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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.23 Lisboa set. 2009

 

PALOP: de Copenhaga a Inhambane, um itinerário atulhado

René Pélissier *

 

Generalidades e Reagrupamentos

Comecemos por um livro intimidante1. E porque é que intimida? Pelo seu volume. Pela extensão da ambição do autor e também pela sua personalidade conflituosa. Militante antimarxista, muitas vezes ostracizado por numerosos africanistas universitários, minimiza certos aspectos das colonizações europeias e recorda, pelo contrário, que não foram unicamente predadoras. Evidentemente, denuncia os que persistem, contra todas as evidências, em negar o factor étnico e o tribalismo em África. Tem, em geral, um espírito claro e um estilo de fácil leitura. Por falta de espaço, limitar­‑nos-emos aqui ao período contemporâneo (até 2008), às poucas páginas que dedica a Portugal e a Espanha. «Quem muito abarca pouco aperta», inevitavelmente. E as suas fontes, neste domínio, nem sempre são fiáveis. Por exemplo: Silva Porto nunca atingiu, pessoalmente, o oceano Índico. Estranhamente, consagra uma página a Serpa Pinto, mas não tem absolutamente nada a dizer acerca da conquista portuguesa de 1885 a 1915, ainda que nos cite de passagem. Atribuir 59 páginas à França em África (1885­‑1914) justifica-se, devido ao público a que se destina. E por isso também dedica 28 páginas à Alemanha, de quem é fervoroso admirador. Mas apenas quatro páginas e meia dedicadas a Portugal mostra que não se livrou ainda de um certo desdém pelas colonizações pobres, mas não secundárias. Curiosamente, e tendo em conta as suas posições políticas, limitar a três páginas e meia a descolonização portuguesa (contra cinco e meia para a espanhola) parece-nos insuficiente.

Em compensação, as secções referentes a Angola e Moçambique após a independência são bem mais sóbrias e factuais, mas a inversão de cinco-seis páginas na impressão dos dois textos torna a sua leitura difícil, quase incompreensível para um não especialista. Escreve que 400 (?) europeus foram massacrados, a 21 de Outubro de 1974, em Moçambique. Ainda mais surpreendente, vindo da sua pena, lemos, incrédulos, que as forças do mpla (as fapla) tomaram Mavinga em Dezembro de 1987, o que é falso, e duplamente espantoso da parte de um admirador dos boers e do Exército da África do Sul. Na verdade, se tivesse redigido mais lentamente esta obra, útil no seu princípio, teria podido ocupar um lugar de primeiro plano no género «grande síntese» da história de África. Que não tenha um único dado sobre as perdas portuguesas registadas durante a Guerra Colonial não agradará, tão-pouco, ao autor que se segue nem, evidentemente, a algumas centenas de milhares de antigos combatentes lusófonos que revisitem as suas memórias feridas.

A macrocompilação de José Brandão2 tinha um objectivo simples: estabelecer, ano após ano, de 1961 ao 25 de Abril de 1974, um máximo de datas marcantes da Guerra Colonial e indicar os nomes dos soldados mortos (em acidentes ou em combate), as unidades às quais pertenciam, a sua patente, o dia do falecimento e o seu local de nascimento. O problema com este livro é que não utilizou todas as fontes oficiais tornadas públicas. Desde logo, dos 8831 mortos oficialmente reconhecidos (número que nos parece, desde já, discutível), o autor conseguiu apenas identificar pouco mais de três mil nomes, o que é totalmente insuficiente. Além disso, temos as maiores reservas em relação ao número de "mais de 800 mil metropolitanos" enviados para África, mas o autor não é responsável por ele. Foram os serviços do Estado-Maior que lançaram esta estatística fantasma, que poderá ser reduzida a partir do momento em que os militares forneçam a lista nominal de todos os soldados da metrópole realmente embarcados. Teremos surpresas. Mas será que as queremos? Talvez já vá sendo altura.

