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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.23 Lisboa set. 2009

 

Reviver o passado na China

Helena Ferreira Santos Lopes *

 

Jonathan Fenby

The Penguin History of Modern China. The Fall and Rise of a Great Power, 1850-2008

Londres,

Allen Lane,

2008, 763 páginas

 

 

«O passado precisa de ser compreendido para entender as correntes mais profundas que estão na base da fulgurante China moderna», asseverava Jonathan Fenby num artigo publicado no Times em 2008. Essa ideia parece ter norteado a redacção do seu monumental volume The Penguin History of Modern China. The Fall and Rise of a Great Power, 1850-2008.

Jonathan Fenby tem uma carreira ligada ao jornalismo (Observer, South China Morning Post, Economist, Independent, Guardian e agência Reuters) e, nos últimos anos, tem-se dedicado a escrever sobre a China, sendo autor da muito elogiada biografia Chiang Kai-shek and the China He Lost. Em 2008 publicou The Penguin History of Modern China, onde, em trinta e dois capítulos organizados em seis partes, pretende traçar um quadro – essencialmente político – da China desde a Revolta dos Taiping (cuja ressonância posterior o autor destaca) até à presidência de Hu Jintao. Uma edição ampliada da obra saiu no final de Março de 2009, contendo parcas alterações em relação ao original. Poucos meses depois seria publicado um livro que certamente justificaria a nova edição: o diário secreto de Zhao Ziyang, secretário-geral do pcc aquando dos acontecimentos de Tiananmen em 1989 e que viveu o resto da sua vida em prisão domiciliária.

 

MODERNIZAÇÃO E REACÇÃO

Na parte inicial do livro de Fenby são referidas as primeiras tentativas de modernização durante o domínio Qing – da reforma moderada, que advogava a defesa do progresso industrial e militar onde se destacou o «modernizador em contexto imperial» Li Hongzhang no seu movimento Autofortalecedor (que na prática se saldou em fracasso) aos projectos de reforma radical, onde a figura mais proeminente foi Kang Youwei, cuja influência sobre o imperador Guangxu se traduziu nos chamados «Cem Dias», durante os quais se promulgaram medidas que modernizavam o sistema militar, a educação e a imprensa. No entanto, as forças que se opuseram a esses projectos começaram por triunfar e as reformas dos Cem Dias foram anuladas pela reacção conservadora da imperatriz viúva Cixi, que colocou Guangxu isolado no Palácio de Verão até ao final dos seus dias, em 1908 (Fenby desvaloriza a ideia de envenenamento de Guangxu mas este seria confirmado cientificamente, em Novembro de 2008, já depois da publicação da primeira edição desta obra).

Depois da revolta xenófoba dos boxers, Cixi viu-se forçada a aceitar programas de mudança, com destaque para a abolição dos exames imperais que durante séculos foram a porta de acesso a cargos públicos. Após a morte da imperatriz, outros esforços de reforma foram introduzidos, como o estabelecimento de assembleias provinciais, algo cujo alcance Fenby não atribui grande importância, ao contrário de autores como Rana Mitter. Este professor de Oxford acredita que, se as reformas dos Qing não tivessem sido interrompidas pela implantação da república em 1912, a China poderia ter evoluído para uma monarquia constitucional.

A queda da monarquia (minada nos últimos anos por várias revoltas) e a instauração da república resultaram noutros projectos de modernização, mas também esses, pensados pelo idealista Sun Yat-Sen, não tiveram a força necessária. O homem a quem Sun entregara a presidência, Yuan Shikai, depressa se deixou seduzir por uma ideia de poder autocrático e à sua morte (pouco depois de se ter declarado imperador) seguiu-se um período de fragmentação política numa miríade de senhores da guerra. «A força tornou-se no derradeiro árbitro da política, estabelecendo um padrão que persistiria durante o século [xx]» (p. 117).

