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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.24 Lisboa dez. 2009

 

Os portugueses na Venezuela

Nancy Gomes[*]

 

 

Na Venezuela, há aproximadamente meio milhão de portugueses. Trata-se da segunda maior comunidade portuguesa na America Latina, a seguir ao Brasil. Perfeitamente integrados na sociedade venezuelana e desde o ponto de vista da actividade económica, os portugueses na Venezuela hoje exigem um papel mais activo do Governo portugues na defesa dos seus interesses. Assuntos como a seguranca e o comércio são alvo das principais preocupacões dos portugueses na Venezuela. Reforçar o eixo ibero-americano, um dos principais objectivos da política externa de Portugal hoje, passa necessariamente pela institucionalização de uma relação histórica, cultural mas tambem humana de mais de quinhentos anos, assim como pelo reforco da cooperação nas áreas, política e económica, mas tambem educativa e cultural.

Palavras-chaves: Emigração, portugueses, Venezuela, cooperação

 

The Portuguese community in Venezuela

In Venezuela there is approximately half a million of Portuguese. With the exception of Brazil, this is the largest Portuguese community in Latin America. Fully integrated in Venezuelan society and with a relevant stand in terms of their role in the local economy, today the Portuguese in Venezuela reclaim a more active role of the Portuguese Government in terms of the defence of their interests. Issues such as security and trade are subjects of the main concern of the Portuguese of Venezuela. If to strengthen the Ibero-American axis is today one of the main goals of Portuguese foreign policy, it must pass necessarily by institutionalizing historical, cultural and human relations dating more than 500 years ago, as well as strengthening forms of cooperation, not only political and economical but also educational and cultural.

Keywords: Emigration, Portuguese, Venezuela, cooperation

 

A seguir ao Brasil (com aproximadamente 700 mil pessoas), a Venezuela é o segundo país da América Latina com maior número de portugueses, calculando-se que sejam cerca de 500 mil[1]. Dessa população, 75 por cento são naturais da Região Autónoma da Madeira[2] – número considerável tendo em atenção o somatório de habitantes residentes na ilha que é de aproximadamente 245 011 pessoas (censo de 2001) – havendo ainda alguns contingentes oriundos dos distritos de Porto, Coimbra e Aveiro.

 

DE PORTUGAL PARA A VENEZUELA

OS PRIMEIROS PORTUGUESES NA VENEZUELA: EMIGRAÇÃO ESPONTÂNEA

Os portugueses estão na Venezuela desde a época dos Descobrimentos (1492). Há registos históricos que assinalam que com Cristóvão Colombo viajavam vários tripulantes portugueses[3]. A «pequena Veneza» de Amerigo Vespucci atraiu navegantes portugueses como João Vizcaino, piloto na expedição que fizera Alonso de Ojeda. Alguns historiadores referem também que, em 1496, quando o rei D. Manuel I expulsa de Portugal os judeus que não querem converter-se ao cristianismo, muitos portugueses foram obrigados a procurar refúgio na Holanda. Da Holanda partiram para as Antilhas Holandesas, nas Caraíbas. A proximidade geográfica determinou a passagem de mais alguns portugueses de Curação para a Venezuela.

Durante o período da colonização do território, destaca-se o nome de João Fernandes de Leão e Pacheco[4], fundador (1593) da cidade de Guanare, capital de Portuguesa (um dos 23 estados que compõem a Venezuela). Segundo a opinião de vários genealogistas, este português é também ascendente do libertador Simón Bolívar.

Apesar de a presença dos portugueses ser efectiva no século XVI, alguns historiadores afirmam que a primeira comunidade de portugueses se fixou na região só no princípio do século XVII. Neste sentido, Saignes refere que Filipe II de Espanha permitiu em 1601 que os portugueses circulassem livremente e se estabelecessem nas suas colónias da América – incluindo a Venezuela – com a missão, entre outras, de evangelizar os povos[5].

Mais tarde, no século das independências latino-americanas, temos o registo de que alguns portugueses lutaram ao lado de Simón Bolívar pela libertação da América Hispana. Entre outros, o nome de José Inácio de Abreu e Lima, nascido no Brasil em 1794, consta no monumento «La Nación a sus Próceres», localizado numa das principais avenidas de Caracas.

 

UMA POLÍTICA DE IMIGRAÇÃO BASEADA EM CRITÉRIOS DE ORIGEM

Depois de uma época marcada pelas lutas políticas internas, António Gusmán Blanco assumiu o poder na Venezuela em 1870. Descendente de famílias das Canárias, promoveu a imigração europeia, facilitando sobretudo a entrada de pessoas oriundas destas ilhas para terras venezuelanas. Junto foram alguns portugueses.

Já no século xx, a comercialização do primeiro poço petrolífero da Venezuela pela Caribbean Petroleum Company, em 1914, e o processo de industrialização que se segue, estimularam a chegada de mais uma importante vaga migratória proveniente da Europa, especialmente de espanhóis, italianos e portugueses. Note-se também que, a partir da década de 1920, uma vez mais a proximidade geográfica junto às atractivas oportunidades de emprego na Venezuela, estimulou a chegada de um contingente de trabalhadores portugueses que tinham partido do porto do Funchal, para ir trabalhar nas refinarias de petróleo instaladas na ilha de Curação.

Com a política de imigração do general Eleazar López Contreras, Presidente entre 1836 e 1941, foi aplicado um Plano Global de Modernização Económica que implicava a entrada de trabalhadores estrangeiros provenientes principalmente da Europa, com o fim de atender a procura nos sectores da agricultura e da construção com mão-de-obra especializada e com experiência nestas áreas. Mas é entre 1947 e 1957 que podemos falar de um verdadeiro boom de imigrantes. Há registo de que durante este período entraram na Venezuela perto de 800 mil imigrantes. Duas razões são apontadas: as difíceis condições de vida na Europa do pós-guerra e a política, uma vez mais favorável à imigração europeia, do novo Governo do general Marcos Pérez Jimenes, que governou o país entre 1952 e 1958[6].

Entre os anos 1940 e 1960 muitos portugueses refugiaram-se também na Venezuela por motivos políticos. O mais conhecido dos exilados políticos foi Henrique Galvão, um ex-capitão português que ali se fixou em Novembro de 1959. Galvão irá protagonizar o primeiro sequestro de um navio para um protesto político, contra duas ditaduras, a de Portugal e a de Espanha[7].

 

OS ANOS 70 E O AUGE PETROLÍFERO, NOVO ESTÍMULO À IMIGRAÇÃO

Em 1958 termina a politica de «portas abertas»[8]. Razões de índole política – de oposição à estratégia mantida pela Ditadura durante os anos 1950 – mas sobretudo de índole económica levaram o Governo de Rómulo Betancourt a fechar as fronteiras aos imigrantes, principalmente aos europeus cuja mão-de-obra exercia grande pressão sobre o mercado de trabalho interno[9]. De facto, a recessão que se viveu na Venezuela a seguir a 1958, provocou uma taxa de desemprego generalizada no país. Como consequência da nova política de imigração adoptada pelo Governo democrático e até 1973, a média relativa à imigração estagna em 13 mil estrangeiros por ano.

A partir de 1973-1974, em parte graças ao boom petrolífero que ocorreu na Venezuela[10], o movimento migratório que tinha começado a estagnar a partir de 1958, revigora-se. A grande maioria é de origem latino-americana mas junto vêm também muitos portugueses. De facto, com a crise europeia que deriva principalmente do aumento do preço do petróleo, a Venezuela volta a ser um dos destinos preferidos para a emigração portuguesa.

Por outro lado, e depois do 25 de Abril de 1974, sabemos que Portugal vive momentos difíceis em termos institucionais, económicos e políticos. O aumento do desemprego e a desvalorização da moeda, entre outras, são razões apontadas para explicar nesta conjuntura a saída de muitos portugueses. 

 

ANOS 1980: JUNTO COM A CRISE ECONÓMICA ESTAGNA A IMIGRAÇÃO NA VENEZUELA

A década perdida na América Latina foi, entre outras razões, resultado do desmedido aumento da despesa pública interna e por consequência do excessivo endividamento. Em 1989, a consequente deteriorização económica e social na Venezuela traduziu-se no «caracazo»[11], uma autêntica revolta popular em protesto pelo aumento dos impostos decretado na segunda presidência de Carlos Andrés Pérez (1989-1993). E com a crise dos anos 80 a imigração estrangeira na Venezuela estagna uma vez mais[12].

O descrédito e a pouca legitimidade do regime agravaram-se depois da tentativa inesperada de golpe de Estado encabeçada em 1992 pelo coronel Hugo Chávez Frias, da destituição do Presidente Carlos Andrés Pérez em 1993, acusado de corrupção, e pela instabilidade vivida durante a presidência de Rafael Caldeira (1994-1999).

As condições económicas e políticas, mas sobretudo as condições sociais internas alteraram-se e, com elas, as razões para que muitos portugueses fossem ou continuassem a viver na Venezuela. É fácil constatar hoje, num Portugal integrado no espaço da União Europeia, que também são outros os destinos e os padrões da emigração portuguesa.

Na Venezuela, a Constituição bolivariana, aprovada a 15 de Dezembro de 1999, reconheceu, entre outras prerrogativas, a dupla nacionalidade aos estrangeiros com mais de uma década no país. Consequentemente, e segundo informações do Consulado-Geral de Portugal em Caracas, nos últimos anos aumentou significativamente a afluência de cidadãos nascidos em Portugal – que entretanto tinham renunciado à nacionalidade portuguesa – e de luso-descendentes, para adquirirem a nacionalidade portuguesa.

 

«Não há estatística sobre regressos (à terra), vinca Brazão de Castro, secretário do governo regional (da Madeira) que tutela a emigração: abundam luso-descendentes com dupla nacionalidade e portugueses com residência dupla que se movem sem registo. Há, como repara o historiador Alberto Vieira, uma evidência ‘a Venezuela sente-se nas caixas dos supermercados, nas lojas dos centros comerciais, nos corredores da Universidade da Madeira, nas noites da discoteca Copacabana… Não só no vozear afectado, também na música que esvoaça de repente, nos produtos arrumados nas prateleiras, nos salgados expostos nos cafés mais insuspeitos. A arepa, a mais popular expressão culinária venezuelana, infiltrou-se no quotidiano da região. Manuel Bonito nunca importou tanta Harina Pan’».[13]

 

ALGUNS ASPECTOS DA INSERÇÃO CULTURAL DOS PORTUGUESES NA SOCIEDADE VENEZUELANA

Os nomes Teixeira, Silva, Oliveira, Pereira, Mendes, Castro, Machado, Costa, Pinho, entre tantos outros, são já nomes comuns na Venezuela. A inserção dos portugueses na sociedade venezuelana manifesta-se também claramente na elevada afluência e participação dos luso-descendentes nas diferentes escolas e universidades do país; na divulgação permanente e constante dos nomes de Luís de Camões e de Fernando Pessoa; na troca gastronómica que fez dos portugueses adeptos entusiastas da arepa, da empanada de cazón, do pabellón criollo, da chicha. Em contrapartida, os venezuelanos aprenderam a comer bacalhau com azeite e a beber vinho tinto, de preferência um bom vinho português. Alguns historiadores afirmam que foram os portugueses que introduziram os hábitos do pão e da salada, hoje generalizados. Por outro lado, a sua fama de comerciantes especuladores fez dos portugueses alvo de piadas frequentes entre os venezuelanos. No campo religioso, vale a pena referir que, num país maioritariamente católico, a fé em Nossa Senhora de Fátima contagia desde há muito o povo venezuelano. Isto torna-se evidente se considerarmos as inúmeras procissões que se realizam no dia 13 de Maio, um pouco por todo o país.

 

PRINCIPAIS ACTIVIDADES DESEMPENHADAS PELOS PORTUGUESES NA VENEZUELA

De uma maneira geral podemos dizer que existe um bom nível de inserção ocupacional dos imigrantes na Venezuela.

Na Venezuela, os portugueses dedicaram-se, desde o primeiro momento, sobretudo à agricultura. Mas depois de 1948, a grande maioria dedicou-se ao comércio – sobretudo de alimentos – e rapidamente começou a diversificar-se para a pequena e média indústria, sobretudo no sector das manufacturas.

No sector agrícola os portugueses têm tido um papel muito importante ao nível da produção e distribuição. Neste sector destacam-se as produções de cana-de-açúcar, arroz, mandioca, batata, tomate e frutos, em especial a banana e a laranja. No sector da pecuária, embora em menor escala, a criação de gado bovino e a criação de suínos cochineras, encontram-se nas mãos de alguns portugueses, especialmente nos estados de Miranda, Arágua e Lara.

Quanto ao comércio, não há dúvida de que hoje esta constitui a principal actividade desenvolvida pelos portugueses na Venezuela. Como expoente máximo desta realidade, temos a grande cadeia de supermercados Central Madeirense, um dos maiores grupos económicos da Venezuela, cuja actividade neste momento abrange os sectores da banca (Banco Plaza, na Venezuela, e Ocean Bank, nos Estados Unidos), agropecuária e construção civil. Em Caracas encontramos grandes hotéis, famosos restaurantes, extensas áreas comerciais, excelentes night clubs, lojas de roupa, sapatarias, lojas de ferragens, agências de viagens, quiosques, tabacarias, bombas de gasolina, peixarias, talhos, cervejarias, venda de acessórios de automóveis, pertencentes a portugueses. No país, os portugueses são os proprietários de aproximadamente 80 por cento do total das padarias e 60 por cento do total das mercearias[14].

Actualmente também encontramos os luso-venezuelanos espalhados pelas mais diversas profissões: alguns grandes empresários, reconhecidos arquitectos e engenheiros, proeminentes advogados, economistas, professorem, médicos, padres, militares e alguns (poucos) políticos.

A comunidade portuguesa na Venezuela é muito dinâmica, o que se reflecte nas suas numerosas associações. Contabilizam-se mais de 50 associações portuguesas e luso-venezuelanas, em Caracas e Valência, duas das maiores cidades do país. Entre elas encontramos a Associação Civil Filhos Faial, a Associação Jovens Luso- Venezuelanos, a Câmara de Comércio, Indústria e Turismo Luso-Venezuelana, o Clube Desportivo Português de Caracas, o Clube Bairradinos, o Clube Unión Ciclista Portugal Caracas, o Comité Damas Portuguesas de Beneficência e Bem-Estar Social de Los Teques, a Fundación Lar de Emigrantes Portugueses em Caracas, a Junta de Beneficência Portuguesa de Vargas, a Câmara Venezuelana Madeirense.

Existem também na Venezuela inúmeros centros de convívio portugueses. Há um centro português em quase todas as grandes cidades venezuelanas. Encontramos, entre outros, o Centro Português de Caracas, a Casa de Portugal em Ciudad Bolívar, a Casa de Portugal de Maturín, a Casa Portuguesa de El Tigre Clube Social, o Centro Luso-Venezuelano de Catia La Mar, o Centro Luso-Venezuelano de los Valles del Tuy, o Centro Luso Venezuelano del Guárico, a Casa Portuguesa de Calabozo, o Centro Social Português de Ciudad Guayana. O Centro Português de Caracas – considerado o maior centro português da Venezuela e do mundo – chega a ser frequentado nos dias mais festivos, por cerca de 10 mil pessoas. Estes centros funcionam também como pólos de ligação e criação de lóbis, em especial os de cariz económico. Sendo locais por excelência de óptimo convívio e frequentemente visitados pela «fina-flor» da política venezuelana, a comunidade (com significativo peso económico) transforma-se num verdadeiro grupo de pressão na hora de definir políticas que mexem com os seus interesses[15].

 

DA VENEZUELA PARA PORTUGAL

DA VENEZUELA PARA PORTUGAL: AS ESPERADAS REMESSAS

Entre os impactos da emigração, um dos mais importantes é sem dúvida as poupanças que são enviadas para Portugal. As remessas são uma importante fonte de rendimento das famílias e de dinamização da economia e têm contribuído para equilibrar a balança de pagamentos nacional. Note-se que na América Latina, a Venezuela e o Brasil sobressaem como os principais países de envio das tão esperadas remessas. Segundo números do Banco de Portugal, em 2008, chegaram a Portugal, procedentes da Venezuela, 9873 mil euros em remessas[16].

Hoje, todavia, assistimos a uma redução (previsível) das remessas enviadas pelos emigrantes para Portugal. Entre outras, podemos assinalar como principais causas o desaparecimento dos ganhos cambiais com a adopção do euro como moeda nacional, alterações no padrão de poupança dos novos emigrantes – com preferência por destinos como a França, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Suíça – a crise financeira e económica mundial e, no caso de alguns países como a Venezuela, a adopção de medidas mais restritivas para o envio das remessas[17]. Com efeito, segundo dados do Banco de Portugal, os portugueses radicados no estrangeiro enviaram 6,8 milhões de euros por dia para Portugal em 2008, menos um terço que o valor das remessas de há oito anos. Note-se que o maior corte registou-se nas remessas enviadas pelos portugueses residentes na Venezuela: nos primeiros seis meses de 2008 enviaram menos 3,1 milhões de euros, um corte de 31 por cento em relação ao mesmo período do ano anterior[18].

 

A COMUNIDADE PORTUGUESA NA VENEZUELA

As principais preocupações da comunidade portuguesa que vive actualmente na Venezuela dizem respeito a questões de segurança, de comércio e de processos ao nível da segurança social.

No âmbito da segurança, é preocupante a onda de sequestros e de violência que tem vindo a flagelar nos últimos anos praticamente todo o território e todas as classes sociais. Com efeito, em 2008 morreram 14 589 pessoas vítimas de homicídio (52 mortes por cada 100 mil habitantes). A média nacional é superada largamente em Caracas, onde se registaram 130 homicídios por cada 100 mil habitantes. Segundo o sociólogo Roberto Briceño León, director do Observatório Venezuelano da Violência, só durante o primeiro trimestre de 2009 ocorreram 1097 homicídios mais que no mesmo período de 2008. Com estes dados as projecções colocam a Venezuela facilmente no primeiro lugar entre os países mais violentos da América Latina[19]. Fontes da comunidade portuguesa que vive na Venezuela referem também que pelo menos 120 portugueses foram sequestrados desde Janeiro deste ano[20].

As preocupações com o sector comércio prendem-se sobretudo com as crescentes dificuldades na aquisição de produtos alimentares – leite, açúcar, queijos, café e frango – assim como pelas alegadas e «injustificadas pressões», por parte das autoridades venezuelanas, de que são objecto os empresários portugueses para escoarem estes produtos no mercado, evitando com isso a especulação[21].

No caso da segurança social, dificuldades burocráticas diversas criam problemas aos portugueses que resolvem regressar a Portugal e querem receber o dinheiro das suas respectivas reformas[22].

 

AS RELAÇÕES VENEZUELA-PORTUGAL

De uma maneira geral podemos dizer que as relações entre a Venezuela e Portugal têm sido tradicionalmente boas, cordiais e amigáveis[23], e isto reflecte-se sobretudo a partir da década de 1990, nas numerosas visitas oficiais dos ministros dos Negócios Estrangeiros e dos Presidentes da República de ambos países, assim como na diversidade de instrumentos jurídicos assinados que visam regular este mesmo relacionamento.

Desde 1956, Portugal e a Venezuela têm assinado vários acordos abrangendo áreas como o transporte aéreo, a investigação científica, a cooperação económica e industrial, as migrações, o intercâmbio e a cooperação cultural, o controlo sobre o tráfico e consumo de drogas, a promoção sobre os investimentos, a supressão de vistos, os impostos, a energia e o petróleo, o turismo e o comércio[24]. Note-se que estes acordos bilaterais coexistem e muitos se complementam com outros assinados sobretudo a partir da década de 1980, no âmbito dos espaços de cooperação multilateral de que estes dois países fazem parte (por exemplo, União Europeia – Grupo de Rio; União Europeia – Grupo de San José, Comunidade Ibero-americana de Nações).

Relativamente às relações comerciais, de uma maneira geral, a balança comercial entre os dois países tem sido quase sempre desfavorável a Portugal. Assim, temos que as exportações portuguesas para a Venezuela passaram de cerca de 9,5 milhões de euros em 2004 para aproximadamente 51,1 milhões de euros em 2008, tendo-se registado ao longo do período um crescimento médio anual de 69,7 por cento.

No que concerne às importações portuguesas da Venezuela, podemos verificar que existe uma grande inconstância no respectivo fluxo: o seu valor passou de aproximadamente 16,7 milhões de euros em 2004 para cerca de 140,4 milhões de euros em 2008, sendo que em 2005 se registou uma descida, para o ano de 2006 apresentar uma forte subida (211,3 milhões de euros), logo seguida de uma quebra abrupta em 2007[25].

Os principais produtos relativos às exportações portuguesas para a Venezuela, em 2008, foram os produtos agrícolas, máquinas e aparelhos, produtos alimentares e metais comuns. A evolução das importações portuguesas da Venezuela entre 2004-2008 ficou a dever-se, acima de tudo, ao grande acréscimo nas importações dos combustíveis (1,667%), produto que representa cerca de 96,4 por cento do total importado da Venezuela em 2008. Os produtos agrícolas são o segundo grupo mais importado, cujo peso sobre o total das importações não vai além de 1,4 por cento.

Segundo os dados do Banco de Portugal, a balança de serviços apresenta regularmente um forte saldo favorável a Portugal. Assim temos que, relativamente ao período 2004-2008, enquanto as exportações tiveram uma média de crescimento de 50,5 por cento a das importações ficou em cerca de 12 por cento[26]. Os fluxos de investimento entre Portugal e a Venezuela são de reduzida importância, com baixos rankings e baixas quotas de mercado.

Na área cultural, encontramos entre os dois países alguns instrumentos jurídicos vigentes como o Convénio Básico de Cooperação Técnica entre o Governo da República da Venezuela e o Governo da República Portuguesa, de 1976; o Convénio Básico de Intercâmbio Cultural entre o Governo da República da Venezuela e o Governo da República Portuguesa, de 1978; e o Acordo Quadro de Cooperação entre a República da Venezuela e a República Portuguesa, assinado em Caracas a 17 de Junho de 1994. Este último prevê, para além do reforço da cooperação política e económica, desenvolver a cooperação nas áreas da língua, cultura e ciência e a criação de instituições culturais. Para tal efeito, decidiu-se a criação de uma Comissão Ministerial de Cooperação Luso-Venezuelana, presidida pelos ministros dos Negócios Estrangeiros de ambos país.

O ensino da língua portuguesa tem sido, sem dúvidas, uma das principais reivindicações dos portugueses num país onde as escolas e/ou associações/clubes que ensinam português são poucos e estão concentrados, na sua maioria, em Caracas – entre eles o Instituto Cultural Brasil-Venezuela, a Universidade Central da Venezuela, a Universidade Bolivariana e o Centro Português de Caracas e a Fundação Cultural Luso-Venezuelana «Camões» – e pouco acessíveis, uma vez que a maioria não dispõe de qualquer tipo de subsídio, sendo também evidente a falta de professores qualificados para leccionar e a falta de textos adequados para o ensino da língua de Camões[27].

Quanto ao ensino superior, o ensino formal do português deve-se ao protocolo de cooperação entre o Instituto Camões e a Universidade Central da Venezuela, de 23 de Setembro de 2002. Note-se que nesta universidade, o Brasil mantém actualmente cinco leitorados na Escola de Idiomas Modernos enquanto Portugal tem apenas um.

Não obstante, a situação do ensino do português na Venezuela pode vir a ser melhorada tendo em conta o acordo, na área da educação, assinado pelos presidentes do Brasil e da Venezuela, em Março de 2008[28]. Com efeito, hoje a Venezuela mantém mais e melhores relações com o vizinho Brasil. À espera da aprovação da sua entrada no Mercosul, o Governo venezuelano decidiu incluir o português como disciplina opcional no currículo oficial, que até agora incluía apenas o inglês e o francês[29].

Na Venezuela encontramos algumas associações e organizações locais que visam dar a conhecer a cultura portuguesa no país através da música, como a Banda Instrumental Madeirense de Caracas, ou através da dança, como o Grupo Folclórico «Os Lusíadas». Entre elas, destaca-se o Instituto Português de Cultura na Venezuela[30], fundado em 1990. Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que vem dar continuidade aos trabalhos da Comissão Fernando Pessoa, criada em 1985, no contexto do 50.º aniversário da morte do poeta[31]. Segundo João da Costa Lopes, vice-presidente do instituto, «esta ong edita um boletim quinzenal, convida dois intelectuais portugueses por ano (já vieram, entre vários outros, José Cardoso Pires, Lídia Jorge, Alice Vieira, Nuno Júdice, José Saramago, Urbano Tavares Rodrigues, João de Melo) e começou há pouco tempo com um programa de rádio»[32].

Vale a pena referir que as actividades culturais venezuelanas em Portugal resumem-se a algumas visitas de grupos musicais ou artistas venezuelanos e a umas poucas exposições de arte. Estes eventos são promovidos principalmente pelas associações sociais e culturais luso-venezuelanas que existem no país, entre elas o Centro Social Luso-Venezuelano de Espinho e a Casa Bolivariana Venezuelana da Cultura da Madeira, no Funchal. Nalguns casos, estas associações contam com o apoio da Embaixada e dos consulados da Venezuela, em Lisboa e no Funchal. Também com o apoio da Embaixada da Venezuela, merecem destaque algumas iniciativas levada a cabo pela Casa de América Latina em Lisboa, como por exemplo a exposição de fotografia «Venezuela Tierra Mágica», do venezuelano Roberto Colantoni, realizada em Abril de 2009.

 

CONCLUSÃO

Na Venezuela há aproximadamente meio milhão de portugueses. Trata-se da segunda maior comunidade portuguesa na América Latina, a seguir ao Brasil.

Os portugueses estão na Venezuela desde a época dos Descobrimentos. Mas foi entre 1947 e 1957 que se registou um verdadeiro boom de imigrantes portugueses, por razões como as difíceis condições de vida na Europa do pós-guerra ou a política favorável à imigração europeia, por parte Governo venezuelano.

Os portugueses estão hoje perfeitamente integrados na cultura, na sociedade e na vida económica venezuelana, mas assuntos como a segurança e o comércio são alvo de grande preocupação e exigem um papel mais activo do Governo português na defesa dos seus interesses.

Desde 1956, Portugal e a Venezuela têm vindo a assinar vários acordos abrangendo áreas como o transporte aéreo, a investigação científica, a cooperação económica e industrial, as migrações, entre outros. A balança comercial entre os dois países tem sido quase sempre desfavorável a Portugal. Em 2008, os combustíveis representavam cerca de 96,4 por cento do total importado da Venezuela. No âmbito cultural, o Acordo Quadro de Cooperação entre a República da Venezuela e a República Portuguesa, assinado a 17 de Junho de 1994, prevê, para além do reforço da cooperação política e económica, desenvolver a cooperação nas áreas da língua, da cultura e ciência e da criação de instituições culturais. Não obstante, até hoje são poucos os esforços desenvolvidos por ambos os países no sentido da cooperação efectiva em prol da divulgação da cultura e do intercâmbio científico e educacional.

Reforçar o eixo ibero-americano, um dos principais objectivos da política externa de Portugal, passa necessariamente pela institucionalização de uma relação histórica, cultural mas também humana de mais de quinhentos anos, assim como pelo fortalecimento da cooperação nas áreas, política e económica, mas também educativa e cultural.

 

NOTAS

[1] Conforme informação obtida pela autora por parte da Dr.ª Rosa Tavares, representante da Embaixada de Portugal na Venezuela, a 20 de Outubro de 2009, em mensagem recebida via internet e devidamente arquivada.

[2] A grande densidade de população e os poucos recursos, entre outros factores, impulsionaram a emigração dos madeirenses. Existe o registo de que entre 1900 e 1974 o número de saídas legais elevou-se a 152 mil, metade das quais no período 1955-1974. Contudo, o desenvolvimento turístico das últimas dezenas de anos fez reduzir muitíssimo essa prática secular.

[3] Vale a pena lembrar que Colombo conheceu muitos pilotos e marinheiros portugueses durante o tempo em que viveu em Portugal (aproximadamente, entre 1479 e 1486), mais precisamente na ilha do Porto Santo.

[4] Leão Pacheco nasceu em 1543, em Portimão (Algarve), e morreu cinquenta anos depois na Mesa de Cavaca, no estado Portuguesa, onde está sepultado.

[5] Saignes, Miguel Acosta – História de los Portugueses en Venezuela. In Xavier, António Abreu – Con Portugal en la Maleta. História de Vida de los Portugueses en Venezuela. Siglo XX. Caracas: Editorial Alfa, 2007.

[6] Segundo dados oficiais do ine, entre 1940 e 1969 viviam na Venezuela cerca de 21 731 portugueses.

[7] Fontes, Carlos – Venezuela-Portugal. [Consultado em: 4 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://lusotopia.no.sapo.pt/indexOP04Venezuela.html.

[8] A política de «portas abertas» facilitava a entrada, a obtenção da licença de residência permanente e de trabalho assim como a legalização da sua situação em caso de entrada ilegal, aos estrangeiros.

[9] A Constituição de 1961 reflecte a restrição feita à imigração através das condições que impõe aos estrangeiros para a obtenção da nacionalidade e no não reconhecimento do direito a voto.

[10] Os anos 1970 foram os anos do auge petrolífero. Destaca-se a figura política de Carlos Andrés Pérez (1974-1979), que nacionalizou o petróleo e que foi beneficiado pelo aumento do preço do mesmo, a raiz da crise de 1973.

[11] Em 1989, durante o caracazo, muitos comerciantes portugueses foram vítimas de ataques pela multidão enfurecida. Muitas propriedades de portugueses foram saqueadas e destruídas.

[12] O censo de 1991 refere que os nascidos no estrangeiro eram 1 023 259 pessoas, 51 370 menos que há uma década atrás. Setenta por cento dos imigrantes são latino-americanos.

[13] Pereira, Ana Cristina – Depois da Emigração, o Regresso. [Consultado em 15 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.publico.clix.pt/Sociedade/portugueses-da-venezuela-regressam-a-madeira-por-causa-da-falta-de-seguranca_1308972

[14] Gomes, Nancy – «Os portugueses nas Américas: Venezuela, Canadá e EUA». In Janus. Lisboa, 2001, p. 144.        [ Links ]

[15] Ibidem.

[16] Banco de Portugal. [Consultado em: 18 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.bportugal.pt/

[17] Em Maio de 2008 foram adoptadas na Venezuela novas regras (publicadas na Gazeta Oficial, n.º 38 937) para o envio de remessas para familiares no estrangeiro, que estabelecem que cada beneficiário, residente no estrangeiro, poderá receber um máximo de 300 dólares, uma vez por mês e sem carácter acumulativo. Segundo a nova providência, o solicitante poderá ter até seis beneficiários, correspondentes a um máximo de 1800 dólares.

[18] Mundo Português (2008) – Remessas dos Emigrantes Estão em Queda [Consultado em: 18 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.observatorioemigracao.secomunidades.pt/np4/419.html  

[19] Notíciasve(2009) – 19 Mil Homicídios se Producirán en el País en 2009. [Consultado em: 21 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.noticiasve.com/19-mil-homicidios-produciran-en-el-pais-en-2009/ 

[20] Lusa (2009) – 255 Pessoas Resgatadas este Ano na Venezuela [Consultado em: 19 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.dnoticias.pt/Comunidades.aspx?file_id=dn01013206120909

[21] Mundo Português (2008) – Venezuela: Comerciantes Portugueses Dizem Sofrer «Pressões». [Consultado em: 21 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.mundoportugues.org/content/1/2124/venezuela-comerciantes-portugueses-dizem-sofrer-pressoes/

[22] Relativamente a este assunto vale a pena referir que em 2007 foi assinado o Primeiro Acordo Multilateral de Segurança Social, no decorrer da XVII Cimeira Ibero-americana. Os benefícios do convénio aplicam-se às pensões de invalidez, viuvez, de sobrevivência, acidentes de trabalho ou doença profissional, ficando excluídas as prestações médicas, de todos os emigrantes que residem nos vinte e dois países que conformam este espaço, incluindo Portugal e a Venezuela.

[23] Embajada de la República Bolivariana de Venezuela en Portugal (sección política) – Relações Bilaterais Venezuela/Portugal [Consultado em: 24 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.embavenezuela.pt/seccion_politica/sepolitica_port.html

[24] Gabinete de Documentação e Direito Comparado – Tratados Internacionais [Consultado em: 19 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.gddc.pt/siii/pesquisa-resultados.asp?natureza=IB&go=Pesquisar&orig=celeb&tipo-celeb-pais=pais&pais-pesq=258     

[25] Aicep Portugal Global (2009) – Relações Económicas Portugal – Venezuela [Consultado em: 19 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.c-americalatina.pt/xFiles/scContentDeployer_pt/docs/articleFile130.pdf

[26] Ibidem, p. 6.

[27] Correio da Venezuela (2008) – António Braga Anuncia Consulado em Los Teques e Puerto La Cruz. [Consultado em: 25 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.correiodevenezuela.com/Venezuela.php?IdVenezuela=2488&Leyenda=293

[28] Mundo Português (2008) – Venezuela: Portugal sem Verbas para Garantir Ensino do Português. [Consultado em: 21 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://www.mundoportugues.org/content/1/2280/venezuela-portugal-sem-verbas-para-garantir-ensino-portugues/

[29] Para já o programa (piloto) será implementado em 14 escolas do estado Carabobo para mais tarde se expandir a pelo menos 2500 escolas secundárias.

[30] Esta ong é apoiada actualmente pelo Instituto Camões.

[31] ipc – Quem Somos. (Consultado em: 21 de Outubro de 2009]. Disponível em: http://institutoportuguesdecultura.blogspot.com/

[32]  Conforme informação obtida pela autora por parte do Dr. João da Costa Lopes, vice-presidente do icp, no dia 26 de Outubro de 2009, em mensagem recebida via internet e devidamente arquivada.

 

[*] Licenciada em Estudos Internacionais pela Universidade Central de Venezuela (1990). Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Técnica de Lisboa (1995). É Professora Auxiliar no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa "Luís de Camões", desde 1995. Desempenhou funções de consultoria e gestão de bolsas, no Serviço de Educação e Bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian entre 2001 e 2007. Doutoranda na Faculdade de Ciências Sociais e Humana da Universidade Nova de Lisboa. É Bolseira de doutoramento da Fundação Calouste Gulbenkian, desde Setembro de 2009. Autora de alguns artigos dedicados especialmente à Cooperação Internacional.