Desejamos agora uma descida de tensão, talvez uma anomalia recreativa? Quando um historiador descobre um romance susceptível de lhe trazer elementos sociológicos ou uma cor local, como uma intriga que ponha em cena personagens emblemáticos, não sabe onde a sua curiosidade o conduzirá. A ficção de Aurore Costa3, mestiça residente em França, com duas avós originárias de Angola e de Moçambique, à partida anunciar-se-ia promissora.

Mas a história, não datada nem localizada, fala de um confronto entre uma sociedade africana, com os seus feiticeiros, e os colonizadores portugueses, de amores multi-raciais contrariados e de muitas outras coisas provavelmente tiradas de um contexto histórico impreciso mas lusófono (pelo menos em parte). É necessário ser mais sagaz que Sherlock Holmes para explorar este romance.

Ao invés, eis outro que agradará aos amantes de super-heróis. Mais importante ainda é que é palpitante do início ao fim. Concebido por um médico americano, antigo boina verde no Vietname, depois alistado na Rhodesian Light Infantry, é o texto de um anticomunismo encarniçado, uma luta vitoriosa contra as "forças do Mal".

A vantagem do romance para nós é que tenta apoiar-se numa cronologia, ainda que algumas vezes deficiente ou insuficiente, e em experiências vividas e de seguida reinventadas e embelezadas. Vemos então, nesta história-ficção, o nosso herói americano bater-se em Angola (pp. 115-199) onde, sozinho, pulveriza um campo de soldados cubanos em 1975, em nome da FNLA e, por isso, contra o MPLA. Esqueçamos os erros e as inverosimilhanças e reencontremos este Rambo inoxidável junto dos rodesianos, intervindo em Moçambique onde funde as lembranças de operações em que participou, contra a ZANLA de Mugabe e a FRELIMO (Outubro de 1976). Transferido para os Selous Scouts, a ponta de lança dos rodesianos, torna-se um mito invencível, inacessível ao medo e à piedade. O interesse do livro reside, portanto, na centena de páginas que nos permitem ver como funcionavam as tropas rodesianas a leste da sua fronteira. Mas Keith A. Nelson4 deixa-se levar demasiado pela sua imaginação se nos quer fazer crer que realizou operações na Tanzânia e em Cabo Delgado contra a ZANLA, que ainda está, aliás, por provar que tenha tido comandos militares soviéticos, em Moçambique.

Equatoria5 apresenta-se, também, como um romance mas é, em vez disso, um relato de viagem apaixonante e original de um escritor reconhecido. O argumento do autor é a reconstituição literária das viagens e da vida de Savorgnan de Brazza e de Stanley, seguindo mais ou menos o equador. Segue os passos do franco-italiano em São Tomé em 1885, "um inferno esclavagista" na época e, em Fevereiro de 2006, um refúgio para os antigos "mercenários Buffalos" de Pretória. Visita-os a eles e à poetisa Alda Graça. Stanley condu-lo pela mão em Luanda, onde o olhar cínico do viajante pousa sobre o Carnaval, sobre Pepetela e sobre Manuel Rui (de quem recorda o passado de procurador no processo dos mercenários anglófonos com os quais trabalhava o herói do autor precedente). Como o mundo é pequeno para a confraria dos romancistas, Patrick Deville faz surgir Jonas Savimbi e evoca o seu cadáver desaparecido do seu túmulo em Lucusse (Angola oriental). O que é bom em Deville, que por vezes toma certas liberdades com a história, é que também ele é um shadow tracker (em princípio a sua sombra é constituída pelos despojos errantes de Brazza, entre Argel e Brazzaville). Mas é sobretudo um gato-pingado sarcástico, com um assomo de desespero diante do estado da África. Este homem é Kurtz entre os lusófonos.