Conseguida alguma unificação sob Chang Kai-Chek, novas tentativas de modernização foram pensadas e Fenby atribui-lhes mais importância do que é costume. Sob o Governo de Chang foram, por exemplo, promulgadas medidas para «uniformizar moedas, impostos, pesos e medidas provinciais», foi «lançada uma linha aérea», «o dia de trabalho foi fixado em oito horas», «o trabalho infantil foi abolido», «diplomatas chineses foram colocados na Europa, em Washington e na América Latina, e obtiveram lugar em organismos internacionais», e assistiu-se a um surto de construção de novos edifícios (pp. 196­‑197). Apesar de tudo, os «planos para a expansão do serviço de saúde e da educação nunca cumpriram os seus objectivos» (p. 203). Por exemplo, a descrição que Fenby faz do ideal de «capitalismo estatal» (p. 209) pretendido por Chang e pelo Kuomintang apresenta peculiares semelhanças com a situação da China actual. O início do conflito com o Japão viria, porém, impossibilitar a aplicação de quaisquer reformas. A corrupção endémica, a progressiva alienação dos intelectuais e a ineficácia do Exército contribuiriam decisivamente para a queda do regime de Chang Kai-Chek, embora Fenby atribua igual importância à preparação dos comunistas: «A vitória comunista não foi um caso espontâneo. Fora cuidadosamente preparada ao longo dos anos e podia agora adoptar os elementos postos em prática pelo líder supremo durante a longa demanda pelo derradeiro poder, incluindo as armas do terror e da repressão afiadas em Yenan» (p. 337).

As mais radicais tentativas de modernização sob o domínio de Mao Zedong – o Grande Salto em Frente e a Revolução Cultural (que defendia a abolição dos «Quatro Velhos»: velhos pensamentos, velha cultura, velhos costumes e velhos hábitos) – tiveram resultados catastróficos.

Com a morte de Mao e a afirmação do poder de Deng Xiaoping, muitos esperavam que a «reforma e a abertura» preconizadas por este último não fossem somente económicas. Mas as ideias de acolher finalmente o «Mr. Democracy», reivindicado no Movimento de Quatro de Maio em 1919, terminaram tragicamente com a investida contra os manifestantes em Pequim, setenta anos depois.

Segundo Fenby, «como havia sido repetidamente o caso desde os Cem Dias de 1898, a pressão para reformar fora acolhida com repressão. Tal como a imperatriz viúva, Yuan Shikai, Chang Kai-Chek e Mao Zedong, Deng tornou-se um homem que reprimia a liberdade se esta parecia ameaçar o regime que dirigia, e, portanto, a sua própria posição» (p. 636).

Para o autor, a China do século xxi encerra uma questão crucial: ou os seus líderes são capazes de superar a pesada herança do passado ou os problemas sociais (resultantes da crescente desigualdade) e políticos vão ameaçar os sucessos económicos das últimas décadas – sendo que as mudanças já não afectarão apenas a China, mas o mundo inteiro.

UMA HISTÓRIA REVISIONISTA?

Embora procure criticar algumas ideias comummente aceites sobre a história da China, a dimensão revisionista desta obra não faz dela propriamente um marco. Na verdade, a maior parte do que aqui se lê pode ser encontrado nos estudos de outros autores, embora seja mérito de Jonathan Fenby conhecer vários deles e incluir as suas conclusões mais importantes.

No tocante à guerra sino-japonesa iniciada inequivocamente em 1937, Fenby contraria uma visão centrada no Ocidente que ainda prevalece, reconhecendo ao conflito a relevância merecida que este teve no contexto da II Guerra Mundial (embora só em 1941 aquele tivesse sido «integrado» nesta). Quando foca as atrocidades cometidas pelos japoneses em território chinês, nomeadamente na chamada «violação de Nanquim» em 1937, o autor afirma que se este seu livro pretende um «reconhecimento mais honesto da sua história» pelos chineses, o mesmo é válido para os japoneses, criticando aqueles que continuam a reduzir Nanquim a «algumas execuções e incidentes dispersos» (p. 282). Ainda assim, as suas descrições ficam aquém dos horríficos pormenores que Iris Chang detalhou no seu seminal The Rape of Nanking, obra a que Fenby terá ido colher muita informação.

