SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número23Biografia de uma família entre Meca e Las VegasPela definição de um conceito estratégico nacional índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.23 Lisboa set. 2009

 

O europeísmo relutante do Estado Novo

José Magone *

 

Nicolau Andresen Leitão

Estado Novo, Democracia e Europa 1947-1986

Lisboa,

ICS,

2007, 325 páginas

 

Um dos mais importantes passos para compreender a natureza do processo de integracao europeia em relacao a Portugal e o conhecimento dessa historia, tal como ela se desenrolou desde 1945. A ditadura de Antonio Oliveira Salazar, e a do seu sucessor, Marcelo Caetano, teve bastantes dificuldades em lidar com o processo de integracao europeia. O regime autoritario foi forcado, contra os seus instintos paroquiais, a negociar politicas comerciais que abriam o mercado continental portugues nao so a outros paises europeus, como tambem ao resto do mundo. Neste processo de adaptacao a realidade pos. 1945, dominada pelo novo poder hegemonico dos Estados Unidos e pela Guerra Fria, Portugal seguiu quase sempre a politica externa da Gra-Bretanha. A velha alianca estabelecida pelo Tratado de Windsor de 1386 era muito importante para Salazar, que tendia a adoptar uma atitude de mimetismo relativamente a posicao britanica, nomeadamente em materia de integracao europeia. A contragosto, Salazar reconhecia que o novo poder hegemonico dos Estados Unidos tinha contribuido para a mudanca do equilibrio de poder mundial, mas os seus instintos eram os de procurar sobreviver num contexto adverso, no qual tanto a democracia como os direitos humanos estavam a tornar-se importantes critérios para a integração de um país na sociedade internacional de estados.

Esta excelente monografia de Nicolau Andresen Leitão, investigador associado no prestigiado Instituto de Ciências Sociais, é um estudo histórico das políticas de integração europeia dos ditadores Oliveira Salazar e Marcelo Caetano. Andresen Leitão é um discípulo do conhecido historiador britânico Alan Milward, autor do importante livro The European Rescue of the Nation-State (1992). A obra aqui apresentada é a adaptação de uma tese de doutoramento defendida por Andresen Leitão no Instituto Universitário Europeu (Florença), em Março de 2004. Parafraseando o seu mentor, poderíamos dizer que o estudo de Andresen Leitão tenta no fundo descrever e analisar «a salvação europeia da ditadura portuguesa». Com um conhecimento profundo dos arquivos portugueses e da União Europeia, Andresen Leitão expõe de forma detalhada as discussões internas mantidas pelos protagonistas do regime autoritário entre 1948 e 1972, embora com uma maior incidência no período que vai de 1948 a 1962.

O estudo está dividido em seis capítulos.

O primeiro é uma caracterização do regime autoritário de Salazar e um esboço da equipa de Salazar nas negociações europeias. O segundo é dedicado às negociações para o estabelecimento de uma zona de comércio livre no contexto da Organização de Cooperação Económica Europeia, negociações essas que foram usadas pela Grã-Bretanha para tentar lançar uma alternativa à Comunidade Económica Europeia (CEE). O terceiro centra-se no processo de adesão à efta e nas dificuldades na negociação com a CEE em 1962. O quarto e quinto capítulos são uma avaliação das economias continental e coloniais portuguesas, ambas extremamente dependentes da Europa. O último capítulo ocupa-se do período que vai do fracasso das negociações com a CEE em 1962 à assinatura do acordo comercial com a mesma organização em 1972, e encerra com um sumário dos mais importantes desenvolvimentos ocorridos até 1986.

UM BUROCRATA BEM-SUCEDIDO

A qualidade deste trabalho consiste na reconstrução dos argumentos dos diferentesprotagonistas no seio do regime autoritário. O autor não escreve muito sobre Salazar, mas mais sobre os diplomatas e políticos que de alguma maneira influenciaram o processo decisório português.

O estudo pormenorizado das posições dos diferentes actores centrais do Estado Novo mostra que até num regime autoritário um certo pluralismo de opiniões pode existir.

O protagonista do seu estudo não é nenhum dos mais conhecidos políticos da época, mas um burocrata que, a pouco e pouco, foi aumentando o seu prestígio e influência na hierarquia do Estado Novo. A personagem principal é o jurista José Gonçalo da Cunha Sottomayor Corrêa d’Oliveira, que desde o início acompanhou todas fases da política europeia do Estado Novo. Nos anos 1960 tornou-se ministro da Presidência (1961-1965) e da Economia (1965-1969), tendo-se distinguido antes disso como o principal negociador da surpreendente adesão de Portugal à Associação de Comércio Livre Europeia (European Free Trade Association – EFTA), em 1959-1960.

O estudo de Andresen Leitão foi naturalmente muito difícil de realizar porque a tendência de Salazar para concentrar em si a rotina da governação, e consultar os seus ministros numa base bilateral, deu origem a poucas reuniões de Conselho de Ministros – e isso quer dizer poucas actas de reuniões, a principal ferramenta para um historiador da alta política governamental.