Mudança completa de registo com o estudo aprofundado de Gail Wanneburg6 e o seu importante relatório (ao estilo ONG) sobre a criminalidade organizada no fim de uma guerra civil ou de um conflito interno na sociedade local. Três anos de trabalho na Serra Leoa, na República Democrática do Congo, no Zimbabwe e, naturalmente, em Angola e Moçambique. Segundo o autor, a luta é desigual entre as redes mafiosas e o fracassado Estado africano. Para Angola (pp. 228-262), disseca todas as formas de actividade ilegal (corrupção, tráfico de diamantes e de influências, droga, mercado negro, roubo de viaturas, moeda falsa, tráfico de armas, de mulheres e de crianças para a África do Sul). Ficamos a saber o que são os Pablos (os grandes traficantes de droga de Luanda, com a alcunha proveniente de Pablo Escobar, um dos antigos reis da cocaína colombiana) que estão infiltrados na Polícia e no Exército.

O autor também não poupa a UNITA. Deville já nos tinha falado de um grupo de jovens gangsters de Luanda mas não sabíamos que alguns desses bandos são dirigidos pelos filhos de grandes famílias locais. O que é dito sobre as redes mafiosas, detalhadas segundo as origens (libanesa, congolesa, zambiana, oeste-africana, forças armadas [FAA], UNITA, criminosos europeus e americanos) parece-nos muito novo.

Em Moçambique (pp. 309-346), encontram-se mais ou menos as mesmas formas de criminalidade mas, para além disso, com actividades específicas (branqueamento de dinheiro, fraudes bancárias, assassinato de crianças para a exportação de pedaços de cadáveres para os feiticeiros da África do Sul). O país é uma plataforma giratória da droga. Uma parte dos lucros é investida na construção, nos hotéis, nos casinos, nos bancos paquistaneses. As redes são portuguesas (com a importação de produtos roubados na África do Sul), nigerianas (com a droga), sul-africanas, sul-americanas (em Maputo há um enclave chamado Little Colombia), paquistanesas, etc. Estamos longe de António Enes!

Regressamos ao clássico com o exame de um aspecto das relações diplomáticas entre Lisboa e o Governo de Juscelino Kubitschek para chegar ao paradoxo de uma democracia brasileira apoiante do regime salazarista e da sua política colonial que exploravam, um e outro, os mitos do luso-tropicalismo estendidos à África e ao Oriente. O autor7 trabalhou nos arquivos de Lisboa que lhe pareceram mais abertos do que os do Brasil. Não possuindo competências sobre assuntos brasileiros, limitar-nos-emos a notar que o interesse do breve estudo de Rampinelli parece situar-se na descoberta cruzada da riqueza da documentação existente sobre este episódio nos dois países. É evidente que tem razão para insistir sobre a contradição aparente entre os dogmas proclamados de um lado e de outro do Atlântico Sul. Mas explica-nos porquê e é aí que se torna mais inovador, pois as motivações dos brasileiros na época não eram simples.

NAS ILHAS

Não tenhamos medo dos contrastes insulares e comecemos pelo "bom aluno da África Ocidental", ou seja, destaquemos Cabo Verde como o único PALOP a receber as felicitações da maioria dos autores e - mais importante - a injecção de fundos que o ajudam a sair de uma pobreza endémica e sistémica. Libertado das quimeras de antanho e tornado realista e pragmático, o arquipélago não poderá em caso algum queixar-se do colectivo dirigido por Michel Lesourd8. Em princípio trata-se de um guia turístico de luxo que descreve, ilha a ilha, as curiosidades e as particularidades do país, mas o livro vai bem mais longe: a geografia, a flora e a fauna, a história, a religião e as tradições, as artes, a cultura e a economia ocupam cerca de 60 páginas, com grandes pormenores por vezes desconhecidos mesmo da maioria dos especialistas dos grandes PALOP. A única reserva que pode ser feita a esta verdadeira enciclopédia é a ausência de uma bibliografia. Não obstante, e sem serem todos laudatores cegos pelo seu amor a Cabo Verde, os autores conseguiram obter um balanço francamente positivo da situação depois da independência. Este texto mereceria, portanto, uma tradução em português. E se não fizer viajar centenas ou milhares de novos turistas e dezenas de homens de negócios, então nada sabemos sobre o ofício de bibliógrafo! Abaixo do equador, infelizmente, o quadro não é assim tão cor-de-rosa.

