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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.25 Lisboa mar. 2010

 

A Defesa Europeia em Lisboa

 

Bruno Cardoso Reis

Doutorado pelo King’s College da Universidade de Londres, é investigador de pós-doutoramento no ICS– UL e docente convidado na FCSH-UNL.

 

Como fica a segurança e defesa da UE no Tratado de Lisboa? Esta é uma área tradicionalmente de difícil integração europeia, pois está entre os poderes fundamentais do Estado soberano moderno. Por outro lado, os custos crescentes da defesa, um mundo em que as ameaças podem ser mais difusas, mas não são menos reais, e a crise económica e financeira tornam mais premente e mais provável mudanças neste campo. Quais são os avanços que o Tratado de Lisboa vem trazer no campo da segurança e defesa, quais serão os desafios da sua implementação? Estas são as questões fundamentais com que se debate este texto.

Palavras-chave: União Europeia, Tratado de Lisboa, segurança, defesa

 

European Defense in Lisbon

How are security and defense dealt with in the Lisbon Treaty? Traditionally this is an area of difficult integration due to the fact that it is here that reside the main powers of the modern sovereign state. The growing defense costs, a world with more diffuse threats, and the economic and financial crisis make changes in this domain more necessary and probable. What is the extent of novelty and the challenges of the Lisbon Treaty regarding security and defense? These are the main questions debated on this article.

Keywords: European Union, Lisbon Treaty, security, defense

 

 

There are grave doubts at the largeness of the land, and whether one Government can comprehend the whole.

Henry Adams

 

Poucos contestarão o papel notável que o processo de integração europeia teve na questão da segurança e defesa no interior da própria Europa. Foi com a União Europeia (UE) e as suas antecessoras, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), e a Comunidade Económica Europeia (CEE), que se deu uma transformação fundamental, e sem precedentes, das relações entre os estados europeus. Resolveram definitivamente – ou pelo menos tão definitivamente quanto é possível nos assuntos humanos – o problema terrível da guerra entre estados europeus. Foi a integração europeia que conseguiu a solução do maior problema em termos da segurança europeia – a questão alemã. Como é que seria possível a existência de uma Alemanha unida sem essa unificação do maior grupo populacional no centro do continente ser o prelúdio de um predomínio imperial germânico no resto da Europa?

Porém, a grande questão nestes últimos anos tem sido outra. Tal é resultado, aliás, deste notável sucesso. Será que a Europa conseguirá consolidar suficientemente as suas instituições de modo a poder projectar eficazmente o seu enorme potencial de poder no exterior, na sua vizinhança e globalmente? Terá capacidade de desenvolver não só um «poder suave» de atracção ao nível económico, cultural, de modelo político, mas também um «poder duro» de coacção, que poderá ser necessário para a defesa pela força dos seus interesses e valores em zonas vizinhas ou até mais distantes?

Há grandes dúvidas de que um território tão vasto como o da UE possa ter uma forma de governação única, particularmente no campo da defesa. Mas foi assim também com os Estados Unidos da América durante boa parte do século xix, e mesmo nas décadas iniciais do século xx, com um potencial enorme, nomeadamente económico, mas com pouco «poder duro» capaz de dar impacto às suas posições nas grandes questões internacionais. E isto como resultado da recusa dos estados que compunham a federação em conceder ao poder federal centralizado os recursos militares necessários a uma capacidade de coacção global, não por falta dos mesmos, mas por desejo de evitar um crescimento do poder e do orçamento de Washington. É isso que nos recorda a citação em epigrama a este artigo, escrita por um dos mais ilustres estadistas e historiadores americanos, membro de uma das grandes dinastias políticas norte-americanas.

Hoje, há quem se esqueça que a experiência do federalismo norte-americano era algo de politicamente inaudito e de sucesso improvável até se ter tornado lenta e dificilmente numa realidade. E, no entanto, depois de problemas vários, inclusive uma guerra civil terrivelmente sangrenta, hoje os Estados Unidos são a mais importante potência a nível global, em particular no campo militar. Será que a UE se transformará nos Estados Unidos? Não creio, pelo menos não necessariamente e não imediatamente. Mas é uma experiência política igualmente inaudita. Ela é particularmente imprevista num continente como a Europa que tinha visto nascer e crescer o modelo do Estado moderno que agora a UE vem em parte colocar em causa.

Claro que esta qualificação é fundamental: a UE em parte retira poderes aos estados, mas em parte também corresponde aos interesses dos estados europeus e foi criada e tem sido gerida por eles precisamente com esse fim. Ora, entre os poderes fundamentais do Estado soberano moderno está o de reservar apenas para si o uso da força. Quais são os desafios específicos que tal coloca no campo da segurança e defesa? Quais as implicações nesse quadro dos acordos alcançados e firmados no Tratado de Lisboa, que entrou em vigor há apenas dois meses? Estas são as questões fundamentais com que se debate este texto.

Seria tentadoramente simples, mas também rigoroso, responder que ainda é cedo de mais para sabermos. Afinal, se o primeiro-ministro chinês Zhou Enlai podia dizer isso da Revolução Francesa que teve lugar em 1789, claramente isso faz sentido relativamente a um tratado com apenas um par de meses de existência. É sobretudo assim porque qualquer tratado ou lei constitucional é moldado sobretudo pela fase da sua implementação. As normas definem princípios gerais. Quando essas normas são tão complexas e numerosas como as do Tratado de Lisboa, o campo de manobra para a interpretação é muito grande. Mais, o Tratado de Lisboa cria novas instituições. Ora, como qualquer bebé, estas novidades institucionais por natureza serão profundamente moldadas pelos seus primeiros anos de existência. A tudo isto acresce o facto de a UE não estar sozinha no mundo, e portanto haver que contar com os imprevistos e crises que podem alterar o contexto da segurança internacional; assim como com dados estruturais fundamentais do sistema internacional, nomeadamente a unipolaridade particularmente evidente no campo da defesa, com os Estados Unidos a gastarem sozinhos mais de metade da soma total dos orçamentos de defesa a nível global, e a serem uma presença incontornável na segurança europeia desde 1945 directamente e por via da NATO.