O estudo mostra como os negociadores portugueses tinham grandes dificuldades em reunir boa informação técnica. Pouco investimento em recursos humanos e estruturas técnicas punham as delegações portuguesas em desvantagem perante os negociadores de outros países e instituições. Em Setembro de 1948, foi criada a Comissão Técnica de Cooperação Económica Europeia para coordenar as negociações aos diferentes projectos de integração europeia, mas durante todo o período do regime autoritário houve uma enorme dificuldade em formar peritos, tão notória era a obsessão de Salazar com a contenção de despesas administrativas. Esse facto prejudicou consideravelmente a posição portuguesa, a qual não tinha estudos científicos e empíricos sobre a maior parte dos assuntos com que se confrontava. Esta falta de recursos humanos contribuiu para atrasos consideráveis nas negociações com a CEE. Segundo um responsável português, as negociações foram prejudicadas não só por atrasos burocráticos, ineficiência e falta de especialistas em assuntos comunitários, mas também por lutas intestinas entre a facção europeísta e a facção ultramarinista do regime. Além disso, até Janeiro de 1962, Portugal não possuía diplomatas em Bruxelas que se pudessem ocupar exclusivamente das negociações, e só a partir dessa data é que passou a contar aí com um representante a tempo inteiro. Também no processo que conduziu à adesão à efta, o Governo britânico criticou Portugal por não possuir a capacidade política, administrativa ou técnica indispensável para uma adaptação bem-sucedida ao mundo moderno. Críticas semelhantes continuaram depois da adesão à efta, formuladas principalmente pelos países escandinavos (pp. 40-43).

Naturalmente, essa pressão internacional foi determinante para a mudança de estilos dentro da Administração portuguesa.

A partir de 1949, Portugal passou a ter de enviar relatórios anuais para a OECE, os quais tiveram um importante impacto nos planos de fomento. A internacionalização e integração nos círculos europeus forçaram uma modernização moderada da Administração e diplomacia portuguesas (p. 47).

Um terceiro aspecto do estudo mostra como a diplomacia portuguesa era extremamente dependente da diplomacia britânica, a qual se distinguia pela sua hostilidade a uma evolução supranacional do projecto europeu. Andresen Leitão mostra como a Grã-Bretanha agiu activamente contra essa integração supranacional, principalmente no processo negocial que conduziu aos Tratados de Roma, os quais fundaram a cee e a Euratom (pp. 67-70).

Uma característica positiva da diplomacia portuguesa foi a sua flexibilidade e capacidade para mudar de posições. Um bom exemplo foi a possibilidade contemplada por Corrêa d’Oliveira de requerer apenas o estatuto de membro associado da CEE em 1962. Por um lado, a associação da Grécia tornou-se de certa forma um modelo para Portugal, devido ao facto de as duas economias apresentarem grandes similitudes em termos de desenvolvimento; por outro lado, essa seria uma maneira de Portugal proteger melhor os seus interesses relativamente ao império colonial (pp. 129-135).

QUESTÃO COLONIAL E OPÇÃO EUROPEIA

Para além da sua natureza ditatorial, o império colonial terá sido o problema mais difícil para Portugal em termos interna cionais. As guerras coloniais das decadas de 1960 e 1970 deram azo a um acrescimo de criticas por parte dos partidos socia.democratas na Belgica, Holanda e Italia.

A tentativa de criar o Espaco Economico Portugues a 1 de Janeiro de 1962 veio agravar as relacoes comerciais entre as colonias e Portugal, devido aos diferentes niveis de desenvolvimento (pp. 222-223).

O imperio colonial dividiu a elite salazarista/ caetanista ate 25 de Abril de 1974.

O lobi colonial e os apoiantes da opcao europeia tinham projectos incompativeis para Portugal. Andresen Leitao salienta alias o facto de o general Antonio de Spinola, o lider da Junta de Salvacao Nacional, ter ele proprio apresentado um projecto nacional no seu livro Portugal e o Futuro, publicado em Fevereiro de 1974, cujo aspecto fulcral era a preservacao do imperio colonial portugues sob novas roupagens.

Apesar de excelente e muito bem investigado, este estudo merece dois reparos que julgo importantes para a compreensao da historia da integracao europeia de Portugal. A primeira critica e que o autor nao apresenta um capitulo sobre a literatura existente sobre essa area. Varios autores, como Maria Fernanda Rollo e Jose Manuel Tavares Castilho, sao citados no trabalho, mas Andresen Leitao nao discute suficientemente as suas obras, no sentido de esclarecer esclarecer até que ponto se propõe oferecer um contributo original. Uma revisão da literatura é essencial para estabelecer uma forte cultura de investigação na história da integração europeia de Portugal. Além disso, seria muito importante fazer um relatório dos arquivos utilizados e das dificuldades com que os estudiosos se deparam para encontrar documentos sobre o período. Nesse capítulo devia também haver uma referência à metodologia utilizada.

A segunda crítica é que o autor parece ter sucumbido à tentação do marketing, prometendo mais do que aquilo que oferece.

O título da obra promete um estudo abarcando o período de 1947 a 1986, mas, na realidade, o período que vai de 1972 a 1986 é arrumado com sete páginas no último capítulo. Na minha opinião, essas sete páginas cobrem um período crucial da história recente de Portugal e, comparadas com a excelente qualidade do resto do livro, denotam alguma tendência para a simplificação.

Apesar destas duas críticas, é indiscutível que estamos perante um valioso contributo para a compreensão dos processos decisórios dentro do regime autoritário português. Estado Novo, Democracia e Europa é, pois, uma obra indispensável para todos os estudiosos da integração europeia e de Portugal.

 

* Professor na Berlin School of Economics and Law e autor de numerosos ensaios sobre política portuguesa e espanhola contemporânea e temas europeus, entre os quais The Developing Place of Portugal in the European Union (2004) e The New World Architecture: The Role of the European Union in the Making of Global Governance (2005).