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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.23 Lisboa set. 2009

 

A guerra dos mundos

João Pedro Vieira *

 

Anthony Pagden

Worlds at War: The 2,500-Year Struggle between East and West

Oxford,

Oxford University Press,

2008, xxvi + 548 páginas

[tradução portuguesa nas Edições 70]

 

 

O PASSADO À LUZ DO PRESENTE

A violência das reacções do mundo islâmico à influência ocidental motivou, nas últimas décadas, um crescente interesse pelas relações entre Ocidente e Oriente. A equação das relações entre o Ocidente e o Oriente especificamente islâmico tem dominado essa linha de investigação, acompanhada menos frequentemente pela indagação das raízes históricas profundas de um conflito reconhecidamente estrutural e mais antigo que a própria Europa e o islão.

Anthony Pagden, professor em Ciência e História Política na Universidade da Califórnia, é um dos autores que mais recentemente contribuiu para o conhecimento da densidade histórica desse conflito, mergulhando muito para além dos horizontes históricos habitualmente examinados. Em Worlds at War, Pagden procura traçar as origens longínquas e a evolução, tanto autêntica como fictícia, do antagonismo civilizacional entre Ocidente e Oriente. Ao longo dos seus doze capítulos, Pagden procura também ensaiar e fundamentar respostas a questões-chave actuais como a superioridade do desenvolvimento socioeconómico ocidental, a evolução política e económica divergente entre Ocidente e islão, ou ainda o fracasso genérico da democracia nos países islâmicos do Médio Oriente. O autor assume explicitamente uma posição ocidental e salienta a vertente também ela ocidental desse relacionamento, expressando claramente a sua convicção nos efeitos genericamente benéficos das realizações do Ocidente secular – «People live longer lives; they live freer lives, they may even live happier lives»(p. 458).

A documentação da vasta rede de processos históricos que daí assoma é suplementada por vinte e uma ilustrações, que individualizam grandes figuras e acontecimentos de dimensão real ou mítica ilustrativos do conflito entre Ocidente e Oriente, e cinco mapas, que vão apresentando o ponto de situação geopolítico desse confronto, passando pelas suas fases mais significativas.

 

DESFIANDO AS MALHAS DE UM LONGO ANTAGONISMO…

No prefácio ao estudo, Pagden lança o tema do antagonismo entre Ocidente e Oriente através do fenómeno da globalização. De facto, é altamente significativo que o esbatimento das fronteiras físicas e culturais a nível mundial não tenha resultado no desvanecimento progressivo desse conflito profundo, cujas origens se intersectam com as próprias origens da Europa e da civilização ocidental. Embora os limites entre os blocos civilizacionais se tenham sempre mostrado fluidos e a identidade dos protagonistas se tenha transformado ao longo do percurso, as fronteiras então definidas mantêm-se ainda hoje perfeitamente operantes.

Se a primeira definição dessas fronteiras remonta aos neo-assírios, coube a Heródoto a identificação de dois complexos civilizacionais distintos, com antecedentes míticos no Rapto de Europa e na Guerra de Tróia. Para Heródoto e toda a tradição intelectual grega e latina (e posteriormente ocidental), a diferença fundamental entre Ocidente e Oriente residia na civilização, com a sua cultura e os seus valores, e na forma de organização política: era, em suma, a diferença entre a virtude e o vício, a liberdade e a escravidão. As Guerras Pérsicas tiveram uma importância fulcral na configuração primitiva do conflito, representando o primeiro choque entre duas «civilizações» em formação e a primeira tentativa, fracassada, de unificação entre Europa e Ásia.

À flutuação das fronteiras políticas correspondeu, desde o início, uma dinâmica bidireccional que oscilava entre o endurecimento e a dissipação das fronteiras civilizacionais entre os dois mundos, dissipação essa para a qual o maior contributo na Antiguidade foi aportado pelo domínio cosmopolita e universalista do Império Romano, na esteira do exemplo de Alexandre Magno. Curiosamente, os gregos, outrora representantes da matriz ocidental, foram relegados pelos romanos para um Oriente falso, sumptuoso, lascivo e despótico. O cristianismo, de origem oriental, assimilou as pretensões universalistas do Império, mas veio a revelar-se uma ameaça ao processo cultural integrador, tolerante e universalista de Roma. A assunção desse legado antigo pela Igreja trouxe consigo ambições políticas que estiveram na origem de uma longa história de confrontação entre sacerdotium e imperium. No século xii, essa confrontação entrou em processo de resolução em benefício do Império, do expansionismo europeu iniciado pelas Cruzadas, um dos mais dramáticos e brutais confrontos entre Ocidente e Oriente, e de uma concepção secular de poder.

Com o islão, que continha potentes ambições de expansão universal fundadas na religião e preconizava a fusão inextricável entre as esferas religiosa e política, o antagonismo entre Ocidente e Oriente assumiu contornos predominantemente religiosos. Adquirindo um aspecto mais intolerante, a dicotomização do conflito potenciada pelo islão agravou-se com o final do período de explosão criativa que o caracterizara até ao século xii e com a vitória ubíqua da ortodoxia religiosa.

Após o movimento das Cruzadas, cujas repercussões simbólicas reverberaram através dos séculos até à actualidade, a Europa, em parte pressionada pelas su­cessivas derrotas militares, começava a desenvolver as primeiras tentativas de compreensão do islão. O islão foi sentido durante toda a medievalidade e parte da modernidade como uma terrível ameaça, exponencialmente encarnada pelo Império Otomano. Todavia, a inversão dos equilíbrios político-militares iniciada no século xvii denunciava a transformação profunda da relação entre Ocidente e Oriente em curso.

O desenvolvimento tecnológico, intelectual e científico da Europa, conquistado à custa do efeito estimulante de violentas fracturas internas, começava a elevá-la gradualmente a uma posição de superioridade. A época das Luzes ofereceu o molde para a formação da mais importante das matrizes culturais da Europa e evidenciou, juntamente com o aumento das relações comerciais e diplomáticas, o contraste entre o subdesenvolvimento, a ignorância, o fanatismo, a estagnação das sociedades orientais, e o despotismo sufocante dos seus regimes, por um lado, e a liberdade, racionalidade, conhecimento e progresso que supostamente definiam o Ocidente, por outro.

A ocupação napoleónica do Egipto, aparentemente epifenoménica, acabou por despoletar um conjunto de grandes mutações no mundo árabe islâmico do Médio Oriente e na relação entre Ocidente e Oriente. Para Pagden, as campanhas napoleónicas foram a origem longínqua do nacionalismo árabe e do projecto de criação de um Estado judaico na Palestina, para além de instilarem na consciência de algumas elites muçulmanas a necessidade de modernização, processo de que o Egipto seria um dos primeiros exemplos. No Império Otomano, o processo reformista desencadeado na primeira metade do século xix resultou na modernização do Estado e especialmente numa secularização parcial da sociedade turca sem paralelo no mundo islâmico.

O recrudescimento do interesse político e estratégico do Médio Oriente para o Ocidente nunca parou de aumentar desde então, assumindo cada vez maior intensidade. A intensificação da influência política e comercial ocidental sobre o Médio Oriente amplificou os contactos entre ambos os blocos e estimulou reflexões, da parte árabe-islâmica, sobre o subdesenvolvimento crónico das suas sociedades. Com o colapso do Império Otomano durante a I Guerra Mundial, o Médio Oriente viu drasticamente redefinidos os seus equilíbrios geopolíticos e assistiu ao pico da presença e domínio ocidentais. A difusão dos nacionalismos e o surgimento de uma nova vaga de governantes autocratas como Nasser e Sadam Hussain, mais ou menos herdeiros do reformismo islâmico da segunda metade do século xix, impulsionaram aparentemente o processo de modernização dos principais países islâmicos da região.

Porém, as derrotas militares, políticas e ideológicas perante o Estado de Israel, o fracasso do pan-arabismo e os resultados limitados ou mesmo decepcionantes dos processos de reforma, abriram a oportunidade para a ascensão de movimentos radicais formados na sequência do recuo político britânico da região e da criação do Estado de Israel. O ponto de viragem ocorreu com a Revolução Iraniana. O islão recuperava subitamente a sua dimensão expansionista e de domínio universal, na sua faceta mais intolerante e irredutível. O islamismo radical, sob a égide da religião e da jihad universal, tomava a dianteira de um fenómeno de contestação e subversão em larga escala. O inimigo, do cultural e religiosamente outro a potências políticas específicas, transfigurou-se rapidamente na própria civilização ocidental.

Afinal, quais as diferenças de fundo actuais entre Ocidente e Oriente islâmico? Quais os motivos da incapacidade dessas sociedades para gerar um desenvolvimento socioeconómico sustentável e para a implantação de formas de governação mais representativas e igualitárias? Pagden conclui, sem novidade, que a razão fundamental repousa na relação entre religião e política: enquanto no islão impera o decreto divino, a lei religiosa, o respeito imobilista pela tradição, no Ocidente é o primado da lei secular – fruto da vontade humana – que prevalece, garantindo a defesa dos valores estabelecidos pelas Luzes, a grande conquista civilizacional da Europa e do Ocidente. A igualdade, a justiça, o respeito pelos direitos humanos, são garantidos pelo menos natural dos regimes políticos, a democracia, que não pode ser implementada em países sem preparação, nem uma tradição cultural estruturalmente semelhante à ocidental: a democracia não faz simplesmente sentido para a maior parte do mundo árabe islâmico (p. 453).

Em última instância, não é apenas a estrutura do conflito entre Ocidente e Oriente, juntamente com as suas fronteiras, que se conserva basicamente a mesma: é o mesmo projecto utópico de unificação universal que continua vivo.

 

HISTORIOGRAFIA E COMPROMISSO IDEOLÓGICO

A síntese de conteúdos acima delineada permite seguir latamente a evolução da narrativa, mas não evidencia, no entanto, algumas estruturas discursivas cuja apreensão colabora na optimização da leitura do estudo de Pagden. A mais importante dessas estruturas consistirá porventura no posicionamento ideológico explícito do autor, conforme já mencionado.

De facto, o autor não faz qualquer esforço para dissimular as suas convicções ideológicas no concernente ao modelo de organização política e social que deve enquadrar a vida colectiva – a democracia liberal e uma «sociedade secular esclarecida e liberal» – e à influência perniciosa dos «mitos monoteístas» na história da humanidade (pp. xx-xxi). Para Pagden, o Ocidente secular e a democracia liberal são, em última instância, os motores do desenvolvimento socioeconómico mundial cujos benefícios são já sentidos por grande parte do mundo, e os ideais de matriz iluminista têm nessa irradiação benéfica uma função primacial (pp. 458-459). Esses valores, na sua óptica, continuam a garantir a resistência bem-sucedida a todo o género de ameaças, desde o fundamentalismo ao relativismo cultural (p. 266). Porém, o autor está perfeitamente consciente de que, embora seja o melhor regime disponível e o mais promissor na defesa e promoção de valores como a liberdade, a igualdade e o humanismo, a democracia não é perfeita, não é uma via exclusiva para o desenvolvimento e tem um tortuoso processo de afirmação por trás.

Pagden deixa portanto que o presente funcione de certo modo como guia do passado, sem contudo forçar leituras. Os capítulos finais do estudo são, por isso, cruciais, representando o desembocar de um esforço interpretativo direccionado para a explicação do presente, como se pode observar, por exemplo, na seguinte passagem: «Tornou-se agora possível para alguém de origem paquistanesa, nascido na Grã-Bretanha, falante de outra língua que não o inglês, rebentar-se a si e a uns quantos outros numa soalheira tarde londrina a 7 de Julho de 2005, em retaliação pelas humilhações infligidas sobre populações de que nada sabia, em locais distantes do mundo que nunca tinha visitado» (p. 437).

As afinidades ideológicas do autor com o modelo sociopolítico democrático liberal e secular apenas circunscritamente afectam a capacidade crítica requerida pela análise historiográfica. Curiosamente, essa fragilidade não se faz sentir onde os problemas de objectividade se suporiam mais preocupantes: o período contemporâneo é uma área onde Pagden assume um tom tendencialmente mais sóbrio e ponderado. Efectivamente, a sua visão sobre as épocas moderna e contemporânea é mais circunstanciada, mais sistemática e penetrante do que no que se refere às épocas antiga e medieval. Um único reparo se impõe: Pagden aparenta encarar a globalização apenas pelo seu lado positivo, investindo assim numa utopia de raiz ­iluminista e ignorando a influência do fenómeno na radicalização das reacções islâmicas ao Ocidente.

Pelo contrário, é para a época clássica que o discurso do autor, amiúde tributário de fontes bastante enviesadas (por exemplo, Suetónio), revela menos trabalho crítico. Assim, os sucessores de Augusto são descritos como «uma sucessão de governantes corruptos e incompetentes» (p. 78); Calígula é por sua vez caracterizado como «sadista neurótico inquieto com propensão para o incesto» (p. 79), enquanto Cláudio recebe o rótulo de «cruel e sanguinário» (p. 80), sendo Nero «o mais destrutivo de todos», uma personalidade profundamente patológica, obscena (ibidem). O contraponto da visão difamatória da dinastia júlio-claudiana é a visão apologética do período dos Antoninos enquanto aurea aetas (por exemplo, pp. 57, 81).

A utilização nem sempre criteriosa das fontes clássicas levanta, por sua vez, a questão mais abrangente da relação entre fontes eminentemente literárias, a criação literária e representação historiográfica, na medida em que o autor reaproveita por vezes a elaboração literária das fontes para narrar eventos históricos ou lendários. O acompanhamento das campanhas militares do exército persa por Xerxes (p.26 e segs.), ou a descrição da sumptuosa chegada de Cleópatra a Tarso (p. 71), oferecem a Pagden oportunidades para a inserção de descrições de superior beleza literária, explorando sobretudo a vertente do imaginário. Mas o aproveitamento do debate constitucional entre Otanes, Megabizo e Dario como fonte histórica, por exemplo, parece excessivo (pp. 9-12). Não estará o autor neste caso, como noutros, a resvalar para uma sobre-representação historiográfica da dimensão real e ideológica da história? Privilegiar o plano do imaginário não resultará numa sobrevalorização das proporções do conflito civilizacional, particularmente nas suas fases iniciais?

A discussão destes aspectos, entre outros, como a existência de algumas gralhas e incorrecções terminológicas, destina-se a despertar a atenção crítica do leitor, e não a dissuadi-lo da relevância de um estudo de grande interesse e valor que funde, num discurso envolvente e estimulante, temáticas e contextos históricos tão díspares. As visões por vezes redutoras que Pagden oferece, mais que deficiências, mostram pelo contrário os limites naturais de um trabalho de síntese de grande envergadura que exige uma vastíssima mobilização de conhecimentos e uma apreciável plasticidade mental. É particularmente louvável o constante esforço do autor para mostrar e discutir a faceta oriental do conflito e as representações sobre o Ocidente que lhe estão associadas. Worlds at War é sem dúvida um estudo digno da atenção demorada de todos os que pretenderem perscrutar de forma integrada as transformações e natureza de um conflito que parece sobreviver a todos os seus protagonistas e se estende para além de todos os fins da história anunciados.

 

* Licenciado em História pela FCSH – UNL. Mestrando em História Antiga na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.