagem obrigatória pelos estaleiros, lugar tão mítico como as fábricas Poutilov na Revolução Russa»[62].

Estes peregrinos revolucionários foram alvo das críticas que vinham tanto da esquerda como da direita. Jacques Frémontier, militante do PCF, denegriria estes turistas num livro traduzido em português por José Saramago. Frémontier retratava assim um dia desses turistas:

«às onze horas da manhã visitam de rompante uma creche popular. Almoçam no restaurante autogerido pelo Ritz, depois dão um salto à LUARou ao PRP-BR antes de tomarem o barco para Cacilhas, a caminho da clínica revolucionária. Pelas oito horas da noite, desfilam, de punho no ar, pelo Rossio, agitam bandeirolas em holandês ou em dinamarquês, depois de um último copo na esplanada da Pastelaria Suíça, vão jantar ao Bairro Alto com um guevarista de farda camuflada. Bebem vinho verde até ao amanhecer, deplorando amargamente que a revolução portuguesa não se tenha preocupado também em libertar os desejos... Conheço mesmo um grupo esquerdista italiano que afretou três Boeings... Felizes sonhadores, infelizes retóricos, que vêm – pelo preço de um charter – observar os leões na sua jaula... Receio muito que este exotismo nada mais lhes revele que os seus próprios fantasmas!»[63]

Esta crítica surge na continuidade da oposição do Partido Comunista, tanto francês como português, à extrema-esquerda nos dois países. Para os partidos comunistas, a extrema-esquerda era um perigo para a Revolução e um inimigo da classe operária. A 31 de Maio de 1974, Yves Moreau, no L’Humanité, considerava que os esquerdistas portugueses eram «o instrumento sonhado da reacção»[64] e faziam o jogo das forças reaccionárias. 

Esta ironia sobre a dimensão festiva e libertária da peregrinação revolucionária em Portugal foi também expressa nos jornais de direita. Para o jornal L’Aurore, favorável ao Estado Novo e oposto ao 25 de Abril, «Lisboa tornou-se o Katmandu do esquerdismo». Num artigo publicado a 28 de Julho de 1975, a ligação entre a revolução portuguesa e o Maio de 68 era claramente estabelecida: «Desde que Lisboa se tornou na Katmandu do esquerdismo, esta praça do Rossio, onde domina o soberbo Dom Pedro IV, assemelha-se com o pátio da Sorbonne em Maio de 68.»[65]

Uma outra particularidade distinguia a peregrinação política para Portugal nos anos 1974-1975 das outras que existiram no século xx: ela não era organizada por um regime que pretendia promover-se interna e externamente e controlar a movimentação dos peregrinos, deixando ver o que lhe convinha. O Estado Novo tinha organizado este tipo de viagens, convidando intelectuais de direita, organizando as suas estadas e esperando que, numa contradádiva, os viajantes escrevessem artigos laudatórios sobre Portugal. Estes artigos alimentariam a propaganda desenvolvida no exterior. Eles também serviriam de legitimação ao regime: se os estrangeiros elogiavam o Governo português, era porque ele era mesmo eficiente[66]. Em 1974-1975, não se verificou o mesmo processo porque o poder estava fragmentado. O que aconteceu foi que vários grupos convidaram pessoas e lhes mostraram o Portugal que queriam mostrar, esperando que lhes prestassem ajuda. Além disso, não se vinha a Portugal ver uma obra já feita mas um processo em evolução constante. Portugal situa-se assim a meio caminho entre a viagem revolucionária e militante do século xx e uma tradição mais recente, no seu aspecto maciço, da descoberta de outros mundos e culturas promovida pelo esquerdismo cultural.

 

CONCLUSÃO

A peregrinação revolucionária para Portugal representa um dos últimos momentos fortes da efervescência esquerdista que a França conheceu desde meados dos anos 1960. O 25 de Novembro português teve uma certa influência no refluxo da extrema-esquerda francesa[67]. Se a extrema-esquerda não desapareceu[68], o sonho da Revolução na Europa desanuviou-se. Alguns, como Benny Lévy, o secretário de Jean-Paul Sartre e um dos dirigentes da Gauche Prolétaire, decidiram, depois dos eventos portugueses, abandonar a militância[69].

O desejo de Sartre quando veio a Portugal era ver pelos seus próprios olhos os acontecimentos: «Será que verei Lisboa?»[70], perguntava-se. Como ele, muitos peregrinos queriam ultrapassar as intermediações, conhecer e viver directamente a Revolução. Porém, esta humildade não impediu uma visão deturpada dos eventos. Portugal era para muitos franceses um espelho onde eles se reviam. Alguns peregrinos analisaram este fenómeno. Serge July, que veio várias vezes a Lisboa para cobrir o PREC para o jornal Libération, no quinto aniversário do 25 de Abril de 1974, registava:

«na crónica dos anos de cinzas, esta revolução abortada tomou lugar cronológico entre o Chile e o Vietname. […] Com o detalhe que esta revolução não tinha nada de exótico, que ela se produzia sob o nosso olhar, na orla ocidental da Europa, a um dia de comboio de Paris, Milão e pouco mais de Frankfurt. A Europa esquerdista e contestatária, mas também a Europa centrista e liberal, a Europa comunista, a Europa socialista e a Europa fascista desfilaram em Lisboa, intrigando e pesando sobre os eventos, buscando os seus respectivos militares e partidos na tormenta de um processo revolucionário do qual precisamente a Europa se pensava protegida. Uma multiplicidade de estratégias europeias cruzou-se e enfrentou-se nas margens do Tejo, nem sempre, longe disso, no benefício dos portugueses que herdaram, além das dificuldades deles, dos fantasmas europeus, das teorias de uns e de outros.»[71]

Se este diagnóstico pessimista sobre a participação de estrangeiros no processo revolucionário português se deve, em parte, à própria trajectória de Serge July, também se encontra em autores portugueses que realçaram a miopia de muitos dos turistas revolucionários. César de Oliveira, adjunto do ministro da Comunicação Social a partir do final do mês de Março de 1975, que tinha entre as suas tarefas «receber e tentar explicar o que se passava em Portugal a personalidades estrangeiras, sobretudo jornalistas, que cruzavam o espaço do Palácio Foz»[72], recordou:

«eu tinha grandes dificuldades em falar e entender-me com os franceses, jornalistas ou não, com quem estabeleci contactos no Ministério da Comunicação Social. Normalmente tinha sempre a sensação de que chegavam ao Aeroporto, iam depositar as malas no hotel, vinham ao Ministério e ficavam logo a perceber tudo, opinando sobre os mais intrincados problemas, dando logo as soluções para os mais complicados imbróglios que nós próprios, em Portugal, mesmo aqueles que mais por dentro estavam dos problemas, não conseguíamos perceber adequadamente.»[73]

No entanto, não se pode concluir, como sugerem estes textos escritos posteriormente, que o interesse por Portugal foi sempre meramente instrumental e que é impossível conhecer verdadeiramente um país estrangeiro. Houve por parte de alguns franceses um interesse genuíno nos acontecimentos portugueses, os quais não eram desligados de ideários e lutas abrangentes. Ajudar a Revolução em Portugal era para muitos favorecer a revolução mundial. Na história das peregrinações políticas do século xx, a viagem a Portugal tem uma especificidade. Ela não foi feita exclusivamente por elites políticas e/ou intelectuais, acostumadas aos testemunhos e à instrumentalização dos eventos estrangeiros no quadro das suas estratégias nacionais. Afluíram também a Lisboa milhares de «turistas revolucionários anónimos» que, no ambiente pós-Maio 68, acreditavam que uma «outra sociedade» ia nascer em Portugal e espalhar-se além fronteiras.

 

NOTAS

[1] Mitterrand, François – L’abeille et l’architecte. Paris: Flammarion, 1978, p. 76.

[2] Pinto, António Costa – «Authoritarian legacies, transitional justice and State crisis in Portugal’s democratization». In Democratization. Vol. 13, N.° 2, 2006, pp. 173-204.

[3] Cf. Pimentel, Irene Flunser – A História da PIDE. Lisboa: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2007; Chalante, Susana – Estado, Estrangeiros e Fronteiras no Início do Estado Novo (1927-1939). Tese de mestrado em História, iscte, 2009.

[4] Lopes, Joana – Entre as Brumas da Memória. Lisboa: Ambar, 2007, p. 118.

[5] Gervais-Marx, Danièle – Les Œillets du souvenir. Biarritz: Atlantica, 2006, p. 20.

[6] Palacios Cerezales, Diego – O Poder Caiu na Rua. Crise de Estado e Acções Colectivas na Revolução Portuguesa 1974-1975. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003.

