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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.24 Lisboa dez. 2009

 

A ordem de Huntington

Vasco Rato

 

Para muitos, o nome de Samuel Huntington ficará perpetuamente ligado ao livro O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, a ampliação e aprofundamento de uma tese originalmente publicada em 1993 nas páginas da revista Foreign Affairs. Na sequência dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, a narrativa do «choque civilizacional» transformou-se numa «explicação» simplista do islamismo político. Contudo, à medida que a tese se popularizava, as qualificações apontadas por Huntington, e a subtileza analítica das clivagens civilizacionais que apontou e as consequências políticas que delas resultavam, deram lugar à sloganização do conceito de choque civilizacional e, de uma forma mais geral, à cartoonização das ideias de Huntington.

Dada a influência (ou notoriedade) do livro, não deixa de ser irónico verificar que O Choque das Civilizações é um trabalho menor; na melhor das hipóteses, trata-se de um estudo que fica muito aquém dos trabalhos anteriores do autor. É certo que mesmo os livros menores de Huntington sempre foram superiores aos livros de outros politólogos. A sua envergadura intelectual colocava-o acima dos seus pares de profissão, particularmente desde que a ciência política profissional se burocratizou e, por conseguinte, perdeu grande parte da sua relevância. O segredo de Huntington – violado por grande parte da academia – residia em relacionar a sua inovação teórica com os problemas mais prementes do «mundo real». Problemas que, por norma, a academia ainda hoje teme ignorar.

Political Order in Changing Societies e The Soldier and the State são, sem dúvida, os livros mais inovadores e influentes de Huntington, continuando a ser de leitura obrigatória. O segundo praticamente deu origem ao estudo contemporâneo das relações civis-militares; o primeiro, publicado em 1968, desafiou grande parte dos pressupostos que dominaram o pensamento político no pós-1945. Especificamente, Political Order questionou a teoria de modernização, então preponderante nas universidades e no mundo de policymaking. Dito de forma diferente, a análise de Huntington mudou a forma como se olhava a relação entre o desenvolvimento e a participação política, ou seja, entre a modernização socioeconómica e a construção das democracias pluralistas.

Em termos simplificados, o paradigma da modernização, teorizado por Seymour Martin Lipset, David Apter, Walt Rostow e outros, mantinha que o desenvolvimento socioeconómico invariavelmente produzia regimes democráticos. Nem todos os defensores do paradigma concordavam quanto às variáveis que conduziam a este desfecho. Mas, de forma geral, eram unânimes quanto à ideia de que o crescimento económico – ou as suas consequências, como sejam a laicização, a literacia e a urbanização – conduzia à democracia uma vez assegurado um patamar mínimo de riqueza. Particularmente estimulante era a ideia de que a transição para a modernidade, e a concomitante passagem para regimes pluralistas, poderia ocorrer na ausência de profundas rupturas e conflitos se se procedesse à cooptação política de novos grupos e reivindicações.     

Seria justamente este consenso em volta da veracidade do paradigma da modernização que Samuel Huntington, em Political Order in Changing Societies, questionava. Uma das observações nucleares de Huntington era que o problema central da política radicava na existência de um lag temporal entre o desenvolvimento das instituições e as mudanças socioeconómicas. Dito de forma diferente, as instituições políticas usualmente revelavam alguma dificuldade em proporcionar respostas adequadas às exigências sociopolíticas provocadas pela mudança. Huntington – e muito bem – observou que a dinâmica motor da política era a mudança; mudanças permanentes que, não infrequentemente, eram dramáticas nos seus efeitos. Acrescentou que os efeitos da mudança são normalmente minimizados porque existe um bias cognitivo que nos leva a pensar que «amanhã será como hoje». Na medida em que pretendem preservar o poder adquirido, os agentes políticos invariavelmente confrontam dificuldades em ultrapassar o seu bias a favor do status quo, o que efectivamente os leva a resistir a mudanças institucionais que, a médio e longo prazo, seriam mais propícias à preservação da estabilidade, e do poder dos agentes políticos.