Iremos, portanto, nas páginas seguintes abordar brevemente quatro temas fundamentais:

i)                  O que é que diferentes estados europeus pretendem de uma defesa europeia?

ii)                  Quais as normas e instituições mais relevantes do Tratado de Lisboa neste ponto?

iii)                 Quais as crises e ameaças que poderão testar a segurança europeia?

iv)                 Qual o impacto em tudo isto da relação de segurança da Europa com os Estados Unidos, e vice-versa?

 

ESTADOS EUROPEUS E DEFESA EUROPEIA

O Tratado de Lisboa foi consistentemente apresentado pelos líderes políticos dos estados europeus – que o promoveram durante anos de incerteza e, por vezes, investindo no processo algum capital político – como uma necessidade fundamental para lidar com uma preocupação com as dificuldades de a Europa se afirmar como um actor credível no campo da política internacional.

É claro que neste campo há que ter em conta a mais que provável necessidade política de inflacionar o valor do tratado para garantir a sua aprovação por parlamentos e referendos. Um fenómeno político bem estudado, por exemplo, no caso da política externa norte-americana.

Todos os dirigentes dos estados europeus parecem estar de acordo em desejar uma Europa mais poderosa internacionalmente. Mas daí a estarem de acordo quanto ao que isso implica em termos de cedência de poderes seus a novas instituições europeias, ou mesmo de aceitarem um grau de cedência necessária a uma efectiva coordenação intergovernamental que tire pleno partidos das possibilidades abertas pelo tratado vai um espaço que facilmente se preenche de dúvidas.

É verdade que em termos da abordagem, assim como da agenda, das prioridades, e do sentido desta política de defesa europeia se pode apontar para a Estratégia Europeia de Defesa, recentemente reafirmada no essencial pelo relatório de sua revisão. Mas será tal suficiente para dar uma definição pertinente face aos desafios de segurança actual e futura?

Para tornar a tarefa mais fácil, procuramos dividir os estados europeus em grupos quanto às suas tradições e preocupações estratégicas, sendo que estes grupos não são, como será fácil de perceber de um modo geral mutuamente exclusivos, havendo claramente várias sobreposições:

1. Atlantistas – São em grande número e abrangem praticamente todos os estados-membros da UE que pertencem à NATO, mas particularmente os mais pequenos e mais periférios, que consideram uma boa relação com os Estados Unidos como essencial para a segurança europeia, e preocupam-se com preservar o acquis doutrinal, institucional e de segurança colectiva dessa organização. Os exemplos vão de Portugal à Grã-Bretanha, à Dinamarca ou à Polónia.

2. Neutros – São um grupo menor mas importante depois do alargamento de 1995 que incorporou estados que antes tinham procurado ficar à margem da Guerra Fria, e que mantêm uma grande reserva relativamente a usos puramente estratégicos, e não acima de tudo normativos, das suas Forças Armadas e uma desconfiança face a uma lógica de aliança. Os exemplos são a Irlanda, a Áustria, a Suécia e a Finlândia;

3. Europeístas – São um grupo não necessariamente incompatível com os dois anteriores, mas que agrupa mais propriamente os estados que vêem na promoção de uma defesa europeia uma prioridade, caso da França, da Bélgica, ou do Luxemburgo.

4. Grandes – Sendo mais populosos e dotados de maiores recursos geralmente terão maior potencial militar, isso é verdade mesmo no caso da Alemanha, que o usou com grandes reservas mas não deixa de estar lá em quantidades impensáveis noutros casos.

5. Pequenos – Têm mais dificuldade em multiplicar a sua participação em várias missões e, portanto, tenderão a ser mais selectivos; por outro lado, sentindo-se mais vulneráveis, têm de um modo geral algum interesse em cooperar com os demais no campo da segurança, mesmo que o façam com meios limitados.

6. Ex-impérios – São estados com uma tradição de envolvimento em zonas fora da UE, e portanto potencialmente com mais interesses e maior disponibilidade para alagar a esfera de acção da defesa europeia para lá de um sentido restrito de defesa territorial europeia.

7. Leste – Estes estados têm um passado comum de subordinação forçada ao poder russo soviético, além do seu interesse geopolítico na estabilização da sua vizinhança próxima que os leva a valorizar elementos de defesa territorial menos urgente noutros casos, e uma concepção da defesa europeia centrada sobretudo na sua problemática vizinhança próxima a leste, tendo a Rússia como uma preocupação importante se não mesmo e ainda uma ameaça.

8. Norte – São estados com muito em comum e um hábito de cooperação também no campo da defesa, e com evidente prioridade geopolítica para a segurança do Árctico e do Leste, ambas zonas de tensão com a Rússia.

9. Sul – São estados cuja grande prioridade para a segurança europeia é a instabilidade e as ameaças terroristas na área do Mediterrâneo e do Médio Oriente[1].

As prioridades destes grupos de países são diferentes, mas não são necessariamente tão contraditórias quanto possa parecer. Aliás, a emergência da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) mostra isso mesmo. Mesmo que existam estados mais concentrados na vizinhança a Leste ou a Sul, todos concordam que é vital que a UE consiga prever e se necessário ter a capacidade para lidar com ameaças violentas à estabilidade e aos seus interesses nas áreas que rodeiam a UE e com um evidente potencial desestabilizador da mesma. Também as diferenças entre Neutros e Atlantistas e Europeístas têm sido atenuadas, pelo facto de com o fim da Guerra Fria os países neutros europeus terem passado a integrar uma parceria com a NATO que permite que muita da cultura organizacional da Aliança seja incorporada – facilitando a cooperação. Por outro lado, o país mais europeísta em questões de defesa, a França, fez questão nos últimos anos de se reaproximar da NATO e sublinhar que não quer uma UE em competição no campo da defesa com os Estados Unidos – o que poderá ser mera táctica, mas nem por isso deixa de facilitar aproximações entre estes grupos, antes relativamente convergentes.

