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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.24 Lisboa dez. 2009

 

A construção da paz

Relações e futuro

Catarina Pimenta

 

 

OLIVER RICHMOND

Peace in International Relations

Routledge Studies in Peace and Conflict Resolution, 2008, 218 pp.

 

A relevância maior da obra de Richmond é a de suprimir, de um só fôlego, duas lacunas persistentes no campo das relações internacionais (ri). Em primeiro lugar, trata da inclusão da problemática da paz nas construções teóricas da disciplina, quer no âmbito dos paradigmas clássicos (identificados com os pensamentos de matriz idealista, liberal, realista e marxista), quer no contexto de propostas mais recentes (pós-positivistas, particularmente as das teorias críticas e pós-estruturalistas). Em segundo lugar, refere-se à apresentação de alternativas epistemológicas, ontológicas e metodológicas, à forma como a paz tem sido concebida e implementada, a qual, do ponto de vista do autor, se transformou numa paz hegemónica, imposta como um conceito ontologicamente estável e permanente, legitimador do exercício de determinado tipo de poder.

 

A TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS REVISITADA PELOS ESTUDOS PARA A PAZ

A revisitação proposta por Richmond, com especial enfoque sobre a construção teórica da paz que as diversas escolas de pensamento apresentam, revela o conhecimento e o rigor profundos com que as apresenta e desconstrói, escapando sempre a tentações simplistas e redutoras. Pela pena de Richmond relembram-se os motivos de distanciamento e, mais relevante, porque tantas vezes negligenciados e diminuídos, os pontos de contacto entre as várias propostas teóricas. Na verdade, a propósito da visão que cada uma delas apresenta sobre a paz – umas vezes de forma expressa, outras quase por omissão (como no caso particular do realismo) –, o autor recupera um pressuposto essencial em teoria das relações internacionais: o de que, apenas para efeitos de facilidade de exposição, os diversos contributos se apresentam tão distintos e, por vezes, até antagónicos. Porque, na verdade, a caricatura que representa os grandes debates teóricos em ri, com a valorização de supostas dissemelhanças registadas a vários níveis (ontológico, metodológico e epistemológico), não traduz, com rigor, a complexidade inerente ao processo de construção e de definição teóricas.

A este propósito, Richmond ilustra com uma interessante análise comparativa (ainda que não inédita) entre o marxismo – considerado pelo autor uma epistemologia positivista, à semelhança do que é defendido pela maioria dos especialistas – e a teoria crítica pós-positivista, com o conceito de «emancipação» a aproximar claramente as duas propostas. A respeito ainda da recusa de distinções artificiais, regista-se o modelo «híbrido» que Richmond elabora a partir de ideias associadas ao realismo, «idealismo» e liberalismo, salientando as suas semelhanças, em termos de construção teórica (e também política) da paz. O abandono deliberado da facilidade caricatural, com a inevitável dissecação das diferenças, sem contudo negligenciar o precioso trabalho de valorização e interpretação dos pontos de aproximação entre os vários contributos teóricos em relações internacionais, particularmente naquilo que se refere à visão que cada um elabora sobre a paz, é, na verdade, uma das grandes contribuições desta obra para os estudos para a paz e para a teoria das relações internacionais.

 

A CONSTRUÇÃO POLÍTICA PAZ

O modelo de paz liberal que tem sido implementado um pouco por todo o mundo é considerado por Richmond um mecanismo que reflecte uma paz política, distante da vida quotidiana dos indivíduos (privilegiando a paz entre os estados), perpetuadora das causas profundas, subjacentes aos conflitos. Os projectos e os processos de paz são tidos como realidades tão aparentes, que a percepção da sua suposta evidência e facilidade dificulta a resposta ao núcleo de questões essenciais: o que é a paz, quem a cria e promove, por que motivos, em nome de que interesses e para quem?

A alternativa oferecida pelo autor prende-se com uma abordagem genealógica, pautada pelo pluralismo metodológico e pela defesa de perspectivas multidisciplinares, requisitos essenciais para a construção de um modelo conceptual e operacional de paz, que respeite a sua dimensão multinível (desde o local ao global). A agenda para a paz proposta passa por dotar as comunidades locais do controlo do processo de paz a que são sujeitas e pelo apoio internacional a esses projectos, sem que isso signifique a criação de dependências dessas áreas relativamente à intervenção externa. Assim, é necessário que a acção dos actores de peacebuilding não se paute pela formulação e aplicação de modelos universais a qualquer situação, mas que o foco principal da agenda teórica e prática se desloque das instituições para a vida quotidiana dos indivíduos.

De facto, no âmbito dos estudos para a paz, o autor elabora sobre a estreita relação entre a investigação académica e a acção política. Desde a sua origem que os peace studies assumem a intenção de se revestirem de uma dimensão prática, manifestada em influência directa sobre o comportamento dos agentes políticos. Mas Richmond vai mais longe, aliando ao conceito de relação causal unívoca uma noção cíclica de influência mútua («relacionamento biunívoco entre o meio académico e o meio dos decisores políticos», nas palavras de J. G. Cravinho[1]). É nesse contexto que considera que a reprodução de um modelo uniforme de paz está relacionada com a defesa de interesses de determinados grupos e políticas.

Este livro é, na verdade, uma recusa da «regra da parcimónia», tal como formulada por Nye, citando Guilherme de Occam: «as boas explicações eliminam os pormenores desnecessários»[2]. Para Richmond, a «navalha de Occam» não serve como ponto de partida para a construção de uma teoria e prática da paz que satisfaça o objectivo último de garantir a paz efectiva, vivida no seio das populações. A parcimónia tem sido, aliás, na sua opinião, um dos problemas maiores das teorias de ri, em geral, e dos estudos para a paz, em particular, cujas explicações não têm conseguido concretizar o principal objectivo que assistiu à fundação das ri, enquanto disciplina académica, em 1919, e que orientaria igualmente a génese dos peace studies décadas mais tarde: encontrar mecanismos que erradicassem os conflitos armados e criassem condições para uma paz permanente e profícua.

 

A MEDICINA SOCIAL DOS ESTUDOS PARA A PAZ

É nesse sentido que, utilizando um paralelismo que, décadas mais tarde, seria recuperado pelos fundadores dos estudos para a paz (particularmente por Johan Galtung, um dos seus nomes mais ilustres), J. G. Cravinho considera que «para os fundadores da disciplina universitária, ri era uma ciência social aplicada: tal como a medicina estudava as formas de curar o corpo humano,ri tratava de encontrar formas de atacar os males de     que padecia o sistema internacional»[3]. O que nos leva a questionar, como sucede com Richmond, o sentido da existência da disciplina de RI: senão para a paz, para que serve? Neste contexto, os estudos para a paz são a recuperação, na década de 50 do século XX, da formulação original da própria disciplina de ri, quarenta anos antes.

Uma disciplina que Richmond considera claramente insuficiente para, agindo isoladamente, responder, por um lado, aos desafios que a construção da paz acarreta e, por outro lado, colocar a problemática da paz na agenda teórica das ri. A proposta que apresenta no sentido de conferir maior visibilidade ao conceito e à construção política da paz na disciplina de relações internacionais passa, então, por apostar numa abordagem multidisciplinar. Concordando na essência com este enunciado, considero, todavia, que, ainda que acolhendo conceitos e abordagens próprios de outras disciplinas – mais vocacionadas para a esfera micro e individual –, as ri não deverão negligenciar uma dimensão estatal e institucional como aquela que enforma as contribuições de outras áreas académicas (que privilegiam abordagens mais fluidas e informais), sob pena de esvaziar o conteúdo que as distingue de ciências sociais «limítrofes».

A perspectiva bottom-up que emerge da obra de Richmond e da obra de uma série de autores seus contemporâneos (R. Muggah e M. Duffield, entre outros) tem identificado as principais fragilidades (e consequente crise) do modelo de construção de paz dominante, particularmente no que se refere à reprodução e perpetuação das causas profundas de conflitualidade, as quais não são atendidas pelos mecanismos de direcção top-down. Mas matéria que ainda não foi abordada de forma sistematizada, pese embora algumas pistas fornecidas por Richmond, é a que corresponde à forma como se concretiza, em termos muito pragmáticos, a articulação entre as abordagens top-down e bottom-up, ou seja, como é que se envolve a sociedade civil local em projectos de âmbito internacional. A transferência do controlo das operações para os agentes locais é, a priori, uma proposta muito promissora. Todavia, a questão que se me apresenta como essencial é a de saber como se criam as condições para que tal aconteça, ou seja, a principal dificuldade operacional reside, a meu ver, a montante do debate top-down versus bottom -up ou da alternativa (perfilhada pelo autor) que procura maximizar e conciliar as vantagens de cada um dos modelos e aquilo que representam concretamente em termos de peacebuilding.

É que, como prevê o autor, enquanto a necessidade de uma paz pluralista, heterogénea e distinta da paz hegemónica não se fizer sentir nas sociedades demoliberais nem pelos Estados que as representam, dificilmente os apelos de académicos como Richmond encontrarão eco na acção dos decisores políticos e se realizará o propósito original das relações internacionais e dos estudos para a paz.

 

NOTAS

[1] Cravinho, João Gomes – Visões do Mundo. As Relações Internacionais e o Mundo Contemporâneo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002.        [ Links ]

[2] Nye, Joseph S. – Compreender os Conflitos Internacionais. Uma Introdução à Teoria e à História. Lisboa: Gradiva, 2002.

[3] Cravinho, João Gomes – Visões do Mundo. As Relações Internacionais e o Mundo Contemporâneo, p. 106.