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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.23 Lisboa set. 2009

 

Biografia de uma família entre Meca e Las Vegas

Margarida Santos Lopes *

 

Steve Coll

Os Bin Ladens

– Uma Família Árabe no Século Americano

Lisboa,

Tinta da China,

2008, 653 páginas

 

 

Depois dos ataques da Al-Qaida nos Estados Unidos, a 11 de Setembro de 2001, o mercado editorial foi inundado com biografias, algumas sérias e outras oportunistas, de Osama bin Laden. O jornalista norte-americano Steve Coll, duas vezes premiado com o Pulitzer, foi mais longe e oferece-nos agora a mais completa história de um clã oriundo de uma terra que se traduz por «A morte está entre nós» e que um analista do fbi descreveu como sendo «99,999999 por cento de variante não-maléfica».

Os Bin Ladens – Uma Família Árabe no Século Americano é o resultado de uma longa investigação que incluiu mais de 150 entrevistas nos Estados Unidos, Arábia Saudita, Iémen, Grã-Bretanha, Suíça, Alemanha e Israel, além da pesquisa em arquivos de tribunais, correspondência original e outros documentos. O objectivo, bem conseguido, foi o de retratar os bin Ladens no microcosmo da família real saudita e no macrocosmo das relações entre Washington e a Casa de Saud, antes e depois do 11/9. Em mais de 650 páginas, Coll expõe de forma brilhante a luta contínua dos 24 filhos e 29 filhas de Mohamed bin Laden para conciliar tradição, religião e modernidade, aversão e atracção pelo Ocidente, num mundo vertiginoso e sem fronteiras.

A história desta família começa com a fuga de Awad bin Laden da região desértica de Hadhramawth, no Iémen. Embora tivesse sido «uma poderosa federação», com governantes e xeques, por volta do século xvii, a tribo Kenda, a que pertenciam os bin Ladens, tornara-se, devido à guerra incessante, «um mero clã familiar» de umas 400 a 500 pessoas em luta pela sobrevivência. Quando a mais temível tribo Obeid exigiu (e ameaçou) Awad que pagasse 40 riais pela morte de um boi que pedira emprestado para lavrar a terra, o avô paterno de Osama não teve outro remédio se não abandonar a sua aldeia ancestral de Gharn Bashireih. Instalou-se em Doan, também no Iémen, fora do alcance dos Obeids. Trabalhou arduamente e morreu jovem. Teve três filhos: Mohamed, Abdullah e Omar (que não escapou às doenças que então afligiam as crianças).

Aos 12 anos, órfão de pai, Mohammed juntou-se a caravanas de camelos e seguiu viagem a pé até ao porto de Mukalla. Daqui, velejou para África e arranjou trabalho na Etiópia, onde perdeu o olho direito (agredido por um patrão ou vítima de um acidente laboral – há as duas versões). Regressado a Doan, depois de um forte terramoto na Abissínia que devastou a economia local, voltou a partir, desta vez com o irmão Abdullah, em direcção a Jidá, na Arábia Saudita.

A descrição que Coll faz de Jidá quando Mohamed aí chega, crê-se que em 1925, é tão minuciosa como todas as estórias, ora deliciosas ora amargas, que vai contando ao longo do livro. Nesta cidade, onde as temperaturas «subiam muito acima dos 37º no Verão e os ventos impregnados de sal do mar Morto asfixiavam a respiração, os jornais desfazem-se em farrapos, os fósforos recusam-se a acender e as chaves enferrujam no bolso. […] Os produtos à venda no mercado estão cobertos com tantas moscas que não se sabe qual é a sua cor sem primeiro as afastar» (p. 39).

 

A ALIANÇA DE ROOSEVELT E ABDULAZIZ

Foi nesta Jidá – que durante mais de mil anos «serviu de porta de entrada para Meca», atraindo muçulmanos de África, do Sudeste Asiático, da Índia e da Europa – que Mohamed e Abdullah, «tão pobres que de início dormiam numa vala cavada na areia», cobertos com sacos, começaram a erguer um vasto e opaco império – sem livros de contabilidade e com contas offshore.

O primeiro emprego de Mohamed foi de carregador, no comércio ligado aos peregrinos. Pouco tempo depois, vendia, por conta própria alimentos grelhados no mercado de Nadha, rua paralela à linha costeira de Jidá. Atraído pela indústria ligada à construção civil, foi procurando trabalhos ocasionais neste sector. Em 1931, já tinha a sua pequena empresa de construção. Com a chegada da Grande Depressão, Mohamed voltou a empreender viagem, desta vez até Dhahran, onde foi assentador de tijolos e pedreiro.

