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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.23 Lisboa set. 2009

 

Pela definição de um conceito estratégico nacional

Ana Rita Moreira *

 

José Palmeira

O Poder de Portugal nas Relações Internacionais

Lisboa,

Prefácio,

2006, 299 páginas

 

José Palmeira tem feito toda a sua carreira académica na Universidade do Minho, onde se licenciou em Relações Internacionais, se tornou mestre em Estudos Europeus com uma tese sobre a posição de Portugal nas políticas europeias de defesa, e se doutorou, em 2003, em Ciência Política e Relações Internacionais, com uma dissertação intitulada Portugal e o Sistema Geopolítico Mundial (1945-2000) que é, em 2006, transformada para publicação neste livro.

A obra é prefaciada por Adriano Moreira e divide-se em três secções principais, sendo que as duas iniciais – debruçando- se primeiro sobre as teses clássicas da geopolítica e o sistema mundial e depois sobre uma descrição dos factores permanentes e da evolução política de Portugal no século xx – podem ser consideradas como secções introdutórias ao terceiro capítulo, mais longo, onde se explanará o cerne da tese, e que se intitula, finalmente, «Portugal e o Sistema Geopolítico Mundial». A publicação apresenta-se como um compêndio de oito séculos de relacionamento internacional do Estado português, com um privilégio da atenção sobre o século xx, e neste, nos acontecimentos contemporâneos e posteriores à II Guerra Mundial, e recorre preferencialmente a fontes secundárias, percorrendo alguns títulos da bibliografia historiográfica, nacional e estrangeira.

O autor pretende, com este exercício de síntese, avaliar com rigor o poder e a relevância geoestratégica, presente e passada, de Portugal no sistema de relações internacionais.

Recensearemos aqui algumas ideias mais salientes nos três capítulos que compõem o percurso da narrativa no caminho para a enunciação das conclusões, as quais se apresentam com o objectivo declarado de servirem como marcos orientadores na definição de um conceito estratégico nacional, assente em três triângulos estratégicos.

O primeiro capítulo assenta então numa reflexão sobre três conceitos nucleares: oconceito clássico de Estado, na sua articulação com as noções de território e de nação; a noção de poder, entendido aqui estreitamente como o poder dos estados, e as teses que ensaiam uma enunciação dos factores que o determinam através das conjunturas históricas, sendo consensual que se caminhou, durante o século xx, e sobretudo no seu último quartel, no sentido de uma dispersão dos centros de poder; e a definição de geopolítica, entendida como, na enunciação de Pascal Boniface e perfilhada pelo autor, «uma combinação da ciência política e da geografia que estuda as relações que existem entre a condução da política exterior de um país e o quadro geográfico no qual ela se exerce» (p. 36).

O autor prossegue com uma apresentação sobre a evolução do conceito, percorrendo os autores clássicos e as escolas mais influentes.

O segundo capítulo é dedicado à enunciação das características geopolíticas de Portugal, onde se destaca o contraste entre a exiguidade da sua dimensão continental e a extensão da sua Zona Económica Exclusiva – com um milhão e 683 quilómetros quadrados, a maior da Europa e a quinta maior do mundo –, e o significado da sua posição geográfica: peninsular, com a Espanha como única fronteira terrestre, na confluência entre o Alântico Norte e Sul, e de acesso ao mar Mediterrâneo.

O autor dedica ainda alguns parágrafos ao que diz ser a homogeneidade cultural do país, tecida em oito séculos de história, que o classificam como um «Estado-nação perfeito». Esta perenidade das fronteiras nacionais será ainda complementada pela história de exploração pluricontinental que forjou mais tarde o império colonial, e que, na terminologia de Jacques Huntzinger, o qualificam como um Estado «histórico » detentor de um conhecimento sobre outras sociedades e povos que resultará numa vantagem diplomática no jogo estratégico internacional (sabe-se, porém, como foi incipiente e tardia a colonização científica do Ultramar, comparada, por exemplo, com o esforço britânico, pelo que podemos adivinhar que este conhecimento poderá ser mais gerador de equívocos que de clarividência). O autor segue então para uma breve narrativa da evolução política do País nos últimos sessenta anos, e enumera três fases no relacionamento internacional: até 1974, guiado por um regime autocrático centrado na figura do Presidente do Conselho, conservar o império; depois de 1977, com a descolonização e a democratização do regime em marcha segura, a integração europeia; e, no início do século XXI, a consolidação do espaço lusófono.