A tese principal de Huntington adiantava que a instabilidade e o conflito que marcavam a época em que escrevia, e o pós-II Guerra Mundial, resultavam de mudanças sociais rápidas, invariavelmente associadas à mobilização de novos sectores da população. À medida que estes novos grupos conquistavam poderio económico e social, passavam a exigir uma quota maior do poder político, ou seja, colocavam pressão junto das instituições existentes para que estas se abrissem às suas preocupações e interesses. Todavia, as instituições, criadas noutro contexto político e desenhadas para acomodarem outros grupos politicamente dominantes, manifestavam dificuldades em adaptarem-se às novas realidades. Por isso, não tinham capacidade para cooptar os novos sectores sociais. Perante esta situação, a contestação e a violência resultavam, tanto por parte dos novos grupos que exigiam participar politicamente como por parte do Estado que, perante a imobilidade das instituições, recorria à repressão para travar o aumento de novas reivindicações. A repressão era, pois, uma forma de preservar a ordem política em períodos de profunda transformação.  

Por estas razões, a problemática da «ordem» política torna-se central para a nossa compreensão da modernidade. Na ausência de estruturas políticas suficientemente adaptáveis e robustas para responderem à correlação de forças existentes na sociedade, a contestação e a violência passam a dominar a paisagem política. Huntington, em consequência, afirma que a mais importante distinção política não reside na form of government (se democracia, comunista, colectivista, de mercado, etc.) mas no degree of government. Quer isto dizer que a questão da ordem, da estabilidade política, largamente resultante do grau de institucionalização, é anterior à natureza específica do regime. Recorrendo a uma linguagem corrente, dir-se-á que a questão da construção do estado (state building) precede o problema do regime (especificamente, a democratização). Em conclusão, Huntington sustenta que um Estado forte, mas não necessariamente democrático, torna-se absolutamente necessário durante o decorrer de processos de modernização.

Mas, afinal, que relevância para a política internacional contemporânea terá um livro publicado em 1968? Se a análise de Huntington corresponde à realidade – e parece que assim é –, torna-se essencial desenvolver estratégias para gerir a mudança, para garantir que a passagem para a modernidade seja o menos desestabilizador possível. Essa estratégia terá de assegurar o gradualismo da modernização, de forma a conceder aos agentes políticos e às instituições tempo suficiente para se reformarem de modo a poderem absorver novos sectores e reivindicações sociais. Mudanças rápidas são, portanto, de evitar, sob pena de se despoletar a necessidade de recorrer à repressão para conservar a ordem. Eis uma estratégia que, grosso modo, tem sido seguida em países como a Birmânia e a China; em Portugal, ocorreu o inverso depois do golpe de Abril de 1974. 

Por outro lado, a visão de Huntington coloca dúvidas quanto às estratégias de democratização seguidas ao longo das décadas mais recentes. Primeiro, políticas de engagement podem ser contraproducentes. Por exemplo, a abertura de sociedades fechadas através do comércio internacional pode gerar mudanças rápidas que provocam instabilidade política, obrigando o retorno à repressão, a ditaduras ainda mais ferozes. A ideia subjacente ao engagement, de que o comércio internacional dá origem a uma nova classe média que inexoravelmente assume o papel de motor da democratização, deixa de ser sustentável se as teses de Huntington forem adoptadas. Por último, se aplicarmos as observações contidas em Political Order a países como o Egipto e a Arábia Saudita, onde se verificaram processos de modernização acelerada, melhor poderemos compreender as causas do islamismo político e de organizações como a Al-Qaida. E, mais importante de tudo, estaremos em posse de um mapa cognitivo que nos poderá ajudar a evitar que, no futuro, a promoção da modernidade venha a gerar movimentos que, na prática, pretendem recriar um passado longínquo que aniquile a modernidade.