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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.24 Lisboa dez. 2009

 

O Maquiavel democrático

Cláudia Almeida[*] e Isabel Alcario[**]

 

 

Entre o seu inovador Political Order in Changing Societies (1968)e o controverso Clash of Civilizationsand the Remaking of World Order (1996), Samuel P. Huntington publica aquele que é, para Diamond, o seu livro mais perfeito, do ponto de vista do pensamento analítico, e perdurável, pela perspectiva global que dá ao fenómeno da democratização[1]. Falamos de The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century (1991).

Nestas três marcantes obras observamos uma mudança de interesses do proeminente académico de Harvard, dado que os seus objectos de estudo coincidem com fenómenos contemporâneos. O estudo de eventos e fenómenos, com início num determinado período e ainda em desenvolvimento, é aliás constante em toda a investigação de Huntington, tendo implícitas formulações políticas[2]. Tal é particularmente presente na obra The Third Wave,em que o autor abandona o seu papel de politólogo e assume o de consultor político, o aspirante a «Maquiavel democrático», nomeadamente ao apresentar «guidelines for democratizers»[3].

Para compreender sucintamente a ideia de mudança de interesses que caracteriza a investigação de Huntington e assim extrair os contributos fundamentais do premiado livro The Third Wave, importa começar por estabelecer uma ponte entre as três obras mencionadas. Em Political Order,o que estava em causa era não só o surgimento de novos países independentes na década de 1960, como também os períodos de instabilidade e violência que seguiram à independência. Nesse sentido, Huntington apresenta um argumento de contra-reacção ao optimismo sobre a capacidade da modernização económica gerar democracias estáveis; ao invés, a modernização pode conduzir ao declínio da ordem política e, consequentemente, à instabilidade. Para a estabilidade política, o mais importante não é a forma de governo mas sim o seu grau de institucionalização, conclusão que leva o autor a considerar que a ajuda ao desenvolvimento político dos novos países deverá passar primeiramente pela construção de instituições políticas efectivas.

Porém, com a expansão global da democracia, o interesse de Huntington desloca-se para o tema da democratização. O autor escreve então The Third Wave,procurando explicar as transições para a democracia em 30 países, ocorridas nas décadas de 1970 e 1980, e com consequências «positivas para a liberdade individual, a estabilidade doméstica, a paz internacional e os Estados Unidos da América»[4]. Este estudo apresenta um carácter distinto, tanto pelo âmbito alargado e global do fenómeno da democratização como pela concepção das transições como movimentos conjuntos de países que dão origem às chamadas vagas de democratização.

Já na obra Clash of Civilizations, o autor desafia o optimismo de que a queda do Muro de Berlim marcaria o triunfo e a assimilação global dos valores ocidentais, nomeadamente do modelo de democracia liberal, ao argumentar quea principal fonte de conflito e de ameaça à ordem mundial do pós-Guerra Fria assentará na variável «cultura». Ou seja, o conflito violento entre estados resultará de um choque entre culturas e civilizações.

Dezoito anos volvidos da publicação de The Third Wave, trinta e cinco após o início da terceira vaga de democratizações, vinte depois da queda do Muro de Berlim e cerca de um ano depois da morte de Samuel P. Huntington, porquê revisitar esta obra?

Desde logo, porque se mantém a contemporaneidade do fenómeno em análise, ou seja, a terceira vaga de democratização corresponde a um processo em desenvolvimento. Revelador deste aspecto é o reconhecimento que o próprio Huntington faz, logo no prefácio do livro, do problema da contemporaneidade da sua investigação, referindo que, por tratar de eventos ainda em desenvolvimento, a sua análise deverá ser vista como uma avaliação e uma explicação preliminares do que considera ser um acontecimento político marcante à escala global das últimas décadas do século xx[5]: a transição de 30 países de sistemas políticos não democráticos, para os quais o autor acaba por utilizar o termo autoritários sem estabelecer distinções quanto à natureza destes regimes, para democráticos e que apelida de terceira vaga de democratização, expressão que rapidamente se estabeleceu no léxico da ciência política e das relações internacionais[6].

Aliás, o próprio conceito de democratização que Huntington apresenta define precisamente um processo que envolve o fim de um regime autoritário, a instalação e a consolidação de um regime democrático[7]. Deste modo, o que poderia ser entendido como uma certa vulnerabilidade da sua análise, acaba por garantir a presença inalienável e a perdurabilidade da sua obra nos estudos sobre transições democráticas. Tanto que desde logo assume, também no prefácio, que será possível uma explicação mais satisfatória do fenómeno da terceira vaga de democratização quando este chegar ao fim, ou, pelo menos, quando atingir um estado mais completo[8].

Mas afinal, quando podemos afirmar que um dado processo de democratização chegou ao fim? Isto é, à luz da definição de Huntington, quando é possível dizer que cada momento que constitui o processo de democratização está concluído? Estas questões continuam a animar o debate académico sobre democracia, democratização e promoção democrática com consequências ao nível da formulação de políticas.

A obra The Third Wave constitui então um contributo fundamental para o estudo das transições políticas ao apresentar a ideia de um movimento conjunto de países com regimes não democráticos para democráticos, «que ocorrem em determinado período de tempo e que superam significativamente as transições em sentido inverso no mesmo período», existindo, contudo, a possibilidade de reversibilidade destes movimentos de mudança de regime político[9]. Significa isto que uma vaga de democratização pode reverter para uma não democrática, pelo que se torna essencial a consolidação do regime político após a transição. Na verdade, a cautela de Huntington é historicamente fundamentada, na medida em que às duas primeiras vagas de democratização (1828-1926; 1943-1962) se seguiram duas vagas reversas (1922-1942; 1958-1975). Por outro lado, o tema das transições democráticas vem de encontro à questão da democratização como elemento-chave para entender a mudança e reconfiguração políticas do pós-Guerra Fria e que continua a alimentar o debate académico neste novo século.

Nesta proposta de Huntington, está patente o que podemos adjectivar de entusiasmo académico pelo significado empírico das transições democráticas. Mas se esse entusiasmo conduziu a um boom de investigações nas décadas de 1980 e 1990, com académicos como Diamond e Plattner, por exemplo, a apontarem para o ressurgimento global da democracia, no início deste século este ressurgimento dá lugar a uma divergência global de democracias[10]. Hoje, a democracia já não se encontra numa fase de escalada global, vivendo-se, de acordo com O’Donnell, um período de desencanto, em que é clara a existência de uma variedade de democracias[11]. Mais ainda, várias das democracias surgidas na terceira vaga estão em perigo, existindo mais que nunca a necessidade de reflectir sobre como podem estas democracias funcionar melhor[12].

Diamond alerta que, para sabermos se a democracia continuará em expansão ou mesmo se se manterá o número actual de regimes democráticos, importa saber como chegar a esse número[13]. Questão fundamental pois, subjacente à ideia de como contar, encontramos o problema da conceptualização da democracia, aliás transversal em todos os estudos sobre democracia. Collier e Levitsky, por exemplo, ilustram bem esse problema ao referirem que estamos perante uma situação de «democracias com adjectivos», querendo com isto dizer que existe uma proliferação de formas conceptuais[14]. Desta forma, as vagas de democratização apresentam aos académicos o desafio de lidar conceptualmente com uma grande variedade de regimes pós-autoritários.

Huntington opta, na linha de Schumpeter e Dahl, por uma concepção mínima de democracia, já que permite parâmetros que tornam possível avaliar até que ponto determinado sistema político é democrático, comparar sistemas e verificar se evoluem no sentido de mais ou menos natureza democrática[15]. Nesta concepção mínima (essencialmente procedimental), as eleições são um elemento nuclear e a forma como a democracia opera. Na terceira vaga foram também o meio de enfraquecimento dos regimes autoritários até à sua transição. Parafraseando Huntington, as eleições dão não só vida à democracia como também representam a morte das ditaduras[16]. Outros autores há, como Stepan e Linz ou Karl, que são mais prudentes na hora de avaliar o papel da realização de eleições e o seu potencial democratizador, ao alertarem para a existência de uma «falácia eleitoralista»[17] . Na mesma linha, também Brynen, Korany e Noble, ao falarem sobre os processos de liberalização política no mundo árabe, consideram que a realização de eleições não pode ser confundida com a essência da democracia[18].

Certo é que o significado da realização de eleições para os processos de democratização atravessa todo um debate absolutamente essencial na hora de promover a democracia. No caso da proposta de Huntington, diríamos que há todo um problema de balizar os três momentos que fazem parte do processo de democratização: o que é e não é regime democrático?, como e quando há ou não transição para a democracia?, quando chega esta ao fim e passamos para a consolidação?, ou quando podemos afirmar que um processo de democratização chegou ao fim num dado país?

Também Huntington, ao reflectir mais tarde sobre o futuro da terceira vaga, entra na relação eleições e democracia. Pergunta-se justamente se as eleições são tudo quanto existe para a democracia[19]. Importante nesta sequência de ideias é mais uma vez a reflexão de Diamond que, ao questionar se a terceira vaga terá chegado ao fim, apresenta uma distinção-chave entre democracias eleitorais e democracias liberais[20]. Esta distinção resulta de grande importância, pelas implicações práticas para os estrategas da promoção democrática.

Nesta sequência, Huntington pergunta se na actual fase da terceira vaga devem estes (os estrategas) dar prioridade à promoção de democracias eleitorais nos mais de 50 países não-livres que não têm qualquer forma de democracia ou devem estes dar prioridade àqueles que já têm democracias eleitorais. Diamond responde que o futuro da democracia e da sua ideia depende do imperativo da democratização: as democracias liberais devem consolidar-se e as eleitorais devem ser aprofundadas e liberalizar-se politicamente para que as suas instituições possam ser valorizadas pelas populações[21].

Apesar de reconhecer o seu pessimismo relativamente às perspectivas de democratização em regiões do mundo que não conhecem a democracia e de apontar alguns obstáculos culturais ao processo, como nos regimes que associam marxismo-leninismo a argumentos nacionalistas, ou as concepções antidemocráticas das doutrinas religiosas do islamismo e do confucionismo, e económicos – o nível de desenvolvimento económico de um dado país –, Huntington não deixa de expressar o seu optimismo quanto à expansão da democracia no mundo[22].

Todavia, os acontecimentos políticos em diversas regiões do mundo, sobretudo em África, na Ásia e na América Latina, levam-nos a pensar cada vez mais na persistência do autoritarismo e na existência de regimes sobre os quais muitas vezes se ouve dizer que estão «presos» na transição (stuck in transition), mas que, na verdade, são regimes cuja natureza ambígua de elementos autoritários e democráticos[23] faz que hoje exista uma miríade de termos, cada vez mais estabelecidos na ciência política, em que destacamos a formulação de regimes híbridos, desenvolvida mais recentemente por Morlino.[24]

Dito isto, The Third Wave de Huntington é ao mesmo tempo um contributo teórico sólido para os processos de democratização e com implicações práticas para as políticas de promoção da democracia. Podemos enquadrar esta obra num entusiasmo ponderado pela expansão da democracia, pois para Huntington estes movimentos de mudança política não são unidireccionais existindo sempre a possibilidade de reversibilidade. Apesar das perspectivas menos optimistas e de cautela em relação à expansão e sobrevivência da democracia, os processos de democratização são de facto um fenómeno-chave também neste começo de um novo século. Sobre a visão de desencanto ou de cautela quanto ao futuro da democracia, é interessante como Huntington, mantendo uma postura minimalista, responde:

«Democracy does not mean that problems will be solved; it means that rulers can be removed; and the essence of democratic behaviour is doing the latter because it is impossible to do the former. Disillusionment and the lowered expectations it produces are the foundation of democratic stability. Democracy becomes consolidated when people learn that democracy is a solution to the problem of tyranny, but not necessarily anything else.»[25].

 

 

NOTAS

[1] Diamond, Larry – «The fp debate: Samuel Huntington’s legacy». In Foreign Policy. Janeiro de 2009. Consultado em: Novembro de 2009. Disponível em http://www.foreignpolicy.com/story/cms.php?story_id=4617

[2] Ver entrevista a Samuel Huntington: Munck, Gerardo L., e Snyder, Richard – «Order and conflict in global perspective». In Passion, Craft, and Method in Comparative Politics. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2007, p. 225.

[3] Huntington, Samuel P – The Third Wave Democratization in the Late Twentieh. University of Oklahoma Press, 1991, p. xv.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem, p. xiv.

[6] Iniciada com a transição portuguesa, a terceira vaga desenrolou-se na Europa do Sul, na América Latina, na Europa de Leste e em determinados países da Ásia e de África.

[7] Ibidem, nota 3, p. 35.

[8] Ibidem, p. xv.

[9] Huntington acrescenta ainda que «uma vaga envolve geralmente a liberalização ou a democratização parcial em sistemas políticos que não se tornam completamente democráticos» (Ibidem, nota 1, p. 15).

[10] Diamond, Larry, e Plattner, Marc F. – The Global Resurgence of Democracies. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993;Diamond, Larry, e Plattner, Marc F. – The Global Divergence of Democracies. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2001.

[11] O’Donnell, Guillermo A. – «The perpetual crises of democracy».In Journal of Democracy. Vol. 18, N.º 1, 2007, pp. 5-11.        [ Links ]

[12] Cf. Stepan, Alfred – Democracies in Danger. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009.

[13] Diamond, Larry – «Is the Third Wave over?». In Journal of Democracy. Vol. 7, N.º 3, 1996, pp. 20-37.

[14] In «Democracy with adjectives. Conceptual innovation in comparative research». World Politics. N.º 49, Abril de 1997, pp. 430-51.

[15] Ibidem, nota 3, p. 7.

[16] Ibidem, p. 174.

[17] Linz, Juan J., e Stepan, Alfred – Problems of Democratic Transition and Consolidation. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1996, pp. 3-15; Karl, Terry Lynn – «From democracy to democratization and back: before transitions from autoritarian rule». In CDDRL working papers. N.º 45, 2005. Consultado em: Julho de 2008. Disponível em: http://iis-db.stanford.edu/pubs/20960/Karlsep05.pdf  55p.

[18] Brynen, Rex, Korany, Bahgat, e Noble, Paul – Political Liberalization and Democratization in the Arab World. Colorado: Lynne Rienner Publishers, 1995, p. 4.

[19] «After twenty years: the future of the Third Wave». In Journal of Democracy. Vol. 8, N.º 4, 1997, pp. 3-12.

[20] As democracias eleitorais têm governos que resultam de eleições livres e justas aceitáveis, mas com a ausência das garantias de direitos e liberdades que existem em democracias liberais, sendo que nesta última, existem também restrições ao nível do poder do executivo, poder judicial independente que garanta o império da lei, protecção de direitos individuais e liberdade de expressão, associação, crença e participação, consideração pelos direitos das minorias, limites à capacidade do poder de influenciar a processo eleitoral, garantias contra a detenção arbitrária e a brutalidade policial, a não censura, e um controlo mínimo dos media pelo governo. Cf. Huntington, Samuel P. – «After twenty years: the future of the Third Wave». In Journal of Democracy. Vol. 8, N.º 4, 1997, p. 7, e Diamond, Larry – «Thinking about hybrid regimes». In Journal of Democracy. Vol. 13, N.º 2, Abril de 2002, pp. 25-29.

[21] Ibidem, nota 7, pp. 34-5.

[22] No capítulo 6, o autor identifica como condições que favorecem a consolidação de novas democracias a existência de uma experiência prévia de democracia (mesmo que falhada), de um elevado nível de desenvolvimento económico, de um contexto internacional favorável, a forma pacífica como terá decorrido a transição e a calendarização da transição face à vaga global, isto é, caso se tenha desenvolvido na fase inicial da vaga, é mais provável que tenha sido motivada por factores internos do que por influências externas.

[23] São esencialmente «sistemas ambíguos que combinam a aceitação retórica da democracia liberal, a existência de algumas instituições democráticas formais e respeito por uma esfera limitada de liberdades civis e políticas com traços essencialmente autoritários» (in Ottaway, Marina – Democracy Challenged: The Rise of Semi-Authoritarianism. Washington: Carnegie Endowment for International Peace, 2003, p. 3.

[24] Regimes híbridos são definidos por Morlino como regimes que «adquiriram algumas instituições e procedimentos característicos da democracia, mas não outros, e ao mesmo tempo retiveram algumas características de regimes tradicionais ou autoritários» (Morlino, Leonardo – «Are there hybrid regimes? Or are they just an optical illusion?». In European Political Science Review. Vol. 1, N.º 2, 2009, p. 280.

[25] Ibidem, nota 3, p. 263.

 

[*]Doutoranda da Universidade Complutense de Madrid e também assistente de investigação no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. As suas principais linhas de investigação são eleições pós-guerra, transições guerra-democracia, peacebuilding, partidos políticos nas novas democracias, África.

[**]Mestre em História das Relações Internacionais pelo ISCTE com uma tese intitulada “O Processo de Liberalização Política em Marrocos (1992-2007): Uma transição adiada” e Doutoranda em Ciência Política na Universidade de Lisboa. Investigadora no IPRI-UNL e assistente de investigação no Projecto “Transições Ibéricas à Democracia: Portugal e Espanha em Perspectiva Comparada” do ICS-UL.