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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.25 Lisboa mar. 2010

 

A «casa europeia» de Lisboa

 

António Vitorino

Jurista. Antigo ministro da Defesa Nacional e ex-comissário europeu para a Justiça e os Assuntos Internos.

 

O artigo reflecte sobre as alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa no domínio da política externa e de segurança comum e dos princípios. Analisa a matriz comunitária e intergovernamental da União, destacando a criação do cargo de alto-representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, bem como identifica a aproximação aos cidadãos, com o reforço do protagonismo e dos poderes do Parlamento Europeu, e a atribuição de carácter vinculativo à Carta dos Direitos Fundamentais.

Palavras-chave: União Europeia, Tratado de Lisboa, Política Comum de Segurança e Defesa, instituições europeias

 

The Lisbon «european house»

This article reflects on the changes introduced by the Lisbon Treaty upon the common foreign policy and security domain as well as that of principles. It also examines the communitarian and intergovernmental nature of the eu, underlining the creation of the High Representative for Foreign Affairs and Security Policy, and identifies the policy of rapprochement to the citizens which mainly results from the strengthening of the power of the European Parliament.

Keywords: European Union, Lisbon Treaty, common foreign and security policy, European institutions

 

O Tratado de Lisboa é um tratado materialmente constitucional. Como já o eram, aliás, os seus antecessores (de Roma a Nice). Mas não é «o» Tratado Constitucional ou mesmo a «Constituição Europeia» de que falava Valéry Giscard d’Estaing na sessão de encerramento da Convenção sobre o Futuro da Europa.

Lisboa não passará à História como a Filadélfia europeia…

Vistas as coisas de um ponto de vista jurídico não haverá grande diferença. A sua materialidade não depende da nomenclatura escolhida.

Mas – felizmente! – a realidade política é bem mais rica do que esse terreno estreito em que os juristas se digladiam em torno de conceitos, mecanismos procedimentais, regras de hierarquia normativa ou mais ou menos complexas engenharias institucionais.

Ora, no plano político, mesmo que 80 por cento (ou mais…) do defunto Tratado Constitucional tenham sido retomados no Tratado de Lisboa, a diferença de enquadramento dos tratados de 2004 e de 2009 está carregada de significado… e de implicações.

Com efeito, muitos dos críticos do Tratado Constitucional apontaram-lhe o dedo acusador por ser «um passo maior que a perna», ou seja, por se propor alcançar objectivos desproporcionais em relação ao que o consenso político permitia. Os defensores do tratado, por seu turno, embora reconfortados com a forte continuidade substantiva do Tratado Constitucional e do Tratado de Lisboa, mesmo assim não conseguem esconder uma certa desilusão por, na passada, ter sido abandonada a ambição «refundadora» ou «relegitimadora» que tinham imputado ao Tratado Constitucional.

Não será este (ainda) o momento para contabilizar ganhos e perdas para cada um dos lados destas barricadas.

Mas não deixa de ser curioso registar que alguns dos símbolos e das principais referências de uma lógica de desenvolvimento mais marcadamente supranacional, ou, se assim se preferir, de um projecto de vocação mais marcadamente federal, acabaram por averbar alguns recuos nas inovações introduzidas pelo Tratado de Lisboa. Só que alguns desses recuos de uma leitura mais federalista do futuro da União estavam incluídos… no próprio Tratado Constitucional!

Por isso, raras vezes terá sido tão injusto brandir, como o foi no ataque desferido contra o Tratado Constitucional, o fantasma do (impropriamente chamado) «federalismo europeu» – na realidade com mais propriedade poderia falar-se no espectro de um «super-Estado europeu», centralista e padronizador! Dir-se-ia que os detractores do Tratado Constitucional levaram mais a sério o epíteto de «Constituição Europeia» do que a maioria dos seus próprios defensores…

Atesta-o, desde logo, a clarificação do modelo de atribuições e competências, de repartição das esferas de poder entre a União e os seus estados-membros, a qual afasta do horizonte previsível desta União a existência de um «poder constituinte europeu», alicerçado na vontade democrática de um demos europeu e dotado da suprema faculdade de livremente decidir acerca da sua própria regulação fundamental!

Nos termos do Tratado de Lisboa, são os estados soberanos que definem esse móbil comum, estatuem os objectivos a prosseguir conjuntamente no âmbito da União, estipulam os seus limites em função do princípio da subsidiariedade (e respectivos mecanismos de controlo e de salvaguarda) e explicitam a via possível de devolução desses poderes em benefício desses mesmos estados-membros.

Ainda que o essencial deste modelo de atribuições e competências se possa ter como decorrendo já do antecedente Tratado Constitucional, a verdade é que a explicitação deste quadro fundamental, em termos de regras jurídicas e de uma grelha de competências (exclusivas, partilhadas, coordenação de políticas e acções de apoio, nos termos dos artigos 2.º a 6.º do tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), não pode deixar de ser objecto de uma leitura política sobre o seu significado e alcance futuro segundo as concretas modalidades acolhidas no Tratado de Lisboa.

O ponto mais significativo, neste aspecto, constitui a previsão, constante do artigo 50.º, segundo a qual um Estado-membro é livre de abandonar a União em conformidade com as respectivas regras constitucionais e segundo as regras dos tratados, agora inovatoriamente introduzidas, aplicáveis à sua retirada da União. É bem certo que nunca ninguém afirmou que tal não seria já possível à luz dos tratados anteriormente vigentes, mas até à adopção do Tratado Constitucional não havia sido sentida a necessidade de explicitar tal corolário da específica natureza da União Europeia. Acresce ainda que se mantém inalterada a regra da unanimidade tanto para efeitos de aprovação como de alteração dos próprios tratados (a «decisão constitucional» em sentido material).

Este «quadro existencial» da União, assim conceptualizado e explicitado, foi transposto praticamente inalterado para o Tratado de Lisboa e entrou plenamente em vigor a 1 de Dezembro de 2009!

À luz do que acabamos de descrever será interessante ver que releituras serão agora feitas do mote federalista (mantido inalterado no Preâmbulo do Tratado da União e no respectivo artigo 1.º) de «continuar o processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa»…

Resguardemo-nos, contudo, de tirar conclusões prematuras acerca do júbilo imediatista dos que vêem nesta clarificação do quadro de repartição de competências entre a União e os estados-membros assim acolhida no Tratado de Lisboa, um triunfo de uma visão marcadamente intergovernamental da União.

 

A DIMENSÃO CIDADÃ DO TRATADO

Com efeito, convém não subestimar a resiliência do denominado «método comunitário», do seu lastro de mais de cinquenta anos de integração, do seu comprovado valor acrescentado na regulação das relações de poder e de composição de interesses entre estados de muito diferente dimensão e de grande diversidade de prioridades nacionais. E, last but not least, importa não descartar prematuramente a dimensão cidadã da integração europeia que, em última instância, constitui um factor legitimador e de consentimento popular do próprio processo de integração europeia.

Dito de outro modo: o objectivo de reconfortar os estados-membros no respeitante à clarificação do modelo político e institucional da União, plasmado no Tratado de Lisboa, não alterou substancialmente a natureza da própria União Europeia – uma União de Estados e de Povos! Esta dupla natureza da União foi, pois, preservada na perspectiva da sua evolução futura.

Por isso, o Tratado de Lisboa não deixou de cuidar também do reforço da dimensão cidadã da União, na senda da melhor lógica compromissória, tradicional no projecto europeu.

Desde logo, seguindo a via percorrida por uma evolução institucional continuada ao longo das últimas três décadas, o Tratado de Lisboa marca um ponto culminante no reforço do protagonismo e dos poderes do Parlamento Europeu, enquanto órgão representativo dos cidadãos europeus, expressão de uma União de Povos! O que se traduz quer na ampliação dos poderes legislativos exercidos conjuntamente com o Conselho, quer no que diz respeito ao reforço da relação de dependência e de responsabilização da Comissão perante o Parlamento Europeu.

No plano dos princípios, o Tratado de Lisboa enfatiza o valor da participação dos cidadãos na esfera pública europeia (artigo 11.º), completado por um específico direito de iniciativa legislativa popular solicitando à Comissão a apresentação de uma proposta. O que se apresenta convergente com a revalorização do diálogo social e o reconhecimento do papel específico dos partidos políticos no quadro europeu.

No plano dos valores, a dimensão de uma União de cidadãos resulta realçada quer pelo reconhecimento de força jurídica vinculativa (e no mesmo plano dos tratados) à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, quer pela decisão de adesão da União Europeia à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (artigo 6.º).

A questão do estatuto jurídico dos Direitos Fundamentais no quadro da União é um tema recorrente, pelo menos desde o final da década de 1970. O debate ganhou novo vigor a partir da consagração da cidadania europeia no Tratado de Maastricht, em 1992.

A existência de uma «Bill of Rights» própria da União Europeia constitui, indubitavelmente, uma componente indissociável de uma ambição constitucional para a União. Coerentemente, o Tratado Constitucional acolhia a Carta dos Direitos Fundamentais na parte ii da Lei Fundamental europeia.

Abandonada uma matriz assumidamente constitucional pelo Tratado de Lisboa, não se verificou, contudo, qualquer perda de força jurídica no tocante à Carta dos Direitos Fundamentais. Sem embargo, o compromisso de Lisboa acabou por consentir um extenso elenco de derrogações aplicáveis ao Reino Unido e, em certa medida, à Polónia e à República Checa, excepções estas que não haviam sido introduzidas no Tratado Constitucional. Mas o alcance prático, no plano jurídico, destas derrogações ainda permanece em aberto, na pendência da sua efectiva invocação junto dos tribunais nacionais envolvidos e dos próprios tribunais europeus, isto para além da imediata função política que tais derrogações manifestamente comportam e que foi, aliás, determinante para a sua aceitação pelos restantes estados-membros.

É possível, pois, concluir que o Tratado de Lisboa consagra directamente o estatuto materialmente constitucional da Carta dos Direitos Fundamentais no seu artigo 6.º (por remissão para a carta proclamada pelas três instituições europeias – Parlamento, Conselho e Comissão –), com as condições de aplicação constantes das denominadas «cláusulas horizontais» da carta (artigos 51.º a 54.º). Em paralelo, o mesmo tratado reforça a obrigação de adesão da União à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (por contraponto a uma mera cláusula de habilitação dessa adesão que se continha no Tratado Constitucional).

Acresce que os valores da cidadania europeia permanecem no cerne da definição do «interesse geral europeu», que cabe à Comissão zelar no exercício das suas funções e à luz das suas prerrogativas próprias de independência. Nesta vertente, não é de somenos que as prerrogativas, poderes e estatuto institucional da Comissão não tenham sido nem diminuídos nem afectados significativamente pelo novo equilíbrio resultante do quadro institucional instituído pelo Tratado de Lisboa (muito em especial no tocante ao monopólio do exercício da iniciativa legislativa, nos poderes específicos de controlo e de sancionamento dos estados-membros e no complexo de prerrogativas que os tratados lhe conferem no âmbito do processo legislativo face ao Conselho e face ao próprio Parlamento Europeu).

Ensina-nos a história destes cinquenta anos de integração europeia que uma coisa são os dados de partida, outra as realidades com que somos confrontados à chegada! Os tratados põem, a vontade política das instituições, dos estados-membros e dos cidadãos dispõem!

O fascínio do arquitecto que projecta uma casa não se queda apenas pelas formas que escolhe ou pelos espaços que concebe, mas estende-se sobretudo às possibilidades de projectos de vida que assim se abrem às pessoas que a vierem a ocupar e nela vierem a viver!

Os juristas que traçam os tratados, e os políticos que os aprovam e por eles assumem a responsabilidade política, embora desprovidos, tantas vezes, da pulsão estética do arquitecto, também sabem, contudo, que a dinâmica política de quem vier a ocupar os espaços abertos e preencher as margens de acção conferidas pelas leis é que verdadeiramente lhes traça o seu destino. E não raro são tão surpreendidos pelo uso feito das «suas» leis tanto quanto os arquitectos o são pelo concreto destino das «suas» casas…

 

A ESTRUTURA DE PILARES DA UE

Estas evidências são particularmente marcantes naquele ponto que se pode considerar como o mais inovador do Tratado de Lisboa traduzido na abolição da estrutura de pilares da União que havia sido introduzida pelo Tratado de Maastricht e a que o Tratado Constitucional já havia traçado um fim.

O Tratado de Lisboa pretendeu, assim, resolver a «questão maior» do estatuto jurídico da política externa e de segurança comum (instrumental para a afirmação do papel da União Europeia no mundo).

Decididos a reconhecer que a natureza estanque de uma política externa e de segurança comum exclusivamente intergovernamental (tal como consagrada desde Maastricht) não teria condições de perdurar no tempo (pelo menos à luz das ambições fixadas pela retórica dos líderes europeus face a um mundo em acelerada mudança…), mas, ao mesmo tempo, reconhecendo a inviabilidade de reunir o consenso necessário no sentido de uma pura e simples integração da PESC no quadro típico comunitário (a denominada «comunitarização»), os autores do Tratado Constitucional e, no essencial, de igual modo, os do Tratado de Lisboa acabaram por acolher uma solução híbrida – nem a continuidade de um «pilar» próprio de pura matriz intergovernamental nem a pura e simples subsunção da política externa e de segurança ao quadro típico do método comunitário, mas antes um modelo tributário de ambas as dinâmicas, segundo critérios de equilíbrio e de coexistência afeiçoados à especificidade das matérias em causa (muito em especial à componente de defesa, ancorada numa modalidade original denominada de «cooperação estruturada» e até certo ponto inspirada no modelo da União Económica e Monetária).

A solução assim encontrada traduziu-se, pois, na manutenção, no plano dos processos de decisão essenciais, dos concretos mecanismos típicos da cooperação intergovernamental (designadamente a dominância quase absoluta da regra da unanimidade na tomada de decisões), mas, ao mesmo tempo, no estabelecimento de uma «ponte» (ou um «ponto de convergência») com a componente especificamente comunitária, seja das relações externas comunitárias seja da vertente externa das políticas internas comunitárias – mediante a criação do cargo de alta representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança (liderando um Serviço Europeu para a Acção Externa autónomo em relação ao Conselho e à Comissão). Esta alta representante simultaneamente preside ao Conselho dos Negócios Estrangeiros (incumbindo-lhe a execução da política externa e de segurança na qualidade de mandatária do Conselho) e assume o cargo de vice-presidente da Comissão (nessa dimensão assegurando a coordenação das diferentes competências externas da Comissão).

Esta solução (que alguns diriam «tipicamente europeia», na precisa medida em que pretende recolher o melhor de dois mundos!) tem o mérito da denominada «ambiguidade criativa». Na realidade, o seu alcance último dependerá sobretudo dos quadros de referência e das acções que vierem a ser adoptadas na prática. Daí algumas das desconfianças já expressas quanto ao modelo escolhido. Com efeito, os defensores da comunitarização da PESC receiam que o modelo conduza à reapropriação das competências externas comunitárias por parte dos estados-membros (muito em especial por aqueles que têm uma dimensão mais activa das suas políticas externas e maior peso próprio na cena internacional), enquanto os intergovernamentalistas desconfiam que a «união pessoal» na alta representante das funções acima identificadas possa levar a uma progressiva «contaminação» da política externa e de segurança pelo método comunitário servido pela rodada máquina da Comissão…

Os próximos meses e os precedentes que neles forem criados permitirão ver mais claro quais serão as linhas de equilíbrio que progressivamente se estabelecerão entre estas dinâmicas identificadas, cada uma delas dotada das suas características próprias e do seu específico registo histórico. E se não é possível levar a débito do novo modelo institucional o recente falhanço da Cimeira de Copenhaga, e sobretudo o flop que foi a participação da União nessa mesma cimeira, em bom rigor também não é possível antecipar que, se o quadro institucional do Tratado de Lisboa já estivesse suficientemente implementado e devidamente rodado, as insuficiências de que União deu provas teriam podido ser efectivamente ultrapassadas…

Contudo, o que decerto ninguém poderá negar é que, em larga medida, o julgamento global sobre as virtudes do Tratado de Lisboa será sobretudo feito no terreno das diferenças que se vierem a registar no âmbito da PESC. Porque é neste plano que se joga a difícil afirmação do estatuto próprio da União Europeia num mundo em convulsão e em acelerada reformulação dos equilíbrios de forças globais. E porque, tendo disso consciência aguda, os próprios cidadãos europeus definirão a sua própria vontade e a sua predisposição para o consenso quanto ao aprofundamento da integração europeia, até no plano do desenvolvimento das próprias políticas internas europeias, à luz do valor acrescentado que a União represente na cena internacional.

Para tanto exige-se liderança e solidariedade. Dois valores que o arquitecto tinha decerto em mente quando projectou a «casa europeia» que leva a marca de Lisboa. Esperemos, pois, que também ele seja surpreendido positivamente pelo uso que dela venha a ser feito pelos seus ocupantes!