Esta crescente convergência encontra expressão na doutrina estratégica da UE, que procura deliberada e eficazmente funcionar como um nível de ligação entre culturas e prioridades estratégicas nacionais. A Estratégia Europeia de Segurança deve ser vista sobretudo como um elemento de conjugação e não de substituição das prioridades e concepções estratégicas nacionais. Ela mostra, no entanto, a emergência de uma cultura estratégica pan-europeia de tipo ateniense – ou seja, que insiste na necessidade de um uso da força exemplar do ponto de vista normativo, isto é, que corresponde aos grandes princípios do direito internacional.

Deste ponto de vista o que é que o Tratado de Lisboa adianta? Desde logo, revelou que algumas destas divisões ainda pesam. Assim, uma das razões apontada pelo Governo de Dublin para explicar o não inicial dos irlandeses quanto ao tratado foi precisamente o receio de que ele viesse comprometer a neutralidade da Irlanda, obrigando a uma defesa conjunta. Foi por isso necessário incluir um protocolo adicional explicando que o Tratado de Lisboa não afectava a disposição constitucional que obriga a uma tripla autorização para o emprego das forças militares irlandesas no exterior. Por outro lado, e por razões quase opostas – de atlanticismo hard-core –, a Dinamarca optou desde o início por ficar de fora deste campo. Algo, no entanto, une estes dois países – a preocupação em manter firmemente no parlamento nacional o controlo das grandes opções de defesa. Até que ponto isso se traduzirá na prática num distanciamento face a futuros avanços da PESD é, no entanto, algo em aberto.

Por outro lado, e tomando boa nota disso mesmo, o tratado veio alargar o campo das cooperações estruturadas permanentes à defesa.

 

NOVAS NORMAS E INSTITUIÇÕES

Se há área em que o Tratado de Lisboa tem sido apresentado como trazendo grandes novidades é precisamente no campo da PESD.

Desde logo, porque o tratado acaba com o chamado sistema de pilares – em que a Segurança Externa e Defesa, e a Segurança Interna e Justiça permaneciam como áreas à parte do pilar comunitário tradicional, sublinhando o seu carácter essencialmente intergovernamental, coordenado pelos governos e não integrado pelas instituições europeias.

No entanto, o fim dessa distinção formal teve como preço, num dos compromissos e ambiguidades em que a UE é fértil, a reafirmação de que nada no tratado violava o controlo último do campo da defesa pelos estados-membros. Reafirmado ainda de forma mais explícita, como vimos, no caso da Irlanda e da sua neutralidade.

É verdade que houve, no entanto, uma parcial integração desta área, e nomeadamente o actor fundamental a encarná-la: o alto representante para a Política Externa e de Defesa que até ao presente era exclusivamente um representante do Conselho que reúne os estados europeus, só a ele prestando contas. Actualmente, mantendo embora essa função e estatuto, passou também a ser membro de direito próprio do poder executivo da União, a Comissão Europeia, com o cargo de vice-presidente, assumindo o pelouro das Relações Externas. O seu cargo é descrito assim pelo Tratado de Lisboa:

«O Alto Representante conduz a política externa e de segurança comum da União. Contribui, com as suas propostas, para a definição dessa política, executando-a na qualidade de mandatário do Conselho. Actua do mesmo modo no que se refere à política comum de segurança e defesa.»[2]

A grande questão em aberto é saber qual será o papel e a cultura institucional que assumirá maior prevalência: será a nova alta representante sobretudo uma criatura do Conselho e da sua intergovernamentalidade, ou será uma figura da Comissão e da sua cultura de promoção da integração? Claro que há outras possibilidades: que a própria Comissão tenha perdido essa cultura de integração depois de Delors, e seja cada vez mais, nomeadamente sob a presidência de Barroso, marcada pela aproximação às agendas dos grandes estados. Há ainda a eventualidade de a alta representante assumir um papel de ponte e pivot fundamental entre as duas instituições, eventualmente competindo até nesse papel – beneficiando da sua dupla qualidade – para se sobrepor de facto ao também recém-criado presidente do Conselho Europeu, e ao papel tradicional do presidente da Comissão[3].

Uma tendência interessante a observar será a de perceber se o cargo de alto representante passará a ser tendencialmente ocupado pelos estados maiores da UE – como sucedeu com Solana e agora com a baronesa Ashton – e o que isso poderá significar no sentido de reforço do peso destes na definição da agenda internacional europeia.

Mas estas são questões genéricas que se colocam em relação ao campo da defesa, como em relação a outros. No entanto, do ponto de vista da nossa análise o que talvez importe sobretudo sublinhar é que a nova alta representante, saída dos termos do Tratado de Lisboa, passará também a contar nos termos do mesmo de um novo Serviço de Acção Externa – uma diplomacia – da UE, que integrará quer diplomatas dos estados-membros, quer elementos dos actuais serviços externos da Comissão Europeia.

O que baronesa Ashton certamente não terá é um exército europeu. Só o esforço de organizar efectivamente a nova diplomacia europeia irá consumir energias importantes. Sobretudo, tendo que fazê-lo de forma a evitar os receios dos estados, já manifestadas, inclusive por Portugal, de que esta nova instituição europeia venha competir ou sobrepor-se à diplomacia dos estados europeus, quando as deveria complementar.

Na medida em que o hábito faz o monge, será natural pensar que a tendência da nova alta representante será para sublinhar sobretudo a componente diplomática da sua função e desvalorizar ou prestar menos atenção – até por falta de meios – ao campo da segurança e defesa.

Ninguém contesta que a UE é muito importante globalmente – é o maior dador de ajuda ao desenvolvimento no mundo. O problema, claro está, em que se o poder é multidimensional, nem todos os componentes do poder são iguais. A UE tem muito soft power, é o modelo de Estado social de mercado invejado por mim. Mas falta-lhe hard power, e um actor credível internacionalmente dificilmente poderá deixar de aliar diplomacia competente e força credível. Desse ponto de vista a UE está até mais avançada na sua doutrina estratégica, e nas suas instituições, do que a maioria dos estados europeus, mas também do que as suas próprias capacidades.

Os factos que acabámos de referir apontam potencialmente para uma evolução descrita no próprio Tratado de Lisboa:

«A política comum de segurança e defesa inclui a definição gradual de uma política de defesa comum da União. A política comum de segurança e defesa conduzirá a uma defesa comum logo que o Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, assim o decida.»[4]

Mas resultados duráveis neste campo estão longe de ser um acquis.

A Estratégia de Segurança Europeia adopta um conceito muito actualizado de segurança abrangente. E o próprio alto representante tem essa dupla responsabilidade – a exemplo do conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Mas, realmente, o que lhe sobra em responsabilidades integradas, falta-lhe em capacidades efectivas no campo militar.

Apesar de tudo isto, há que reconhecer que o alargamento das cooperações estruturadas permanentes à defesa poderá permitir – embora para tal seja necessário o acordo de todos os estados, mesmo os que não queiram participar – que haja estruturas da UE no campo da defesa de que apenas alguns dos estados-membros fazem parte, permitindo potencialmente ultrapassar as reservas dos mais neutros, ou dos atlantistas hard-core que possam recear que qualquer avanço europeu poderia levar a um distanciamento face aos Estados Unidos. De facto, o tratado afirma:

«estados-membros cujas capacidades militares preencham critérios mais elevados e que tenham assumido compromissos mais vinculativos na matéria tendo em vista a realização das missões mais exigentes, estabelecem uma cooperação estruturada permanente no âmbito da União.»

Tal poderá gerar uma dinâmica semelhante à do euro em que cada vez mais países acabaram por pretender pertencer à Eurolândia, pelo menos até à recente crise.

Uma instituição que poderá tornar-se crucial, assim se concretizem as aspirações que levam à sua criação, cuja importância sai sublinhada do tratado, é a Agência Europeia de Defesa, encarregue no quadro da UE de organizar projectos de investimento conjunto em novos tipos de armamento. Este potencialmente será um campo fundamental para permitir reforçar as capacidades no campo da defesa da Europa de uma forma integrada e no quadro da UE.

É possível, ainda, que novas crises, e algumas mudanças no contexto internacional, favoreçam o desenvolvimento destas mesmas capacidades e de uma dinâmica de maior cooperação, se não integração, entre os estados-membros com a ajuda das novas estruturas centrais da PESD em Bruxelas, neste campo fundamental para qualquer actor internacional de peso.

Os europeus muitas vezes queixam-se que não têm um peso na política de determinadas regiões proporcional ao nível de ajuda ao desenvolvimento, de investimento, e de trocas comerciais – o exemplo mais citado será provavelmente o de Israel e da Palestina. Mas qualquer actor racional, na vida privada, como na vida internacional, se tiver de escolher entre o bem-estar material e a sobrevivência, entre a bolsa e a vida, escolherá esta última. Portanto, se a UE quiser ser mais influente no campo internacional, mesmo que seja ao serviço de uma política mais ética e mais promotora da paz, terá de se preparar mais credivelmente para a guerra.

 

CRISES E DESAFIOS PARA A SEGURANÇA EUROPEIA

É um cliché afirmar que não há nada melhor do que uma ameaça iminente para despertar a atenção para o campo da segurança e defesa e solidificar uma determinada comunidade política, que passa a ser concebida em termos de nós contra eles[5]. Mas os clichés existem por alguma razão. De facto, é normal que períodos de paz levem ao relativizar das necessidades defensivas. Foi essa a tendência dominante na Europa sobretudo desde 1991, com o fim da urss, tanto mais que existe, mais ou menos implicitamente, a ideia de que se alguma ameaça séria viesse a surgir a Europa poderia contar com os Estados Unidos.

Portanto, o que caberia perguntar mais precisamente é qual o tipo de crise que levaria a Europa a questionar essa assunção sobre o carácter essencialmente pacífico das suas relações com outros estados, ou que a levassem a questionar a sua dependência confortável face aos Estados Unidos?

Tal pode parecer altamente improvável – uma ameaça iminente e directa à Europa, além de improvável no curto prazo, seria dificilmente indiferente aos Estados Unidos. Mas há outros tipos de crises que, não colocando uma ameaça vital, no entanto afectam significativamente os interesses europeus e não os americanos. Foi precisamente como resultado de uma crise desse tipo – no Kosovo em 1998-1999 – que o processo de construção da defesa europeia começou. Poderá voltar a suceder algo parecido – crises e migrações descontroladas de estados falhados na vizinhança imediata da eu?

Além dos Balcãs – que parecem a caminho da estabilização, mas ainda não estabilizados –, da Macedónia à Albânia, à Moldova e às zonas da Europa de Leste, do Cáucaso ou ainda áreas do Magrebe, como Marrocos ou Argélia, que, sendo aparentemente estáveis, no entanto vivem situações políticas ambíguas entre o autoritarismo e a democracia pluralista e por vezes estão sujeitos a ameaças externas, como é o caso paradigmático da Geórgia face à Rússia.

O exemplo da guerra civil argelina, que tanto preocupou e ameaçou a segurança da França, sem que isso tenha interessado muito os Estados Unidos, mostra que tal divergência de percepções de ameaça e de disponibilidade para lidar com ela está longe de ser inconcebível.

Uma outra ameaça bem real é a colocação por terroristas de bases em estados falhados em zonas mais afastadas, mas que podem mais facilmente levar a cabo atentados na Europa, mais permeável e mais próxima da África e do Médio Oriente do que os Estados Unidos. Em concreto, a Al-Qaida, baseada no Afeganistão-Paquistão e afiliados vários, pode vir a ser uma ameaça bem mais real para os europeus do que para os norte-americanos caso as acções militares e clandestinas contra esse rede se revelarem em última análise infrutíferas.

Não é, no entanto, evidente que esta percepção seja clara na Europa, nem que numa arena potencialmente vital para a segurança europeia a UE tenha vontade de investir muito significativamente na sua capacidade de dar uma resposta à altura do desafio, no quadro da NATO e não só. Mais, se esta difícil campanha levar os Estados Unidos a rever a sua estratégia e a retirar-se mais, e resguardar-se de intervir em crises futuras como aconteceu no pós-Vietname, pode bem ser que a Europa seja confrontada com um novo caso, uma nova crise com o excesso de confiança no alinhamento automático e na capacidade ilimitada dos Estados Unidos para defender a segurança europeia.

Há ainda, evidentemente, ameaças a rotas fundamentais para os interesses europeus de que o caso mais flagrante actualmente são os piratas da Somália. Este é um bom exemplo de insurreição marítima, já que utilizam a cobertura de actividades marítimas civis e a difusão e o carácter episódico destas emboscadas a navios mercantes como forma de iludir a capacidade de as marinhas europeias e outras darem resposta à situação. Este é o tipo de desafio para o qual a Europa tem de se preparar melhor, com equipamento e treino mais adequado – por exemplo, ao nível da expansão dos fuzileiros e da capacidade de abordagem aerotransportada. Aliás, helicópteros, a par de aviões de transporte, e veículos de blindagem reforçada para deslocação de tropas são meios por excelência de projecção do poder, em falta no arsenal europeu, sendo vitais para operações de projecção de força fora da Europa, no sentido da estabilização e contra-insurreição em zonas de crise.

Ainda, neste quadro de ameaças estratégicas vitais cabe também a perturbação do potencial do abastecimento de produtos estratégicos para a Europa, recursos energéticos fundamentais à indústria, ou de produtos alimentares necessários à sobrevivência dos europeus. Ainda que os cortes de gás natural por parte da Rússia reflictam sobretudo uma disputa com a Ucrânia, ainda assim servem para recordar a vulnerabilidade da economia e de necessidades básicas dos europeus.

Há ainda que considerar, neste quadro económico, uma outra crise que poderá ser sumamente relevante para o desenvolvimento de uma defesa europeia. Trata-se da crise financeira de 2008 em diante. Ela tem claramente também dimensões estruturais na Europa, que têm a ver com a capacidade futura dos estados europeus sustentarem um sistema de segurança social generoso num quadro de crescente competição económica do resto do globo. Mas, se bem aproveitada, uma crise pode ser uma boa oportunidade para expandir a capacidade de resposta colectiva, de criar novas instituições capazes de dar uma resposta de conjunto à instabilidade que tenderá a resultar deste tipo de fenómenos.

Sobretudo é lógico que um forte esforço de contenção orçamental a partir de 2011 com que os estados da UE se comprometeram também tenderá a favorecer iniciativas no quadro da Agência Europeia de Defesa no sentido de conter custos pela convergência de investimentos, mantendo o compromisso dos estados-membros para melhorar progressivamente as suas capacidades de defesa, de investigação, de aquisição e de armamento[6]. Resta saber se esta agência tem realmente condições – nomeadamente financeiras – para avançar e trabalhar em ligação com a indústria norte-americana de defesa.

 

SEGURANÇA EUROPEIA E ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

É impensável, no curto e médio prazo, que a Europa venha a assumir posições no campo da defesa e segurança em oposição directa aos Estados Unidos. A protecção dada pelos Estados Unidos tem sido fundamental para a segurança europeia, e mesmo como mecanismo de protecção e garantia última de segurança colectiva que permitiu a estados como a França e a Alemanha darem-se ao luxo de avançar com confiança em políticas de integração crescente das suas economias, depois de séculos de guerras[7].

No entanto, este «império por convite» dos Estados Unidos na Europa criou também um grau de dependência pouco saudável da parte dos europeus, que os deixou fragilizados e incapazes de tomar a iniciativa em áreas estratégicas fundamentais[8]. Mesmo quando isso não implica qualquer desejo de oposição aos Estados Unidos, e possa levar a dinâmicas que seriam positivas para os próprios norte-americanos, limitando a sua capacidade de avançar com políticas inapropriadas, e permitindo menos dispêndio de recursos no campo da defesa por parte dos Estados Unidos.

A NATO, e em particular a realidade substantiva a que esta dá corpo da aliança entre os Estados Unidos e a maioria dos estados europeus, tem sido o melhor e o pior do ponto de vista da segurança e defesa europeia, que tem vivido entre o conforto do artigo 5.º do Tratado de Washington como garantia última da sua segurança, e o incapacitante acordo Berlim Plus que limita o desenvolvimento de um quartel-general operacional europeu e coloca a UE numa situação de dependência dos recursos do comando militar conjunto da NATO, dando assim a esta última poder de veto sobre as acções europeias neste campo.

Poucos contestarão que, para o melhor ou para o pior, de acordo com os pontos de vista, a NATO tem também sido a verdadeira defesa europeia. A segurança da Europa tem sido em boa medida garantida e paga pelos Estados Unidos, resultando em poupanças substanciais dos europeus, permitindo nomeadamente um Estado social bem mais generoso na Europa relativamente ao outro lado do Atlântico.

A NATO tem sido igualmente o escudo seguro que tem permitido o desenvolvimento gradual, cauteloso, titubeante da política de defesa e segurança europeia, sem que isso seja visto como colocando um risco para a segurança dos estados europeus. A PESD, com as suas dezenas de relativamente modestas e pouco militarizadas missões no exterior, pode ser vista como um sucesso, em boa medida porque ninguém realmente espera que esse seja o real teste da segurança e defesa europeias, que continuam a ser, no essencial, garantidas pela aliança com os Estados Unidos ao abrigo do famoso artigo 5.º do Tratado de Washington de 1949 que constitui a NATO.