Por esta altura, em 1933, os americanos já se tinham instalado na Arábia Saudita para explorar as riquezas petrolíferas recém‑descobertas no reino fundado um ano antes por Abdulaziz Ibn Saud. Ainda que alguns possam não achar relevante, é um excelente trabalho jornalístico o perfil do monarca absoluto traçado por Coll, repórter da New Yorker que antes foi editor no Washington Post.

Abdulaziz era «casado com 153 virgens e outras cem mulheres». Adorava aparelhos de rádio para ouvir as notícias no seu palácio – a Marconi ajudou-o com este revolucionário sistema de comunicação a «seguir o rasto de potenciais rebeldes na periferia» e ele convenceu os eruditos islâmicos a aceitarem os programas de música da bbc dizendo-lhes que o problema estava nos botões e não nas emissões. Caçava antílopes com falcões, avariando em corridas no deserto os mais de 250 automóveis Ford e Chevrolet oferecidos por executivos norte­‑americanos. Em 1945, quando Abdulaziz se encontrou com Roosevelt a bordo do navio de guerra Quincy Jones, para firmar uma aliança que ainda hoje é estratégica, anfitrião e visitante «começaram a falar acerca das maravilhas da cadeira de rodas, tendo o Presidente americano presenteado o rei com um dos últimos modelos» (pp. 46-54).

 

A ASCENSÃO DO PEDREIRO

Foi em Dhahran que Mohamed bin Laden chamou a atenção de um pedreiro americano, que o considerou «mesmo muito bom». Em poucas semanas, o novo consórcio criado para explorar o petróleo – Arabian American Oil Company (aramco) ­ promoveu-o a capataz da equipa de assentadores de tijolos e, meses depois, voltaria a ser promovido a supervisor.

Ao fim de um ano e meio, provadas as suas capacidades de dirigir pessoas e levá-las a executar o trabalho, Mohamed informou a aramco de que queria ter o seu próprio negócio. A aramco aceitou atribuir-lhe empreitadas, porque era difícil recrutar americanos para a Arábia Saudita. Em 1935, o sucesso do iemenita era tão grande que se tornou independente do consórcio para se tornar dependente dos favores reais.

Começou por construir casas para alguns príncipes e «não se sabe bem quando e como bin Laden conheceu Abdulaziz, mas rapidamente muitas ordens reais o autorizaram a estabelecer projectos em Riade», o mais importante dos quais o primeiro palácio [de Al-Murabba] inteiramente de pedra construído na capital. Aqui, Mohamed concebeu uma «solução engenhosa» para o soberano chegar «com dignidade» à sala onde recebia os súbditos. Tratava-se de «uma rampa de pedra circular que ia da estrada particular do palácio até ao segundo andar. Era suficientemente larga e robusta para que Abdulaziz pudesse seguir num dos seus Ford directamente até ao Majlis, sair do automóvel e sentar-se no trono».

Estes e outros projectos deram a Mohamed, já um homem rico, confiança necessária para se casar. Tinha quase 40 anos. Por volta de 1943, nasceu a primeira filha, Aysha, o nome da mulher favorita do profeta Maomé. Depois arranjou um segundo casamento com uma rapariga de 14 anos e nasceu o primogénito, entre 1944 e 1945. Chamou-lhe Salem, em homenagem a um amigo. Osama é filho de uma síria, que tinha 14 anos quando se casou e menos de 18 quando Mohamed se divorciou dela (embora sempre a tivesse apoiado financeiramente – até lhe arranjou outro marido, um dos seus administrativos).

 

A PAIXÃO PELOS AVIÕES

Salem ocupa uma grande parte do livro de Coll e, com Salem e os seus Fokker-27, Learjet 25-D, Hwker-125, Boeing e um aeroporto em Houston (Texas), apercebemo-nos da paixão desenfreada e por vezes fatal que os bin Ladens têm por aviões. Mohamed foi o primeiro a possuir um avião particular na Arábia Saudita e morreu quando o seu piloto americano despenhou o aparelho numa arrojada descolagem. Salem, perito em acrobacias, também perdeu a vida numa pista, mas antes pagou aulas de voo à meia-irmã favorita, Randa, que sobreviveu por um triz a uma aterragem forçada. Outros na família sentiram o mesmo apelo pela aviação. Em 2001, seriam os aviões a arma usada por Osama (um dos raros que não aprendeu a voar) para destruir as Torres Gémeas em Nova York.

Com Salem ganhamos também a percepção da luta que a família exerce pela influência social – podem ter-se tornado milionários mas, ainda vistos como hadhramis iemenitas, nunca poderão unir-se pelo casamento a membros da Casa de Saud.

Coll descreve Salem, o bon vivant, como o oposto de Osama, o «príncipe do terror», que só merece destaque a partir do capítulo x. Enquanto o filho mais velho de Mohamed, que se tornou o patriarca da família após a morte do pai, gosta de álcool, drogas e rock & roll, o filho número 17 proíbe que na sua casa se veja os «blasfemos» vídeos da Disney e se beba por palhinhas porque estes não existiam no tempo do Mensageiro de Alá (pp. 214-215). Enquanto o primeiro esbanjava dinheiro em extravagantes festas de jet-set, o segundo angariava fundos para os mujahedin afegãos (ainda que Salem tivesse ajudado nesta missão, com apoio de Ronald Reagan). Enquanto Salem sonhava construir em Jidá «uma propriedade familiar que se assemelhasse às Nações Unidas», para acomodar quatro mulheres a quem propôs casamento (uma norte-americana, uma alemã, uma britânica e uma francesa), Osama planeava uma jihad (guerra santa) global.

Incapaz de encaixar na vida louca de Salem e de outros parentes, entre Meca e Las Vegas, Osama foi-se afastando cada vez mais da família, e a família foi obrigada ao corte (quase) total de relações quando ele renegou a Casa de Saud. Após a morte de Salem, os bin Ladens viveram altos e baixos mas nunca pensaram que um irmão tímido e discreto se tornasse um bárbaro terrorista, apátrida e fugitivo. A ruptura familiar, que incluiu mediáticos processos de divórcio, como o de Carmen e Yeslam, permitiram concluir que Osama afinal não é tão rico quanto se pensava. E não é tão devoto quanto clama ser – não se importou, aparentemente, que o Bin Laden Group, de que era accionista, transformasse a moradia «meio mítica» onde Maomé viveu em Meca antes das revelações divinas numa… «cintilante casa de banho pública» (pp. 445-447).

Depois do 11/9, consciente da importância que os bin Ladens representavam para a Arábia Saudita e dos interesses dos Estados Unidos na Arábia Saudita, o embaixador do reino em Washington convenceu as autoridades norte-americanas a fretarem aviões para recolherem – na Florida (alguns passeavam-se na Disney World), na Califórnia e em Boston – vários elementos da família que se tornara indesejada.

Rapidamente, porém, tudo voltou à normalidade. Os bin Ladens continuam a ser um dos maiores conglomerados da Arábia Saudita – da construção civil às telecomunicações. Um irmão é um dos principais accionistas do Hard Rock Café Middle East. Outros financiam filmes de Bollywood ou gerem prisões privadas nos Estados Unidos. O actual patriarca, Badr, engenheiro formado na Universidade de Miami, tem um contrato para erguer o edifício mais alto no emirado do Dubai – entre os seus amigos estão Carlos, herdeiro do trono de Inglaterra, e os ex-presidentes americanos George H. Bush (pai de W.) e Jimmy Carter.

Apesar de alguns «deslizes» do autor, como chamar Al-Quds, termo árabe para Jerusalém, à Mesquita de Al-Aqsa, naquela cidade (p. 459) e de erros do tradutor/revisor como «interviu» em vez de «interveio» (p. 110), Os Bin Ladens, tal como o anterior livro de Steve Coll que lhe valeu um Pulitzer, Ghost Wars: The Secret History of the CIA, Afghanistan, and bin Laden, from the Soviet Invasion to September 10, 2001, é indispensável a quem procure entender a esquizofrénica relação entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita – o maior produtor mundial de petróleo e primeiro exportador do fundamentalismo islâmico wahabita, antes do Irão xiita em 1979.

Mesmo que Osama jamais tivesse existido, a assombrosa história dos bin Ladens merecia ser contada.

 

* Redactora principal do jornal Público. Escreve sobre Israel, o mundo árabe e muçulmano desde 1979. É autora de Dicionário do Islão, Palavras, Figuras e Histórias (Editorial Notícias) e Arafat, A Pedra Que os Palestinianos Lançaram ao Mundo (ed. Público).