Fenby também não se coíbe de criticar algumas ideias propagadas pelo pcc. Considera, por exemplo, que as referências de Mao ao Movimento de Quatro de Maio como o momento no qual o proletariado tomou as rédeas da revolução, são um «completo disparate», uma vez que «tal como os seus antecedentes nos tempos imperiais, o movimento era dirigido por intelectuais e estudantes, e tinha pouca ou nenhuma ligação aos trabalhadores industriais e muito menos aos camponeses» (p. 145). Desvaloriza igualmente, e de forma discutível, o papel dos comunistas na luta contra o Japão – um pilar do discurso oficial até hoje. Diz Fenby que

 

«durante o êxodo de Jiangxi, o Presidente mostrou-se determinado a apresentar o pcc como o verdadeiro movimento patriótico dedicado à luta contra os japoneses. Ele podia, calmamente, proclamar esta missão a partir de Yenan, sabendo que a sua localização geográfica significava que o partido não estava em posição de fazer nada. Em vez disso, foi Chang e Nanquim que enfrentaram o inimigo. Os comunistas nunca lutariam contra um inimigo comum, como fizeram os nacionalistas, mas a Guerra de Resistência providenciou-lhes um segundo grande ícone para juntar à Grande Marcha à medida que a China implodia sob uma sucessão de conflitos e desagregação nacional […]» (p. 264).

 

No entanto, a Grande Marcha é descrita como um feito extraordinário. Fenby considera que «o facto de ter sido conduzida por um homem que se revelaria o assassino monstruoso que foi Mao não invalida, de maneira nenhuma, o feito dos que participaram na marcha. Por isso retém uma legítima posição na iconografia da China e é um memorial à resistência humana, quaisquer que fossem os motivos dos que lideravam» (p. 253).

Embora refira a importância da produção e tráfico de ópio para o financiamento de senhores da guerra, durante o Governo nacionalista, e dos japoneses depois da invasão, Fenby chama também a atenção para um dado pouco mencionado: o facto de o ópio ter contribuído para sustentar economicamente a base comunista de Yenan, mesmo que o seu consumo ali fosse proibido.

Chu En-Lai, personalidade geralmente bem vista dentro e fora da China, é objecto de palavras bastante duras de Fenby, que apesar de lhe reconhecer uma posição de moderador na Revolução Cultural, não hesita em afirmar que «sempre seguiu as ordens de Mao» (p. 380), detalhando: «Embora frequentemente visto como a face mais humana do comunismo chinês, ele tinha uma longa história de tolerar ou organizar actos de violência desde o tempo em que esteve à frente dos esquadrões de assassinato nos anos 1920 até à sua liderança do Grupo Central de Inspecção, que interrogava e torturava quadros superiores [do partido]» (p. 380). Claramente, Fenby não consegue conciliar as ambiguidades da acção política de Chu En-Lai tão bem como fez Gao Wenqian na sua biografia Zhou Enlai: The Last Perfect Revolutionary que, não por acaso, está ausente das referências bibliográficas deste livro.

Apesar de tudo, são vários os reparos à biografia de Mao escrita por Jung Chang e John Halliday, desvalorizando algumas das suas teses mais críticas, como a «invenção» da batalha do rio Dadu (p. 258) durante a Grande Marcha ou a ideia do general nacionalista Hu Zongnan, que tomou Yenan em 1947, ter sido um espião comunista (p. 337).

De referir também a relevância dada à tumultuosa relação dos Estados Unidos com os nacionalistas no final da II Guerra Mundial e imediatamente a seguir, bem como a visão algo ingénua que vários americanos tinham dos comunistas antes de 1949. As tensões entre Chang e o general americano Joseph Stilwell são paradigmáticas do desagrado com a inacção e corrupção do regime de Chang e a sua intransigência em fazer qualquer cedência aos comunistas. São sem dúvida interessantes as alusões à «Missão Dixie» à base de Mao em Yenan, em 1944, que permitiu ao diplomata americano John Service reportar que os comunistas «eram democratas que queriam trabalhar com os liberais do kmt [Kuomintang] para reformar a China» (p. 311) ou que Roosevelt «acalentava a ideia de que os Comunistas chineses eram “socialistas agrários”» (p. 311). A mesma opinião teve o general Marshall quando visitou a China em 1946, tendo abandonado o país profundamente desapontado com os nacionalistas. Tendo em conta o estado das relações sino-americanas nos anos pós-1949, estes dados revestem-se de particular interesse.