Existem já vários atlas publicados sobre os países da CPLP, mas nenhum nesta colecção lusófona atingiu o nível consagrado a São Tomé e Príncipe, por uma razão simples: quanto mais o território e a população são reduzidos mais o autor pode ir ao fundo das coisas. O texto de Augusto Nascimento9 é por isso recomendado pela sua minúcia, a sua concepção globalizante da história, do contexto socioeconómico, da política interna e externa e da cultura do arquipélago. É uma enciclopédia ilustrada, sem iludir os constrangimentos devidos à insularidade e à herança da escravatura, e depois do trabalho forçado. Conhece bem o seu terreno e as fraquezas de uma população que não ultrapassou ainda o estado de uma dependência aceite e talvez mesmo desejada por alguns.

ANGOLA

Todos os exércitos têm, uns mais e outros menos, unidades favoritas cujo valor, reputação ou eficácia as colocam no lugar dos mitos. Mas é raro - salvo a Legião Estrangeira em França e em Espanha - que se procurem os heróis entre soldados vindos d'além das fronteiras nacionais. Ora, desde os anos 1990 assistimos ao florescimento de livros sul-africanos consagrados a dois "corpos" totalmente incongruentes no seio do regime do apartheid, pois eram compostos essencialmente por africanos negros, mestiços ou "amarelos" oriundos de Angola (e também, em menor grau, de São Tomé): os "Buffalos" e os Bushmen. Depois de muitos outros títulos, eis que apenas no ano de 2008 aparecem sobre este assunto dois novos textos traduzidos do afrikaans. À data de publicação, a obra de L. J. Bothma10 é a mais pormenorizada sobre os "Buffalos". Apoiando-se nos depoimentos de oficiais e suboficiais sul-africanos, numa pesquisa pela imprensa e bibliografia anterior, o relato é muito personalizado (com diálogos reconstituídos). As descrições das operações são particularmente elaboradas, sobretudo para as que se desenrolaram em Angola de 1976 a 1986. O autor é mais sintético para as actividades do batalhão (na verdade tinha efectivos bem superiores) nas operações maciças de 1987-1988 na região do Cuíto Cuanavale. Um trabalho indispensável para conhecer o papel destes "mercenários arregimentados" e, talvez ainda mais útil, o estado do Sudeste angolano tal como o autor o reviu ao regressar ao local em 2003. É necessário completá-lo com as recordações de um jovem tenente que escolheu combater neste corpo de elite onde mesmo os oficiais afrikaners deviam aprender português para se fazerem entender pelos seus homens. A utilidade do texto11 está contida na descrição detalhada do dispositivo sul-africano para e diante do Cuíto Cuanavale em Novembro de 1987 (retirada dos sul-africanos e mesmo da UNITA). Mas em Dezembro de 1987, o batalhão regressa a Angola pois os cubanos começam a reforçar as FAPLA do MPLA. A companhia do autor tem de ir até Menongue para tentar cortar a linha de abastecimento da frente. Atacados pelos Mig, conseguem mesmo assim destruir um comboio de cubanos-FAPLA (em Janeiro de 1988). Em Abril-Maio de 1988, torna a partir para o norte da Ovamboland para bombardear os campos da SWAPO. Em Julho (?) de 1988, enfrenta a ofensiva cubana (Calueque-Ruacana). Um livro onde o leitor pode comparar a ferocidade desta guerra convencional moderna com as recordações portuguesas da contraguerrilha que nunca precisou de contratar intérpretes espanhóis, alemães ou russos para decifrar as telecomunicações do inimigo. Uma diferença de escala incomensurável a quinze anos de distância.

Com a mesma origem, mas mais técnico, o grande livro do general Dick Lord12 pode ser considerado como a história para-oficial das operações aéreas da África do Sul em Angola. De um anticomunismo virulento, apoia-se nos arquivos pessoais e nos testemunhos de antigos pilotos, o que torna a leitura menos árida. As intervenções militares de Pretória em Angola remontam a 1971 ao Sudeste angolano, nas regiões do Cuíto Cuanavale, Nriquinha e Mavinga. Os portugueses pedem-lhes que cartografem igualmente Cabinda e uma parte de Moçambique. Os problemas começam a sério em 1975, quando perdem dois pequenos aparelhos abatidos pelos cubanos. E a grande ofensiva desencadeia-se, entretanto, com a operação "Protea", entre a fronteira e a linha Humbe-Mupa. Uma centena de aviões e helicópteros são destacados para apoiar as tropas no terreno no Cuanhama (Agosto-Setembro de 1981). De seguida, em quase 300 páginas, é-nos fornecido o plano de todas as intervenções em socorro da UNITA ou para empurrar a SWAPO para o Norte. A partir de 1984, são as FAPLA-cubanos que se transformam no inimigo número um. O enorme reforço do seu arsenal soviético conduzirá às grandes batalhas clássicas de 1987-1988, em que os sul-africanos se apercebem que, mau grado a habilidade dos seus pilotos, os Mig soviético-cubanos são superiores à maior parte dos seus aparelhos. Esta história triunfalista deveria interessar algumas bibliotecas militares lusófonas. Sem falar nos aviadores profissionais ou em simples amadores.

Para agradar aos raros especialistas das Lundas de Angola limitar-nos-emos a assinalar uma publicação que talvez possa esclarecê-los se se quiserem orientar nos labirintos da etno-história da África Central. Para nós, que não temos o fio de Ariadne, o livro de Matadiwamba Kamba Mutu Tharcisse13 é bastante mais impenetrável que a imensa - e luxuosa - história de Angola de Jan Klíma14, que segue uma cronologia séria e fornece uma bibliografia respeitável em mais de 40 páginas. Mesmo que as suas entradas sejam impossíveis de encontrar na República Checa, há pelo menos um esforço de divulgação meritório da parte deste historiador checo que demonstrou uma vontade e uma constância notáveis em dar a conhecer aos seus compatriotas os PALOP com os quais a República Checa teve, até agora, laços muito limitados. É mesmo extraordinário para um só homem. Tem o génio do detalhe e, usando os trabalhos dos seus antecessores, consegue uma síntese verdadeiramente incrível, porque é ao mesmo tempo generalista na sua ambição e cintilante pela massa de personagens que inclui. Por exemplo, o índice, que ocupa, a duas colunas, 26 páginas, inclui dez Almeidas, desde um governador do século XVI até ao ícone sacrificial do MPLA, Deolinda Rodrigues de Almeida, assassinada pelos homens de Holden Roberto. Mutatis mutandis, é como se um autor e um editor portugueses estivessem bastante optimistas e redigissem e publicassem, em português, um livro de 400 páginas muito densas sobre a história do Sudão, esperando vendê-lo. Tendo em conta a debilidade das relações históricas entre a República Checa e Angola, o autor e Karel Sieber (uma contribuição de 18 páginas sobre as relações entre os dois países entre 1961 e 1984, marcadas duramente pelo rapto de técnicos e suas famílias pela UNITA), foram buscar aos sítios mais recônditos checos que estiveram no terreno ou que colaboraram com os angolanos, de perto ou de longe.

Não é inocente notar que Savimbi aparece em 60 páginas, mais do que José Eduardo dos Santos, e que a edição foi, em parte, financiada pelo Banco de Poupança e Crédito.

Portanto, não há apenas Pablos em Angola. Também encontramos homens da finança menos "friorentos" que os bancos e empresários portugueses (ou americanos) quando se trata de favorecer trabalhos científicos que nenhum proveito lhes trazem mas que os honram. Chega-se aos antípodas do que espera obter todo o ditador que deseja branquear a sua reputação.

Será por isso que ainda não houve - em nosso entender - ditadores dignos desse nome nos PALOP, apesar de algumas tentativas interessantes? Não era essa a opinião de uma figura marcante no angolanismo francês, especialidade em vias de rarefacção, depois do desaparecimento da sua némesis em pessoa, Christine Messiant (1947-2006). Trotskista incondicional e apaixonada inconsolável por uma Angola ideal, de 1982 a 2005 publica ou deixa inéditos uma vintena de artigos ou pedaços de livros fundamentais sobre a Angola pós-colonial. Diluídos em publicações de público modesto, arriscavam-se a cair no esquecimento. É portanto uma excelente ideia tê-los reunido e editado, dado que a sua massa "crítica" (mais de 800 páginas) nos recorda que esta socióloga exigente se tornara na investigadora muito crítica e segura que, provavelmente, melhor conhecia as sombras e os abismos da situação em Angola após a independência. Os subtítulos dos dois volumes15 indicam bem a orientação do pensamento da autora. Não tinha ilusões; incansavelmente denunciava. O quê? Praticamente toda a política do MPLA e da UNITA e em particular esse imenso atoleiro que foi a guerra civil, a ausência de democracia, a corrupção, a miséria das populações, o que ela denominava a "oleocracia", a etnicidade, a impotência das igrejas ou a sua timidez, etc. Impiedosa, mas magistralmente documentada, esta dialéctica omnisciente não era do género de fazer concessões. Tinha amigos nas oposições ao MPLA, bastante menos no aparelho do partido, pelo menos nos estratos que tiravam e tiram partido das suas larguezas. Nada mais diremos. Além disso, o leitor pode ler num posfácio revelador as 21 páginas da sua biografia, onde se documenta o seu itinerário intelectual e mesmo privado.

Pela mesma ordem de ideias (consagração de um pensador marxista angolano tido, retroactivamente, em alta estima), consultar-se-á igualmente um livro relativo à vida e obra de Viriato da Cruz16. Morreu por acreditar nas quimeras do maoísmo, e na miséria, junto daqueles que julgava serem os seus defensores, mas que simplesmente se serviam dele. Pode mesmo perguntar-se se a vida deste intelectual mestiço não foi a prefiguração do que se tornarão as relações sino-angolanas nas próximas décadas. Talvez então surja um verdadeiro ditador. A parte mais "digesta" do livro é dedicada ao Viriato poético e ao Viriato político pelos que o conheceram ou admiraram de mais longe. O capítulo mais trabalhado é o de um politólogo e historiador sinólogo sobre o percurso chinês de Viriato (1958-1973). A última centena de páginas reúne escritos doutrinários e documentos de arquivo acerca do herói sublimado, fulminado antes de ter visto o que iria acontecer às suas aspirações revolucionárias.

Regressemos a um livro de viagens que há muito esperávamos, pois mesmo os historiadores têm o direito de evocar os seus amores de juventude. Neste caso trata-se do Sul de Angola, entre Julho de 1894 e Janeiro de 1895, a nossa "madalena de Proust" angolana. Como demorámos trinta anos a encontrar o livro de Rosenblad em sueco, estamos muito contentes por agora existir uma reedição anotada e em inglês17. Trata-se de um relato de viagem e das caçadas efectuadas na companhia do grande Axel Eriksson entre Moçâmedes e o Cuanhama do rei Weyulu onde os viajantes foram muito bem recebidos. O texto e as notas são úteis para se conhecer a Angola meridional (pp. 17-54) antes da conquista portuguesa para além do Cunene. Depois das destruições operadas pelos sul-africanos, nem ousamos pensar no que subsistirá de Weyulu na memória dos ovambo locais.

Esta incursão escandinava incita-nos a abordar Moçambique através da Dinamarca.

MOÇAMBIQUE

Um lusófono médio pode interrogar-se sobre o sentido do título do livro de Peter Tygesen18. É simplesmente "A Terra da Boa Gente" dos primeiros portugueses, e uma reportagem de iniciação e de sensibilização do leitor dinamarquês a Moçambique, visto por um jornalista que visita e entrevista alguns cooperantes dinamarqueses e personalidades africanas em Maputo, em Moçambique, e sobretudo na província de Tete, em especial nos distritos próximos do Malawi e da Zâmbia. O autor encadeia a trama histórica, a denúncia do colonialismo, as reportagens no mato, os testemunhos sobre a Guerra Colonial e depois civil, a cooperação dirigida pelos organismos de assistência dinamarqueses, os missionários, a corrupção, os meandros da política de ajuda oficial, etc. Texto indispensável para seguir a evolução dos programas agrícolas lançados pela DANIDA na Angónia e em alguns distritos do Noroeste. É o primeiro livro em dinamarquês de várias centenas de páginas sobre Moçambique, a quem a Dinamarca concedeu de 1993 a 2006 uma ajuda (707 milhões de dólares) superior à de Portugal (637 milhões de dólares) durante o mesmo período, segundo o livro que se segue.

Joseph Hanlon19 é o observador estrangeiro provavelmente melhor informado acerca do problema do desenvolvimento em Moçambique. Atrás de si tem trinta anos de estudos sobre o tema, com cinco ou seis livros publicados. De marxista vituperante em 1984 contra o abandono dos princípios revolucionários e contra o pacto de não-beligerância com Pretória, passou para uma visão mais apaziguante dos constrangimentos geopolíticos que motivaram a reorientação da FRELIMO. Permanece ainda muito crítico, mas já não está totalmente cego pelas considerações apriorísticas dos seus anos de juventude. As suas bêtes noires mantêm-se, evidentemente, o Banco Mundial e os seus diktats, mas é senhor de uma documentação económica em inglês e em português imparável e sem rival. Milita actualmente a favor da concessão de uma maior ajuda por parte das autoridades, ONG e bancos aos pequenos produtores, através de crédito e de conselhos. Estamos longe dos grandes complexos agro-alimentares dos anos loucos do colectivismo, mas é convincente quando analisa alguns sucessos (o cajú após o relançamento posterior ao abandono das ordens do Banco Mundial). A sua obsessão é libertar Moçambique da sua dependência em relação à ajuda externa e ao capitalismo desenfreado. O seu texto não tem, portanto, ilusões sobre no que se tornaram as elites da FRELIMO, sobre a corrupção e sobre a atitude suplicante do "mendigo" que agora tem honra. Um capítulo do seu livro, relativamente legível, trata do fim do milagre em Manica onde 42 agricultores individuais e grupos de zimbabweanos brancos se tinham instalado em 2001-2004, encorajados pelas ofertas de créditos generosos. Sozinhos, criaram 4385 postos de trabalho entre o campesinato local. No fim de 2006 o milagre tornara-se miragem. Já só havia 16 agricultores comerciais, as fábricas de tratamento de produtos agrícolas estavam encerradas e o emprego entre a população rural descera para 600 pessoas. Um exemplo simples das falsas esperanças, de uma e outra parte.

Em relação a Manica e aos seus agricultores brancos, recebemos com alguns dias de intervalo as memórias20 de um sul-africano criado na Rodésia, uma cabeça queimada que se alista no Exército rodesiano (de 1967 a 1980) e relata com um talento humorístico algumas das suas incursões no Moçambique da FRELIMO. No seu último capítulo oferece-nos uma visão muito sombria dos agricultores brancos que, envelhecidos e magoados, tentaram refazer a vida na Manica moçambicana na agricultura comercial (2003-2005) alugando os seus terrenos às autoridades. Confirma, do ponto de vista pessoal, as constatações de Hanlon (falta de crédito e problemas resultantes de uma produção pouco rentável num contexto climático e humano pouco propício). Esta sobrevivência dos brancos pobres e estrangeiros, num sistema onde o país vive da caridade internacional, tem um perfume de tragédia que já não o faz sorrir.

Não sabemos se se sorri muito nos gender studies tal como são ministrados nas universidades americanas, mas podemos adivinhar. O interesse do livro de Jennifer Leigh Disney21 reside no facto de se apoiar essencialmente em entrevistas a 146 mulheres, das quais umas sessenta são activistas moçambicanas, em 1999 e 2004. Trata-se de quadros de formação dependentes da FRELIMO (e duas deputadas da RENAMO), ou de ONG ou de universitárias. Há poucas camponesas. Comparando essas situações com a Nicarágua, o autor examina as reivindicações feministas em sociedades fortemente machistas. Passa em revista o papel das mulheres nas fases militares da luta, a sua participação na economia, na vida política e sindical, a evolução do direito, da cultura, dos casais, da democratização, etc. A bibliografia citada é maioritariamente em inglês, com um mínimo de textos em português.

O livro de 1975 de Michèle Manceaux sobre as mulheres de Moçambique, à saída da Guerra Colonial, é ignorado, o que é estranho.

Como temos agora de terminar a viagem na "Terra da Boa Gente", não evitaremos o pitoresco graças a Simon Reeve22. Jovem repórter da televisão britânica, tem uma influência bem superior à de todos os autores que encontrámos no caminho, pois trata-se de formar a opinião pública. Fazendo a volta ao mundo em torno do Capricórnio, não pode deixar de ser rápido ao abordar Moçambique. Tendo, apesar de tudo, preocupações ecológicas e sociais, nota que no Parque Nacional do Limpopo as autoridades expulsam as populações, a quem interditam a caça. Ao visitar Xai-Xai e um campo de desminagem, fascina-nos com as já famosas ratazanas da Gâmbia, capazes de desminar 100 metros quadrados em trinta minutos graças à acuidade do seu olfacto. Estas ratazanas providenciais detectam igualmente os tuberculosos apenas pela sua saliva. Um técnico de laboratório pode testar 20 amostras por dia, mas uma destas ratazanas testa 150 pessoas em vinte minutos. Não é um detalhe folclórico num país destroçado pela doença. Visita Inhambane invadida por turistas. A pesca artesanal na região foi arruinada pelas gigantescas traineiras chinesas, japonesas e espanholas. Os insulares do arquipélago de Bazarutos vivem por isso numa miséria profunda, ao passo que os hotéis de luxo (dormida a mil libras por suite) proliferam, enriquecendo os seus proprietários (cuja origem dos seus investimentos não é muito clara). Vasco da Gama não previra os Pablos, nem os campos de minas, nem a sida. Para ele era a Terra da Boa Gente. Quando a equipa de televisão da BBC 2 chega, estamos em 2007 e já não se vive, de forma alguma, uma situação eufórica. O navegador não previra, tão-pouco, os "operadores de viagens".

TRADUÇÃO DE MARTA AMARAL

 

NOTAS

1 LUGAN, Bernard - Histoire de l'Afrique. Des origines a nos jours. Paris: Ellipses, 2009, 1245 pp., numerosos mapas a preto e branco.        [ Links ]

2 BRANDÃO, José - Cronologia da Guerra Colonial: Angola-Guiné-Moçambique. 1961-1974. Lisboa: Prefácio, 454 pp.

3 COSTA, Aurore - Perles de verre et cauris brisés. Nika l'Africaine. