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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.24 Lisboa dez. 2009

 

O socialista e a sua cultura

Carlos Leone

 

 

EDUARDO LOURENÇO

A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?

Lisboa, Gradiva, 2009, 167 páginas

 

Desde a sua estreia literária, em 1949 (Heterodoxia), passaram já sessenta anos. É por isso particularmente adequado que esse aniversário sem celebração particular se perfaça com a publicação deste volume político, como nenhum outro desde há justamente trinta anos (O Complexo de Marx, na Dom Quixote). Eduardo Lourenço é desde há mais de um quarto de século o ensaísta laureado da democracia de Abril: a primeira celebração ocorreu por altura do seu sexagésimo aniversário, corria o ano de 1984, e a mais recente foi em 2008, num congresso sobre a sua obra, com actas no n.º 170 da revista da Fundação Gulbenkian, Colóquio Letras. Este novo livro de ensaios políticos dá boa conta das razões do seu excepcional estatuto intelectual. E mesmo que A Esquerda na Encruzilhada não seja já, quando esta nota de leitura for publicada, o seu trabalho mais recente, decerto a sua pertinência não sairá diminuída. Os leitores sabem bem disso, pois apesar de um muito discreto acolhimento mediático que nada justifica, a procura (segundo informações da editora) foi grande.

 

A OBRA E ESTA OBRA

Desde 1949 que Eduardo Lourenço pensa Portugal como Europa, tanto naquilo que não somos (o diálogo que nos falta) como naquilo que fomos (maxime na Expansão) e no que dificilmente temos conseguido ser. A relação entre Portugal e a Europa permite a Lourenço cruzar diversos planos de comentário: o plano social, em sentido lato; o plano cultural, quase sempre literário; o plano político, normalmente em clave ideológica; o plano histórico, ao menos enquanto revisão da historiografia portuguesa nas suas ambições e reflexo da consciência nacional. Desde sempre isso o destacou, mais pela sua capacidade do que pela originalidade da abordagem (o ensaio tem tradições em Portugal, e Lourenço teve entre seus mestres Sílvio Lima, o autor de Ensaio sobre a Essência do Ensaio). Nas últimas décadas, sobretudo desde a década de 1980, isso também o afastou do convívio das ciências sociais, cuja especialização crescente prossegue numa lógica contrária à «imagologia» de Lourenço e relativamente à qual já se procedeu a amargas trocas de acusação de ambas as partes. Em nenhum outro campo como no da política essa dissensão é mais sensivelmente percebida. Tanto analítica como emocionalmente, o ethos de Eduardo Lourenço em nada se confunde com os eternos jovens da análise política nacional ou com os especialistas em microcampos académicos chamados a comentários mediáticos a respeito de tudo e que hoje pululam nos media.

Ao contrário do que pode parecer, Eduardo Lourenço não pensa a política apenas a espaços. Pelo contrário, e bem na linha do melhor ensaísmo português, pensa-a em relação com a cultura. Assim com o Carlos de Oliveira de Aprendiz de Feiticeiro, assim com o António Osório de Mitologia Fadista, assim com o Adolfo Casais Monteiro do País do Absurdo, e, claro está, assim sucede também numa das obras maiores e mais abertamente políticas de Lourenço (O Fascismo Nunca Existiu, Dom Quixote, 1976). Ora, estes ensaios políticos que Lourenço publica em 2009 mantêm um diálogo com a cultura portuguesa na sua dimensão política, um diálogo que não passa tanto pela interpelação de outros autores (há já muito que a obra de Lourenço acusa uma certa insularidade) como pela relação entre as suas próprias obras. Assim, nestes ensaios políticos deparamo-nos sem surpresa com o prolongamento de ensaios anteriormente publicados em Destroços (Gradiva, 2004). Este prolongamento retoma o tema do nosso diálogo cultural claudicante com a Europa, já denunciado por Lourenço como sendo apenas um efeito do nosso diminuto diálogo interno (apenas «sublimado» numa das suas consequências, a indiferença do «outro» face a nós); onde Destroços era cuidadosamente focado nas figuras culturais desse diálogo cultural em falta (o polemismo, os estrangeirados), A Esquerda na Encruzilhada volve-se na análise política, verbalizando o diálogo de que carecemos. Disso mesmo não restam dúvidas a quem lê o reconhecimento de «mais uns dos meus fantasmas de «estrangeirado» à força» (p. 18) ou a reflexão serena sobre a particular tragédia lusíada (os «nossos», itálico do original) com a não-democracia (em particular pp. 76-77). Esta imagem da cultura portuguesa como verdadeira condicionante da política nacional é, também ela, ideia maior da reflexão ensaística (e, entretanto, sociológica) sobre Portugal: Sérgio, claro, críticos de Sérgio como Lourenço, cientistas sociais influenciados por Sérgio (Hermínio Martins), ou nem por isso (Adérito Sedas Nunes), e até mesmo investigadores sociais mais novos (cf. texto de Renato Carmo no volume celebratório dos vinte e cinco anos do ICS). Pois bem, se a tese do primado do social é dominante na obra de Lourenço, o que traz de novo este livro de ensaios sobre as questões propriamente políticas?

 

POLÍTICA E SOCIALISMO ÉTICO

Desde logo, uma evocação sintomática do socialismo real nacional. Sintomática por destacar Eduardo Lourenço como autor no contexto marcado hoje pelas ciências sociais e o seu eterno presente (o que se aplica cada vez mais à nossa História) e, ao fazê-lo, revelar os próprios sentimentos de Lourenço face às figuras desse socialismo, de Antero a Sérgio. A tese que apresenta, a da natureza moral do socialismo em Portugal, que aproxima este socialismo do imaginário católico (curiosamente, mesmo quando fala de laicidade, como na p. 131, nunca discorre sobre a Maçonaria), introduz assim uma perspectiva conceptual e histórica sobre a tradição intelectual mais longa e fecunda da Esquerda portuguesa, hoje corporizada no Partido Socialista, enquanto, em simultâneo, situa Eduardo Lourenço nessa mesma tradição.

Sucede que, faltando o diálogo entre essa Esquerda e as «outras» (já para não falar das dificuldades em cultivar um diálogo interno a cada Esquerda), Lourenço compensa esse défice com a recuperação de textos seus já com mais de duas décadas, evidenciando sem desnecessário alarde as consequências políticas das encruzilhadas históricas em que a Esquerda parece gostar de se reencontrar. Leia-se a este respeito as palavras límpidas e directas como poucas outras sobre a Esquerda e a Direita (a pp. 54-55) e medite-se sobre a pertinência da sua inclusão neste volume em 2009, surgido pouco antes das eleições legislativas. De certo modo, mesmo essas análises mais próximas da política partidária integram a reflexão mais ampla sobre o carácter duplamente excepcional da vida democrática: excepcional pela sua fragilidade; duplamente excepcional pela inaptidão que a cultura de intolerância nacional revela para o exercício das virtudes democráticas. E, por maioria de razão, para o desenvolvimento do socialismo em democracia.

Com efeito, se bem lemos Eduardo Lourenço, o caso português (o do socialismo em Portugal e o da democracia depois de 1974), ilustra as consequências políticas de uma cultura não-moderna, renitente ao individualismo (de novo, Sérgio ecoa) e, por isso mesmo, débil também na reflexão socialista quanto ao modo de criar uma sociedade solidária que impeça a conversão do individualismo numa ditadura de massas e do indivíduo no sujeito isolado, joguete das peripécias da Fortuna (cf. pp. 102-108). Longe de aderir ao discurso sobre o fim da política, vendo as sociedades democráticas como hiperpolitizadas num processo de identificação do poder com o poder político e deste com os partidos (cf. pp. 113-116), Eduardo Lourenço revela aos mais desatentos a acuidade política da sua análise ao lembrar como a redução do liberalismo ao plano económico o converte na sua própria «contrafacção», «pseudo-ideológica e pseudo-política» (p. 117), sem, com isso, se iludir quanto ao significado do triunfo generalizado de tal pseudoliberalismo: «Devemos aprender a viver – social mas também politicamente – num mundo que, seriamente falando, deixou, em todos os domínios, de crer na transcendência da Lei» (p. 118). O fim do império da Lei, longe de excitar o ensaísta de ascendência existencialista que Lourenço também é (ainda hoje, sim), é percebido sem rodeios nem paliativos como o nosso problema político.

Ora, para esse problema não encontramos resposta cabal. Nem aqui, nem na Obra de Lourenço, pois não se trata de nenhum cabotino com pose professoral. Nos muitos textos que aqui reúne (e pena é que vários outros publicados de forma ocasional no último lustro, pelo menos, não se encontrem aqui também), Eduardo Lourenço ora se aproxima de temas caros à «verdadeira Esquerda» que critica o socialismo que é o seu (cf. pp. 133-148, os tópicos do imperialismo americano), ora se demarca de alguns lugares comuns sobre o diálogo de civilizações (pp. 153-156), exprimindo sempre uma voz pessoal e (para variar este termo aplica-se) inconfundível. Mas a resistência aporética (termo nosso) da política a soluções não é considerada por um analista demasiado avisado como Lourenço, que sempre prefere definir-se em função do socialismo. E, nisso como em tudo, o seu gosto pelo enigma e pela tragédia fazem todo o sentido. Para quem o souber (e quiser) ainda ler, vale a pena terminar dando-lhe a palavra, a propósito das descrições comuns de tal concepção de socialismo e de política como «utópica»:

«De certa prática “socialista” e ainda mais de históricas encarnações do Socialismo é possível pensar-se, com alguma dose de má-fé, que essas descrições correspondem à verdade. Mas o Socialismo não é uma religião nem, a bem dizer, uma filosofia ou uma visão do mundo. É apenas a tentativa de encarnar, na medida do possível, o máximo de liberdade, de justiça e equidade na ordem económica e social no mundo que habitamos. Desta exigência ninguém é sujeito. Ou somo-lo todos, pois essa ideia emerge da aventura milenária dos homens, é-lhe coessencial e prosseguirá com ela.» (p. 69).