[7] Mann, Michael – «The autonomous power of the state: its origins, mechanisms and results». In Archives Européennes de sociologie. Vol. 25, 1984, pp. 185-213.

[8] Palacios Cerezales, Diego – Estado, régimen y orden público en el Portugal contemporaneo (1834-2000). Tese de doutoramento, Universidad Complutense de Madrid, 2008, p. 515.

[9] Despacho do ministro da Administração Interna e do ministro das Finanças, 19 de Novembro de 1975, ANTT/MAI, Gabinete do Ministro, PS 24, cx. 475, pasta 2.

[10] Relatório do Serviço de Estrangeiros redigido pelo coronel de Infantaria José de Vilhena Ramires Ramos, 30 de Abril de 1977 (AMAI, Gabinete do Ministro, cx. 534). Este processo foi consultado antes da remessa do arquivo do Ministério da Administração Interna à Torre do Tombo. As cotas podem eventualmente ser agora diferentes.

[11] Cf. Sayad, Abdelmalek – «Immigration et “pensée d’Etat”». In Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 129, 1999, pp. 5-14; Spire, Alexis – Accueillir ou reconduire. Enquête sur les guichets de l’immigration. Paris: Raisons d’agir, 2008, p. 10.

[12] Freire, João – Pessoa Comum no seu Tempo. Memórias de Um Médio-Burguês de Lisboa na Segunda Metade do Século XX. Porto: Afrontamento, 2007, p. 379.

[13] Ibidem.

[14] Sobre o exílio português em França entre 1958 e 1974, cf. Pereira, Victor – L’exil politique portugais en France de 1958 à 1974. Tese de mestrado em História, Université de Rouen, 2000.

[15] Macleod, Alex – La Révolution inopportune. Les partis communistes français et italien face à la Révolution portugaise (1973-1975). Montréal: Nouvelle Optique, 1984, p. 145.

[16] Carta do ministro das Finanças, José da Silva Lopes, a Pierre Mendès-France, 4 de Janeiro de 1974, Arquivo do Ministério das Finanças, Correspondência do Ministro das Finanças, pasta 3.

[17] Pautard, André – «Portugal: les masques tombent». In L’express. 3 de Fevereiro de 1975, p. 54.

[18] «Portugal: un parti responsable». In L’Unité. 20 de Dezembro de 1974.

[19] Lista estabelecida segundo o convite enviado a Pierre Mendès-France.

[20] Sobre a utilização de apoios estrangeiros por parte do Partido Socialista português, cf. Castro, Francisco – «A CEE e o PREC». In Penélope. N.º 26, 2002, pp. 123-157; Eisfeld, Rainer – «Influências externas sobre a revolução portuguesa: o papel da Europa Ocidental». In Ferreira, Eduardo de Sousa, Opello Jr, Walter C. (eds.) – Conflitos e Mudanças em Portugal. 1974-1984. Lisboa: Teorema, 1985, pp. 79-99.        [ Links ]

[21] Krivine, Alain – Ca te passera avec l’âge. Paris: Flammarion, 2006, p. 124.

[22] Filoche, Gérard – 68-98, histoire sans fin. Paris: Flammarion, 1998, p. 221.

[23] Sirinelli, Jean-François, e Ory, Pascal – Les Intellectuels en France. De l’affaire Dreyfus à nos jours. Paris: Armand Colin, 1986.

[24] Frank, Robert – «Imaginaire politique et figures symboliques internationales: Castro, Ho, Mao et le “Che”». In Dreyfus-Armand, Geneviève, Frank, Robert, Levy, Marie-Françoise, e Zancarini-Fournel, Michelle (eds.) – Les années 68. Le temps de la contestation. Bruxelas: Complexe, 2000, pp. 31-47.

[25] Jobs, Richard Ivan – «Youth movments: travel, protest, and Europe in 1968». In The American Historical Review. Vol. 114, 2009, pp. 376-404.

[26] Cf. Artieres, Philippe, e Zancarini-Fournel, Michelle (eds.) – 68. Une histoire collective 1962-1981. Paris: La Découverte, 2008.

[27] Pouchin, Dominique – «O último teatro leninista». In Mesquita, Mário, e Rebelo, José (eds.) – O 25 de Abril nos Media Internacionais. Porto: Afrontamento, 1994, pp. 179-183. Ver também o prefácio que Pouchin escreveu para o livro de Gérard Filoche (Filoche, Gérard – Printemps portugais. Paris: Actéon, 1984, pp. 9-14).

[28] Gervais-Marx, Danièle – Les Œillets du souvenir, p. 132.

[29] Daniel, Jean – L’ère des ruptures. Paris: Grasset, 1979, p. 224.

[30] Winock, Michel – «Les générations intellectuelles». In Vingtième Siècle. Revue d’Histoire. N.º 22, 1989, pp. 17-38, p. 34. Sobre as gerações que fizeram e foram feitas pelo Maio de 68, ver também Brillant, Bernard – Les clercs de 68. Paris: puf, 2003.

[31] Cohen-Solal, Annie – Sartre: 1905-1980. Paris: Gallimard, 1985, p. 645. 

[32] Filoche, Gérard – 68-98, histoire sans fin, p. 200.

[33] Cf. «Le Portugal et nos censeurs». In Libération, 23 de Maio de 1975.

[34] Ver, por exemplo, Bensaid, Daniel, Rossi, Carlos, Udry, Charles-André – Portugal: la Révolution en marche. Paris: Christian Bourgeois, 1975; Semprun, Jaime – La guerre sociale au Portugal. Paris: Champ libre, 1975; Faye, Jean-Pierre, Le Portugal d’Otelo: la révolution dans le labyrinthe. Paris: Lattès, 1976; Fremontier, Jacques – Portugal: les points sur les i. Paris: Editions sociales, 1976; Munster, Arno – Révolution et contre-Révolution au Portugal. Paris: Galilée, 1977.

[35] Cruzeiro, Maria Manuela – Melo Antunes. O Sonhador Pragmático. Lisboa: Editorial Notícias, 2004, p. 148.

[36] «Position du Bureau National sur la situation syndicale portugaise», sessão du Bureau National de CFDT, a 5 e 6 de Fevereiro de 1975, Arquivos da CFDT, 8H129.

[37] Sirinelli, Jean-François – Intellectuels et passions françaises. Manifestes et pétitions au XXe siècle. Paris: Fayard, 1990, p. 32.

[38] Krivine, Alain – Ca te passera avec l’âge, p.132.

[39] Macleod, Alex – La Révolution inopportune. Les partis communistes français et italien face à la Révolution portugaise (1973-1975), p. 170.

[40] Sobre a posição do Partido Socialista Francês na Internacional Socialista e as consequências da Revolução portuguesa neste posicionamento, cf. Estier, Claude – J’en ai tant vu. Mémoires. Paris: Le Cherche Midi, 2008; Devin, Guillaume – L’Internationale Socialiste. Histoire et sociologie du socialisme international (1945-1990). Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1993, pp. 190-191; Kassem, Fadi – Les socialistes français face à la Révolution Démocratique au Portugal de 1974 à 1981. Tese de mestrado em Relações Internacionais, Institut d’Etudes Politiques de Paris, 2007.

[41] Palacios-Cerezales, Diego – «Um caso de violência política: o Verão Quente de 1975». In Análise Social. Vol. 37, N.º 165, 2003, pp. 1127-1157.         [ Links ]

[42] Renou-Nativel, Corinne – Jean Daniel. 50 ans de journalisme. De l’Express au Nouvel Observateur. Mónaco: Editions du Rocher, 2005, p. 334.

[43] Kassem, Fadi – Les socialistes français face à la Révolution Démocratique au Portugal de 1974 à 1981, p. 80.

[44] Aron, Raymond – Memórias. Lisboa: Guerra e Paz, 2007 [1983], p. 513.

[45] Ibidem.

[46] Monteiro, Cecília Maria da Silva – Simone de Beauvoir e Portugal. Tese de mestrado em Cultura Francesa, Universidade de Aveiro, 2004.

[47]Antigo dirigente da Gauche Prolétarienne.

[48] Hamon, Hervé, e Rotman, Patrick – Génération, tomo ii, Les années de poudre. Paris: Seuil, 1988, p. 607.

[49] «Sartre et le Portugal: Les trois pouvoirs. Le MFA, les partis, l’initiative populaire». In Libération, 26 de Abril de 1975.

[50] Sartre, Jean-Paul – Situations X. Paris: Gallimard, 1976, pp. 75-87.

[51] Aron, Raymond – Memórias, p. 515.

[52] Touchard, Jean – La gauche en France depuis 1900. Paris: Seuil, 1977, p. 347.

[53] Cf. Bertho-Lavenir, Catherine – La roue et le stylo. Comment nous sommes devenus touristes. Paris: Odile Jacob, 1999; Rauch, André – «Les usages du temps libre». In Rioux, Jean-Pierre, e Sirinelli, Jean-François (eds.) – La culture de masse en France de la Belle Époque à aujourd’hui. Paris: Fayard, 2002, pp. 352-409.

[54] Sobre a Revolução cubana e os intelectuais franceses, cf. Verdes-Leroux, Jeannine – La lune et le caudillo. Le rêve des intellectuels et le régime cubain (1959-1971). Paris: Gallimard, 1989; Furet, François – Le passé d’une illusion. Essai sur l’idée communiste au xxe siècle. Paris: Robert Laffont/Calmann-Lévy, 1995.

[55] Sobre esta distinção, ver também Pattieu, Sylvain – «“Nous n’avions rien à Katmandou”. Production militante et usages populaires du tourisme». In Actes de la Recherche en Sciences Sociales. N.º 170, 2007, pp. 88-101.

[56] Citado em Monteiro, Cecília Maria da Silva – Simone de Beauvoir e Portugal, p. 124.

[57] Sobre estas peregrinações políticas ver, além das obras já citadas de François Furet e Jeannine Verdès-Leroux, Hourmant, François – Au pays de l’avenir radieux. Voyages des intellectuels en URSS, à Cuba et en Chine populaire. Paris: Aubier, 2000; Mazuy, Rachel – Croire plutôt que voir? Voyages en Russie Soviétique (1919-1939). Paris: Odile Jacob, 2002.

[58] Gloaguen, Philippe, e David, Michel – Guide du routard. Vol. 1, Europe. Paris: Hachette, 1977, p. 113.

[59] Gloaguen, Philippe, e Trapier, Philippe – Génération routard. Paris: Jean-Claude Lattès, 1993, pp. 228-229.

[60] Bertho-Lavenir, Catherine – La roue et le stylo. Comment nous sommes devenus tourists, p. 403.

[61] Yon, Karel – «Modes de sociabilité et entretien de l’habitus militant. Militer en bandes à l’ajs-oci dans les années 1970». In Politix. N.º 70, 2005, pp. 137-167.

[62] Cambadelis, Jean-Christophe – Le chuchotement de la vérité. Paris: Plon, 2000, p. 97.

[63] Fremontier, Jacques – Portugal: os pontos nos ii. Lisboa: Moraes editora, 1976, p. 206.

[64] Moreau, Yves – «Les gauchistes de Lisbonne». In Humanité. 31 de Maio de 1974, p. 1.

[65] Puyalte, Francis – «Lisbonne est devenu le Katmandou du gauchisme». In L’Aurore. 28 de Julho de 1975.

[66] Sobre estes usos dos textos de autores estrangeiros sobre Portugal, cf. Rebelo, José – Formas de Legitimação do Poder no Salazarismo. Lisboa: Livros e Leituras, 1998.

[67] Hourmant, François – Le désenchantement des clercs: figures de l’intellectuel dans l’après-mai 1968. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 1997.

[68] Cf. Pechu, Cécile – Droit au logement, genèse et sociologie d’une mobilisation. Paris: Dalloz, 2006, pp. 183-188.

[69] Hamon, Hervé, e Rotman, Patrick – Génération, tomo ii, Les années de poudre, p. 608.

[70] Beauvoir, Simone de – A Cerimónia do Adeus. Lisboa: Bertrand, 1986 [1981], p. 78.

[71] July, Serge – «Le traumatisme portugais». In Libération. 25 de Abril de 1979.

[72] Oliveira, César – Os Anos Decisivos. Portugal 1962-1985, Um Testemunho. Lisboa: Presença, 1993, p. 168.

[73] Ibidem, p. 170. Por seu lado, nas suas memórias, Maria Filomena Mónica partilha esta análise: «Vieram académicos de universidades prestigiadas, os quais aproveitaram a ocasião para escrever artigos em que exibiam a sua total incompreensão relativamente ao que se passava» (Mónica, Maria Filomena – Bilhete de Identidade. Lisboa: Alêtheia, 2005, p. 325).