Se os países do antigo bloco soviético quiseram entrar na UE, quiseram primeiro entrar na NATO, pois viam aí – com uma nitidez de visão muito facilitada pela sua anterior fragilidade face o poder de coacção da Rússia soviética – a real garantia de segurança europeia. Só depois deste ponto essencial estar garantido, se preocuparam com o luxo adicional, sem dúvida altamente apetecível, que é fazer parte da UE[9].

Será que isso poderá continuar a ser assim? Pode parecer duvidoso que os Estados Unidos, sobretudo numa situação de crise, se permitam tal luxo. O Estado providência europeu é em parte um luxo pago pelos contribuintes norte-americanos na forma de enormes despesas militares dos Estados Unidos que depois se traduzem numa dissuasão militar credível norte-americana extensível à defesa da Europa. Esta situação estará necessariamente sob pressão das exigências de competitividade crescente do Ocidente face a economias mais periféricas e, pelo menos por enquanto, não tão exigentes do ponto de vista da qualidade de vida. Tradicionalmente, o grande sacrificado no campo da despesa do Estado – veja-se as dinâmicas de descolonização, ou do pós-Guerra Fria – foi precisamente o campo da defesa no exterior. Não há razão para pensar que os Estados Unidos continuarão a ser imunes a essa pressão. Pelo contrário, há já indicadores claros de uma política de corte nas despesas militares norte-americanas por parte do secretário da Defesa, Robert Gates[10].

Claro que perante uma ameaça iminente e vital para a segurança e sobrevivência da Europa, por razões de interesse próprio – económico e estratégico – dificilmente os Estados Unidos deixariam de alinhar ao lado dos europeus. No entanto, num contexto pós-Guerra Fria, de ameaças muito difusas e variadas, são muitas as crises possíveis em zonas próximas da Europa a que a ligam importantes interesses, mas em que os norte-americanos não partilhariam nem a avaliação da gravidade da crise, nem a vontade de se empenhar na sua resolução. Foi precisamente quando isso sucedeu no caso do Kosovo, em 1998-1999, que se deu um impulso decisivo no sentido do arranque da psde, por via da Cimeira de Saint-Malo entre a França e a Grã-Bretanha.

Evidentemente, o reverso é também verdadeiro – a Europa pode agora dar-se ao luxo de se envolver menos ao lado dos Estados Unidos – como o caso do Iraque de 2003 ilustrou em relação a uma parte significativa de estados europeus, que ou ficou de todo de fora, ou enviou forças mínimas. Tal também tem ilustrado a tendência para divisões significativas no interior da Europa, uma fractura da sua política externa e de defesa, sempre que surgem divergências importantes com os Estados Unnidos, acabando por paralisar uma acção conjunta da UE.

Foi condição compreensível de desenvolvimento da PESD a partir de 1999 – por exigência de países atlantistas como Portugal, a Grã-Bretanha e a Holanda – que esta fosse explicitamente formulada como não podendo nunca surgir em oposição à NATO. Isso é mais uma vez religiosamente reafirmado, como seria de esperar, no Tratado de Lisboa:

«respeitará as obrigações decorrentes do Tratado do Atlântico Norte para certos Estados-Membros que vêem a sua política de defesa comum realizada no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e será compatível com a política de segurança e de defesa comum adoptada nesse âmbito.»[11]

Há, no entanto, uma oportunidade doirada de, com o apoio da Administração Obama, acabar com o chamado acordo Berlim plus. O Presidente Obama quer mais investimento do Estado no interior dos Estados Unidos. Para isso, precisa de uma Europa mais activa no campo da segurança e defesa global para ter espaço para uma relativa redução do esforço norte-americano neste campo sem que tal possa criar um vazio substancial e perigoso no campo internacional. Os Estados Unidos podem ter alguns receios de uma Europa demasiado autónoma no campo da segurança e defesa, mas sobretudo os decisores actuais em Washington estarão, acima de tudo, desejosos de ver uma Europa mais capaz neste campo.

Cabe aos líderes europeus assumir a liderança no sentido de uma mudança indispensável para permitir uma real cooperação entre a UE e a NATO, assim como para um verdadeiro desenvolvimento de uma política europeia de defesa comum, em vez de uma subordinação paralisante desta última face à NATO, que não é actualmente do interesse estratégico da Administração Obama.

Esta mudança não corresponde simplesmente a um desejo norte-americano compreensível de reequilibrar contas e responsabilidades. É também um investimento razoável por parte da Europa. Até mesmo em termos económicos poderão daí advir importantes dividendos no quadro da chamada Estratégia de Lisboa para tornar a Europa economicamente mais inovadora e dinâmica. Historicamente, verifica-se que muitos dos avanços tecnológicos que têm tornado os Estados Unidos uma economia tão dinâmica e inovadora vêm precisamente de spin-offs civis de tecnologias desenvolvidas inicialmente no campo da indústria militar.

Mais ainda, do ponto de vista dos princípios, um reforço das capacidades militares europeias corresponde aos seus objectivos estratégicos, à sua doutrina oficial, expressa na Estratégia Europeia de Segurança de 2003 a qual estabeleceu como prioridade que se desenvolva uma abordagem preventiva proactiva e holística das crises: «uma abordagem coerente baseada na pessoa como princípio da segurança humana»[12]. Sendo que uma capacidade de abordagem civil-militar destas crises seria uma vantagem estratégica fundamental da UE, em resposta à grande ameaça nas últimas décadas à segurança internacional: estados em crise. Ora tal só será possível, por muito importantes e necessárias que sejam as componentes de reconstrução e governação civil, se existir também a componente militar que crie o ambiente de segurança e mesmo as infra-estruturas de base de comunicação, transporte, abastecimento de água, indispensáveis para que tudo o resto possa funcionar. Não só os militares muitas vezes são os únicos disponíveis e treinados para funcionar eficazmente em zonas de crise em campos tradicionalmente civis. Mais, a criação de condições de segurança mínima para as populações é algo essencial para um efectivo exercício dos direitos fundamentais dos habitantes locais. Sem segurança militar a segurança humana, o conceito holístico de segurança explicitamente adoptado pela UE na última revisão da ESS, em 2008, não é possível. Sem uma capacidade real europeia no campo da defesa a UE não terá capacidade para defender os seus interesses próprios, mas também não poderá ser uma potência normativa exemplar até às últimas consequências, garantindo, se necessário pelo uso proporcional da força, o respeito pelas normas internacionais da onu, apresentados como os grandes guias da política externa e de defesa europeia.