 

OPÇÕES E OMISSÕES

O trabalho de investigação necessário para coligir uma obra com esta dimensão foi sem dúvida assinalável mas é imperativo notar alguma ausência de referências a fontes documentais coevas além de jornais e agências noticiosas ou trabalhos publicados. Na extensa bibliografia apresentada pelo autor no final do livro, constata-se também um completo predomínio dos títulos em língua inglesa, não se encontrando qualquer obra em língua chinesa. E em mais de 700 páginas, o autor consegue não inserir um único caracter chinês! Esta dependência de obras de outros investigadores faz com que, em certas partes do livro, o discurso de Fenby seja quase totalmente inspirado nas visões de terceiros, como é o caso dos capítulos dedicados à Revolução Cultural, onde se serviu – assumidamente – do que fora publicado por Roderick MacFarquhar e Michael Schoenhals em Mao’s Last Revolution.

Escrever uma história de um país, mesmo que apenas no período moderno pode ser uma missão hercúlea, se não se delinear claramente o que se quer abordar. Abarcar a história da «China moderna» num só volume é, já de si, uma tarefa complicada, mas outros já o fizeram com óptimos resultados (cf. The Search for Modern China de Jonathan Spence). A obra de Jonathan Fenby não é propriamente inatacável em termos de organização. Nota-se alguma escassez de informação relativamente aos movimentos intelectuais e às artes e ao seu notável contributo para a compreensão da «modernidade» chinesa. As próprias relações internacionais são mencionadas sem grande detalhe, exceptuando os casos da Rússia e dos Estados Unidos. Por exemplo, no que diz respeito à Revolução Cultural, Fenby alude a alguns confrontos existentes em Hong Kong mas permanece silencioso sobre tudo o que se passou em Macau.

Outro aspecto questionável é o número de capítulos dedicado a cada assunto. Por muito importante que seja não esquecer os acontecimentos que levaram ao massacre de Tiananmen em 1989, é no mínimo intrigante que estes tenham direito a quatro capítulos, ao passo que o Grande Salto em Frente, que o próprio autor refere dizendo ter sido responsável pela pior mortandade do século xx (uma fome de onde terão resultado 30 milhões de mortos), merece apenas dois.

É também de assinalar os escassos parágrafos dedicados a Taiwan, território que continua a denominar-se oficialmente República da China (difícil aceitar que uma história da China apenas mencione brevemente a violenta repressão da revolta anti­‑Kuomintang que estalou em Taiwan em 1947, sem nunca sequer usar a designação por que ficou conhecida: «Incidente 228»).

Centrando-se nos meandros da política interna, o autor consegue caracterizar satisfatoriamente as várias forças que se digladiaram ao longo da segunda metade do século xix e do século xx chinês. Na narrativa dos acontecimentos encontram­‑se integradas como que pequenas biografias dos intervenientes, que fornecem informações mais ou menos relevantes para o percurso de figuras de proa ou secundárias na história da China moderna. Há uma tendência jornalística de Fenby para incluir alguns faits-divers como o facto de as pérolas saqueadas do túmulo de Cixi terem acabado nos chinelos de Madame Chang (p. 196), que Chang Kai-Chek celebrou o ataque japonês a Pearl Harbor pondo a tocar a «Ave-Maria» num gramofone (p. 302) ou os efeitos que tiveram as pernas de Madame Chang na Conferência do Cairo (p. 317). A relevância de tais episódios é discutível mas diverte.

Não se procure aqui um trabalho de investigação de ponta. The Penguim History of Modern China é, acima de tudo, uma boa obra de síntese, que com algum detalhe introduz o leitor nos acontecimentos e personalidades durante o período analisado. Pelas constantes comparações estabelecidas, ajuda a identificar permanências, e, pela densidade e encadeamento dos factos abordados, permite vislumbrar parte da complexidade da história chinesa e de como esta continua a ecoar no presente.

 

* Licenciada em História pela FCSH – UNL, encontra-se actualmente a realizar um estágio no Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros.