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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.24 Lisboa dez. 2009

 

O destino americano num mundo imprevisível

Luís Pais Bernardo

 

 

FAREED ZAKARIA

O Mundo Pós-Americano

Lisboa, Gradiva, 2008, 256 páginas

 

O mundo contemporâneo está centrado na Ásia. A ascensão da China e da Índia constituem argumentos de peso a favor dessa asserção. Essa é, pelo menos, a conclusão de alguns dos participantes no debate relativamente recente em torno da reconfiguração do sistema internacional. Fareed Zakaria, editor da Newsweek International e doutorado em Harvard, partilha dessa perspectiva, acrescentando, como corolário lógico, que os Estados Unidos devem constatar a sua posição regressiva no sistema internacional, cuja configuração já não depende de uma potência hegemónica.

 

A ASCENSÃO DE TODOS OS OUTROS

O Mundo Pós-Americano constitui, portanto, um exame da configuração do sistema internacional num contexto de complexidade crescente, em que os fenómenos emergentes terão uma importância cada vez maior. No dealbar do século xxi, o sistema internacional enfrenta um profundo processo de mutação, marcado pela «ascensão dos demais», referência clara a uma das obras fundadoras da história global, The Rise of the West, da autoria de William McNeill. Os «demais», neste contexto, são, essencialmente, as duas potências asiáticas emergentes. No mundo pós-americano, a China será o «concorrente»; a Índia, por seu lado, será o «aliado». Esta classificação, pela manutenção da centralidade dos Estados Unidos na definição do sistema internacional, coloca em causa o axioma básico da obra: a ideia de que o mundo já não funciona em torno de duas facções, pró e anti-americana. Com a intensificação dos fluxos, comunicações e trocas globais, essa classificação deixou de ser apropriada, segundo Zakaria. De acordo com o autor, esta intensificação, que acarreta crescimento económico, acarreta o risco da eclosão de novos nacionalismos (p. 218), cujos ideólogos definem o seu posicionamento num mundo crescentemente complexo em termos muito mais amplos do que uma mera reacção à maior potência mundial.

 

A CENTRALIDADE DOS ESTADOS UNIDOS NO SISTEMA INTERNACIONAL

No entanto, a nomenclatura utilizada para a caracterização da China e da Índia como potências emergentes – «concorrente» e «aliado» – reflecte a manutenção da centralidade dos Estados Unidos: os novos actores são definidos relacional e não ontologicamente, ao passo que a potência central é sempre entendida como unidade atribuidora de significado. E, apesar das referências mais ou menos duvidosas à existência de um nexo causal entre cultura – entendida, no âmbito conceptual da obra, como quadro referencial de construção da realidade – e grandes opções políticas, essa é uma categorização que o autor não desmistifica. Existe, portanto, uma tensão permanente entre a perspectiva culturalista (pp. 108-113, 148-152) e racionalista (pp. 121-125, 152-156), que fragiliza o poder explicativo da obra. Ainda assim, a ideia de que o confucionismo e as múltiplas instâncias do hinduísmo, dado o seu carácter estruturante da cosmovisão chinesa e indiana, são factores importantes no posicionamento estratégico de ambas as potências, malgrado a sua relativa simplicidade, não deixa de ser interessante.

No mundo pós-americano, o grau de intensidade da «ascensão dos demais» é inversamente proporcional ao grau de unipolaridade. No entanto, os Estados Unidos continuarão a ser centrais para a configuração do sistema internacional. Nesse sentido, Zakaria é tributário de Samuel Huntington, seu orientador em Harvard e proponente do conceito de unimultipolaridade. Contudo, deve levantar-se a questão de saber por que é que a distribuição de poder, no sistema internacional contemporâneo, é tida como jogo de soma nula, ou seja, por que é que existe um limiar máximo de poder agregado distribuído ao longo de todo o sistema, em vez de se entender esse limiar como variável e adaptável ao contexto. A proposta do autor dirige-se, na prática, para esta noção, já que se centra na ideia de que a manutenção da centralidade dos Estados Unidos depende do soft-power americano, uma função da atractividade exercida pelo pluralismo democrático e pela realidade sociocultural daquele país.

 

O PAPEL DA CHINA E DA ÍNDIA NUM NOVO SISTEMA

O grau de afastamento ou proximidade da China e da Índia, relativamente ao ideal democrático, parece definir a grelha analítica do autor. De facto, a China é, para Zakaria, governada por uma autocracia cujo mérito terá sido a compreensão de que uma economia de mercado, aberta e globalizada, era uma boa estratégica de sobrevivência (p. 95). A disciplina imposta por um planeamento centralizado parece ser a resposta para o grau diferenciado de desenvolvimento entre a China e a Índia. Em Nova Deli, uma espécie de caos estrutural, consequência de uma sociedade civil vibrante, tem impedido um arranque económico tão impressionante como o chinês.

Contudo, o desempenho económico não é a prioridade normativa do autor. O carácter ensaístico da obra é revelado nos capítulos votados à análise dos contextos políticos chinês e indiano: é formulado um binómio governo-sociedade civil, extremamente útil para a diferenciação dos casos. Na China, o governo, pelas suas características, tem conseguido dirigir a sociedade civil no sentido do desenvolvimento económico, ou seja, a China desenvolve-se apesar da turbulência sociopolítica dos últimos sessenta anos (especialmente até 1976). Na Índia, a sociedade civil, vibrante e dinâmica, consegue propulsionar o país, apesar das fragilidades inerentes a um regime democrático federalizado, estabelecido num país com quase mil milhões de habitantes – o autor dá vários exemplos, incluindo a ascensão do bjp e a volatilidade eleitoral recente. Zakaria procura, em suma, contrastar os casos. O objectivo é relativamente claro: inferir a posição da China e da Índia no mundo pós-americano, a partir das dinâmicas internas e da definição de prioridades estratégicas a médio prazo. Assim, a China não poderá prosseguir a sua política de «ascensão harmónica» sem enfrentar problemas de fundo, dada a sua significância quantitativa em quase todas as esferas da economia política global – o que acarretará uma mudança das relações sino-americanas; a Índia, por seu lado, terá de lidar com duas instâncias imprevisíveis – o seu contexto interno e o mundo unimultipolar.

Embora o autor descreva, com relativa exactidão, a história recente do sistema internacional, a sua enfatização do papel da China e da Índia parece ligeiramente enviesada. Consideramos evidente que os processos de integração regional na Ásia seguirão uma trajectória diferente daquela que se encontra noutros contextos. No entanto, e num mundo de complexidade crescente, em que a emergência desempenha um papel cada vez mais relevante, é possível afirmar que a integração regional está dentro dos propósitos estratégicos de ambas as potências, ancorando-as a objectivos mais localizados do que a globalização da sua visão estratégica.

 

O DESTINO DOS ESTADOS UNIDOS NUMA ENCRUZILHADA

O verdadeiro desafio, contudo, não será enfrentado pelas potências emergentes. Como a Grã-Bretanha, outrora (e a comparação é efectuada pelo autor), os Estados unidos terão de lidar com o seu declínio absoluto. No entanto, ao contrário da Pax Britannica, a Pax Americana não será ameaçada pela dispersão do poder económico. A «maior potência da história» enfrentará um desafio especificamente político e não conta, para isso, com dinâmicas institucionais apropriadas. O «desígnio americano» é ameaçado por uma «dissensão de Washington»: o fim do «Vital Centre», como formulado por Arthur Schlesinger Jr., e a emergência de um movimento ultraconservador – que tem vindo a dominar o Partido Republicano, de acordo com, por exemplo, Paul Pierson –, ditou o fim dos consensos bipartidários em ambas as câmaras legislativas dos Estados Unidos. De facto, a obra de James Madison, segundo Fareed Zakaria, está, agora, sob a ameaça de um quadro político cada vez mais disfuncional. Ao mesmo tempo, a economia americana continua extremamente pujante e de valor acrescentado muito superior a todas as outras. A sociedade civil americana continua a demonstrar o vigor evidente nas páginas de Tocqueville. O autor dá, de resto, um exemplo muito interessante: as universidades americanas, apesar de produzirem menos engenheiros e especialistas técnicos do que a China e a Índia, detêm um grau de competência e atractividade global que as coloca num patamar inteiramente diferente do das suas congéneres. De acordo com Zakaria, o ataque ideológico às universidades, enquadradas como bastiões da esquerda liberal, é um sinal da disfunção política dos Estados Unidos, que se revela no modo como o país tem lidado com os imigrantes indocumentados, e, além disso, com as reservas, demonstradas por uma amostra alargada da população americana, relativas à economia de mercado. Exportar o pluralismo democrático, neste contexto, torna-se cada vez mais difícil: se o soft-power é uma das garantias da manutenção dos Estados Unidos como actor internacional fundamental, coloca-se, aqui, um profundo dilema.

 

AVALIAR O MUNDO DEPOIS DA PAX AMERICANA

O «mundo pós-americano» é uma experiência de pensamento. Como simulação, traça um caminho descendente para os Estados Unidos. O autor oferece, de resto, seis orientações profilácticas aos decisores norte-americanos, elidindo a fronteira entre ensaio e policy paper. Em todas elas parece evidente a ideia de gestão dos danos, ou seja, qualquer mutação do sistema internacional será desfavorável aos Estados Unidos, caso a disfunção institucional não seja rapidamente contrariada. A ascensão de novos actores do «resto» do mundo terá de ser encarada sob o prisma de Bismarck, não da Grã-Bretanha (p. 225). O «mundo pós-americano» continuará, na opinião de Zakaria, a ser definido em torno da maior potência de toda a história. Caberá aos Estados Unidos, encontrar uma solução para a disfunção institucional de que padecem. De outro modo, não conseguirão enfrentar o desafio da «ascensão dos demais».