O Tratado de Lisboa reconhece isso explicitamente:

«política comum de segurança e defesa garante à União uma capacidade operacional apoiada em meios civis e militares. A União pode empregá-los em missões no exterior [...] de acordo com os princípios da Carta das Nações Unidas.»[13]

O que é um indicador positivo de que há uma consciência generalizada desta realidade ao nível dos 27 estados-membros da UE, mesmo que nem todos estejam dispostos a tirar as mesmas conclusões em termos de investimentos necessários para tornar estes princípios uma realidade.

 

CONCLUSÃO

Uma verdadeira defesa europeia exigirá passos em direcção aos quais o Tratado de Lisboa aponta mas que realmente ainda não concretiza. A criação pelo Tratado de Lisboa de um serviço de acção externa europeu, em parte comum, em parte constituído por contribuições nacionais, aponta para o seu paralelo numa força de defesa europeia que, no entanto, ainda não está prevista no acordo constitucional entre os membros da UE que entrou em vigor em Janeiro de 2010.

Tal corresponde à tradição gradualista da política de integração europeia, ao facto de a defesa e a segurança serem áreas de reserva da soberania dos estados – são tradicionalmente o seu núcleo duro – e portanto representaram desde o início campos complicados de integrar como demonstraram o falhanço do Tratado de Paris e da CED em 1954. E apesar das dificuldades de ratificação causadas em parte, como vimos no caso irlandês, também pelas questões da defesa europeia, a verdade é que tal como foi deixada clara no preâmbulo do Tratado de Lisboa a intenção de

«executar uma política externa e de segurança que inclua a definição gradual de uma política de defesa comum que poderá conduzir a uma defesa comum, de acordo com as disposições do artigo 42.º, fortalecendo assim a identidade europeia e a sua independência, em ordem a promover a paz, a segurança e o progresso na Europa e no mundo»[14].

Ou seja, a intenção da parte de um número suficiente de estados da UE avançarem no sentido de uma defesa integrada é suficientemente forte para merecer esta menção, mas não ao ponto de se concretizar desde já em mudanças institucionais substanciais neste domínio que ficam no campo das possibilidades.

Uma componente essencial da segurança ocidental actual é a existência de uma capacidade de defesa por dissuasão contra quaisquer ameaças estatais por via das armas nucleares. O passo inicial da integração europeia foi a plena integração da grande energia do presente – o carvão – e, imaginava-se, do futuro – a atómica. Foi assim que surgiu a CECA, mas também a EURATOM. Pode dizer-se que o passo final na integração da defesa europeia será a integração dos sistemas nucleares da França e da Grã-Bretanha. Da mesma forma que a integração diplomática plena passaria por um lugar único para a Europa no Conselho de Segurança. Todos estes passos no entanto parecem estar num horizonte longínquo. Contudo, a pressão de acontecimentos inesperados que sublinhem a vulnerabilidade europeia, ou de alguns dos seus estados em particular, nomeadamente daqueles que ainda alimentam uma política com ambições globais, nomeadamente no campo da defesa. Isso poderá surgir por via de um envolvimento de um desses estados em situações no exterior que lhe escapam ao controlo e às capacidades. Ou poderá advir de uma ameaça premente a interesses vitais do conjunto da Europa, ou de boa parte dela, por exemplo, no campo da energia ou de outros recursos estratégicos.

Portanto, não só o mais provável, mas talvez também o mais desejável, será uma transição gradual e gradualista neste campo politicamente muito delicado. Basta imaginar qual poderia ser o efeito numa defesa europeia comum de uma acção militar falhada no exterior – esta é uma política em que não estão em causa apenas mais ou menos subsídios, mais ou menos exportações, mas sim vidas de soldados e civis.

Tendo em conta este facto, e a existência de tradições estratégicas diferenciadas ainda apenas minimamente ligadas pela Estratégia de Segurança da UE de 2003, o elemento que poderá contribuir para um arranque de uma defesa europeia mais integrada e mais eficaz, será o de usar os mecanismos do Tratado de Lisboa – particularmente o papel de condução desta área pelo alto representante e da Comissão, assim como ao papel da Agência Europeia de Defesa no sentido de identificar e resolver problemas ao nível de equipamento necessário aos estados europeus. E, sobretudo, do mecanismo das cooperações estruturadas permanentes, com a sua lógica de atracção dos mais reservados que inicialmente se excluiriam desse mecanismo[15].

Neste momento é enorme a pressão por via da crise económica e do seu custo em termos de crescimento da despesa pública, para fazer grandes cortes na mesma. É difícil ver como tal será possível sem que isso limite a disponibilidade dos estados Unidos para se envolverem militarmente na resolução de crises futuras que possam surgir a ameaçar a Europa. Enquanto na Europa é difícil ver mais cortes significativos neste campo da defesa sem que eles afectem decisivamente a capacidade mínima de cada um dos Estados europeus manter por sua conta instrumentos militares fundamentais.

A solução lógica será portanto fazer cortes sem perder meios efectivos por via da integração de recursos em programas europeus conjuntos de rearmamento e modernização, por iniciativa do alto representante e sob a égide da AED, e mesmo na constituição de algumas unidades militares europeias integradas. Isso será mais provável, inicialmente, em áreas fundamentais para concretizarem a Estratégia Europeia de Segurança, como sejam os meios logísticos militares necessários para uma capacidade credível de projecção rápida e sustentável de cerca de 60 mil efectivos europeus em qualquer parte do mundo. A logística sempre foi a Cinderela dos militares – indispensável, mas destinada a ficar nos bastidores sem que ninguém repare muito nela, ou queira investir grandes meios para a vestir decentemente – e, portanto, provavelmente haveria menos resistências, por exemplo, à criação de uma frota europeia de A400, ou, pelo menos, à sua gestão de uma forma coordenada permitindo a máxima utilização de recursos de todos os estados europeus numa qualquer situação de crise.

A Europa perdeu poder de controlo sobre o mundo nestes últimos dois séculos. Primeiro foram as Américas a tornar-se independentes nos séculos xviii e xix. Depois, foi a vez da Ásia e da África na segunda metade do século xx. Os grandes impérios coloniais europeus desapareceram entre 1945 e 1975, mas os estados europeus têm conseguido manter uma influência nas questões internacionais desproporcionada face ao seu tamanho. Isso deve-se sobretudo à manutenção de grandes capacidades produtivas e organizacionais, no campo económico, mas também ao nível diplomático e militar.

Mas esta vantagem relativa tende a perder-se com a passagem do tempo, a crescente assertividade de potências não ocidentais, que têm começado a organizar-se cada vez melhor no campo produtivo, e também na campo da projecção militar de poder.

O processo de integração europeia correspondeu a vários objectivos estratégicos fundamentais. Alguns já foram obtidos, e são de enorme valor apesar de serem dados adquiridos. É assim particularmente com a pacificação da Europa e das relações entre os seus estados; hoje em dia é inconcebível um conflito armado entre membros da UE. No entanto, os objectivos estratégicos principais da integração europeia precisam de um esforço contínuo de adaptação: nomeadamente garantir para uma Europa pós-imperial, se não um peso dominante na agenda internacional, que perdeu desde 1945, pelo menos um papel global importante e mesmo indispensável a qualquer grande decisão no campo internacional. A Europa não é um império unificado desde o tempo dos romanos, e não tem hoje impérios coloniais. Os europeus terão de decidir nos próximos anos se ainda querem contar, por via de uma coordenação estreita e alguma integração eficaz da política externa e de defesa no seio da UE, numa política internacional cada vez mais dominada por estados de dimensões continentais – superpotências de que a Rússia e os Estados Unidos foram o primeiro exemplo, mas entre os quais, actualmente, se destaca a China, o Brasil, a Índia, e mesmo, em dimensões diferentes, a Nigéria, a África do Sul, a Arábia Saudita, a Indonésia, a Austrália.

A decadência reactiva da Europa que se tem verificado desde 1914 era dificilmente evitável. Mas não implica uma redução dos europeus à insignificância no campo da defesa e segurança internacionais – para a qual, em aliança com os Estados Unidos, mas por vezes também sozinhos nomeadamente na África, têm continuado a dar um contributo importante. Mas se a Europa vier a ser sobretudo, e apenas, uma expressão geográfica e não política, então mesmo os seus estados de maiores dimensões e capacidades – a Alemanha, a França, a Grã-Bretanha – ficarão cada vez mais relegados para um segundo plano no campo internacional.

O futuro da Europa no mundo estará portanto dependente da medida em que os seus estados utilizem o mais possível os instrumentos do Tratado de Lisboa para fazer mais investimentos conjuntos numa nova geração de equipamentos militares para eficaz projecção de força no exterior, e para colocar de pé uma capacidade militar europeia coordenada e pelo menos em parte integrada, adequada às ameaças de um novo século, cujas dinâmicas internacionais surgem dominadas por um aumento do número de potências emergentes, potencialmente revisionistas[16]. Esta só não é uma receita para uma nova guerra mundial graças sobretudo ao armamento atómico que qualquer grande potência poderá desenvolver, o que significa que qualquer conflito entre grandes potências seria certamente catastrófico. Mas é uma situação que aponta pelo menos para uma elevada probabilidade de sérias tensões, em que os instrumentos militares certamente continuarão a desempenhar algum papel numa sociedade internacional regida por mais regras, mas ainda longe de um governo mundial único.

 

NOTAS

[1] A este respeito ainda que uma visão não inteiramente convergente de Giegerich, Bastian – «European militar crisis management». Adelphi paper 307. Londres: IISS, 2008.

[2] Artigo 18.º do tuc.

[3] A preocupação com isso está presente na referência explícita que não há choque a rentre a nova diplomacia e os Estados Unidos, cf. artigo 15.º do tuc.

[4] Artigo 42.º do Tratado da União Europeia (TUE).

[5] A afirmação clássica desta lógica é Schimtt, Carl – The Concept of the Political. Chicago: CUP, 1996.

[6] Artigo 41.º do TUE.

[7] Brooks, Stephen, e Wohlforth, William – «Hard times for soft balancing». In International Security. Vol. 30, No. 1, 2005, pp. 72-108.        [ Links ]

[8] Lundestad, Geir – «Empire by invitation? The United States and Western Europe, 1945-1952». In Journal of Peace Research. Vol. 23, N.º 3, 1986, pp. 263-277.

[9] Rühle, Michael, e Williams, Nick – «Why NATO will survive?». In Comparative Strategy. Vol. 16, N.º 1, 1997, pp. 109-115.

[10] Rubin, Elizabeth – «What is Robert Gates really fighting for?». In Time, 3 de Fevereiro de 2010. (Consultado a: 12 de Fevereiro de 2010). Disponível em: http://www.time.com/time/printout/0,8816,1959013,00.html.

[11] Artigo 42.º do TUE.

[12] 2008 ESS Review: 2, 11.

[13] Artigo 42.º do TUE.

[14] Preâmbulo do TUE.

[15] Artigo 42.º do TUE.

[16] E.g. Klare, Michael – Emerging Power, Shrinking Resources. Nova York: Columbia, 2008.