O terceiro capítulo é composto por sete secções, iniciando-se por uma revisão das principais linhas de força da estratégia nacional através do século XX, a que se sucede uma circunscrição das fronteiras políticas do Estado português, avaliando o alcance da esfera de influência em termos de soberania, segurança, económica e cultural. Nas duas secções seguintes, «Enquadramento geopolítico» e «Grandes espaços» são inventariadas, respectivamente, as relações bilaterais com as regiões vizinhas (Espanha e Magrebe), e o comportamento no seio de organizações multilaterais, destacando-se, neste âmbito, a NATO, a União Europeia e a CPLP.

Os ultimos capitulos sao dedicados, por esta ordem, a uma avaliacao do potencial estrategico do Pais, no ambito terrestre, maritimo e aeroespacial, seguido de uma exposicao das coordenadas da politica externa portuguesa, onde identifica tres triangulos estrategicos, e finalmente, de uma sintese conclusiva do capitulo. Retém-se, da exposição do autor, a caracterização dos três paradigmas sucessivos na definição da estratégia portuguesa ao longo da segunda metade do seculo XX, e a inventariação dos três triangulos estratégicos - nacional, lusófono e mundial - que deverão, segundo o autor, constituir o âmago da política externa portuguesa.

SINTETIZANDO O SÉCULO XX PORTUGUÊS

O primeiro período, que serve a caracterização de um paradigma estratégico dominado pelo imperativo de defender o império colonial, tem a sua origem remota em séculos de exploração marítima que terão, com alianças felizes na Santa Sé e em Inglaterra (a potência marítima dominante), "dado viabilidade estratégica a um território que parecia «condenado» a espanholização da Peninsula Ibérica" (p. 62).

Um receio que não era, como se veio a demonstrar, infundado. O Estado português terá, na opinião do autor, conseguido com sucesso "maximizar as potencialidades e minimizar as vulnerabilidades" (p. 63). Na alvorada da II Guerra Mundial, Portugal deu prioridade a defesa dos arquipélagos e dos territórios africanos (terá beneficiado da ajuda da Inglaterra para desencorajar o interesse americano pela anexação dos Açores), mantendo, durante o conflito, uma colaboração discreta comos Aliados (cedendo facilidades na Terceira e em Santa Maria), enquanto se supõe uma proximidade ideológica, também ela discreta, aos países do Eixo. É nesta altura que se enraíza na visão estratégica do chamado «bloco ocidental» a relevância do território português insular para a sua segurança colectiva, facto que será determinante, em várias ocasiões, no destino político de Portugal. A adesão à NATO (recusada à Espanha) terá sido entendida, pelo regime, como favorável ao interesse colonial português, ainda que, nas décadas seguintes, apesar dos apelos, não tenha encontrado nesta organização, liderada pelos Estados Unidos, o apoio esperado para combater as guerrilhas independentistas que o ameaçavam.

O segundo período paradigmático é marcado pela integração europeia, depois de décadas de reservas do regime de Salazar, geralmente céptico a qualquer movimento de cooperação internacional, o que não impediu, no entanto, a adesão, com o apoio britânico, ao Plano Marshall e às organizações que daí resultaram. Portugal acabou por entrar, ainda que com um défice de entusiasmo, no comboio da cooperação económica europeia, logo em 1948. Em 1976 a opção europeia é formalizada, e desenvolvida com empenho nas décadas seguintes, tomando os sucessivos governos do Bloco Central como prioridade a ocupação de um lugar no chamado «pelotão da frente».

Sem esmorecer a convicção em consolidar a integração no espaço europeu, o autor identifica um último período, iniciado em meados dos anos 1990, com o fim da Guerra Fria, de aprofundamento das relações entre estados do chamado «espaço lusófono». Este aparece como corolário do processo histórico iniciado no século xvi e desenvolvido no projecto colonial, e tem paralelos com os projectos da Commonwealth e da Organização Internacional da Francofonia. A CPLP engloba estados em quatro continentes e institucionaliza o que o autor define como a fronteira linguístico- cultural de Portugal, em complemento das fronteiras de segurança, circunscrita na nato, e económico-política, expressa no espaço da União Europeia. Enquanto que na CPLP Portugal se apresenta como força motriz, nas duas outras, actores globais de relevo, participa como personagem secundária. Mas é, segundo José Palmeira, pelo sucesso no aprofundamento da cooperação no seio da CPLP, que Portugal aumentará a sua influência no seio daquelas organizações, uma vez que o Brasil e Angola, sobretudo, se posicionam como actores cimeiros em mercados regionais relevantes para as ambições europeias, e, para a nato, como apoios fundamentais na ampliação do seu espectro de influência ao Atlântico Sul.

TRÍADES DA POLÍTICA EXTERNA PORTUGUESA

O autor define então, e finalmente, três triângulos estratégicos, de amplitude geográfica crescente, que identificam as coordenadas da política externa portuguesa.

Estas coordenadas sistematizam-se numa «geometria variável» que deve tomar em conta e articular de forma dinâmica a multiplicidade de laços, bilaterais e multilaterais, que se foram forjando ao longo da história. O primeiro destes triângulos, que o autor denomina «nacional», agrupa os vértices Continente-Açores-Madeira. Este é o território, minguado com as independências, com que o Estado português entra no século XXI. Os arquipélagos dão-lhe uma profundidade atlântica, que lhe falta no lado continental, posicionando-se na confluência de vários «grandes espaços», e pelo qual passam importantes rotas comerciais e militares, marítimas e aéreas, ligando a Europa e as Américas, a África, o Índico e o Pacífico. Neste contexto, será exigível que o País tenha capacidade, nas palavras de Francisco Lucas Pires, de «atrair para Portugal nós de redes internacionais » (p. 202), afirmando-se como um «europorto». Esta ideia é reforçada com a proposta de que Portugal retome a sua «vocação marítima», afirmando-se no seio de uma Europa guiada por uma política externa comum como embaixador no diálogo com as várias margens do Atlântico.

E é em relação com esta vocação que se desenha o segundo triângulo estratégico, unindo no seio da comunidade lusófona, que reagrupa os antigos territórios imperiais, Portugal, Brasil e Angola. Será este o valor acrescentado de Portugal na União Europeia (UE). Brasília, Luanda e Lisboa são os vértices de um triângulo que liga três continentes distintos, sendo que os dois países meridionais detêm potencial de desenvolvimento por explorar, arrastado por condições internas diversas, e que impedem a libertação de ambos para um empenho mais consistente na cooperação internacional.

O terceiro e último triângulo, que o autor apelida «mundial», engloba a Aliança Atlântica, a União Europeia e a CPLP, e pode ser traduzido numa outra tríade: a que define os objectivos essenciais dos estados na participação em organizações internacionais, e que se declinam na segurança (assente na nato), na prosperidade (procurada na UE) e na independência (que, aceitando-se o raciocínio de que foi o Império que a proporcionou, se afiançará com a CPLP). Na vinculação a estas três organizações multilaterais Portugal assegura a participação nas principais decisões que afectam a geopolítica mundial, e, por inerência, o seu próprio destino político. É expectável que, de entre as três, se venha a sobrepor a ligação com a Europa, dado o grau de desenvolvimento da integração de Portugal na UE, a qual caminha, com passos gradualmente mais seguros, para a união política. Este aprofundamento poderá, segundo José Palmeira, suscitar um condicionamento indesejável da actual liberdade (relativa) de Portugal em gerir a geometria variável dos três triângulos estratégicos supracitados. Portugal terá interesse em manter – com o Reino Unido e a Holanda – a opção atlantista no que toca à segurança comum. Nas palavras do autor «com um passado vivido de “costas” para a Europa, Portugal, que desde 1986 integra o processo de “construção europeia”, poderá ver a sua importância geoestratégica limitada caso agora “vire as costas” ao Atlântico – à aliança preferencial com os eua e com os restantes países lusófonos, entenda-se» (p. 209).

A obra de José Palmeira tem, em suma, o mérito indiscutível de fazer um voo de águia sobre as opções e os constrangimentos da política externa portuguesa, compendiando pelo menos cinquenta anos de eventos e protagonistas, e permitindo, a um nao-iniciado, familiarizar-se com as principais pedras-de-toque do discurso politico português no âmbito das relações internacionais. Mas e talvez nesse esforço todo-englobante que se perde inevitavelmente, por um lado, o detalhe - tantas vezes mais revelador e significante -, e, por outro, alguma profundidade teórica - o primeiro capítulo peca por um tom apressado e descomplexificante. O corolário desta opção, restringindo-se frequentemente a uma verve descritiva, é cair na armadilha comum de confundir-se a voz do autor com as teses que inventaria. José Palmeira está ciente do risco quando aponta, a páginas tantas, as debilidades da análise geopolítica: a excessiva simplificação, a carga ideologica (referindo-se à ligação ao nazismo), e, citando Geroid O Tuathail, a sua vocacao nacionalista, chauvinista e conservadora (pp. 56, 217).

São, porém, ressalvas sem consequências de monta no tom predominante da obra. O texto tem, afinal, o propósito explicito de elaborar um plano programático para o incremento da relevância política internacional de Portugal, e realiza-o apoiando-se, sem uma preocupação crítica saliente, nas premissas discursivas dominantes das últimas décadas.

 

* Licenciada em Antropologia pela Universidade Nova de Lisboa (2000) e mestre em Ciências Sociais (2006) pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Desenvolve actualmente um projecto de doutoramento sobre a política externa portuguesa e o mundo árabe.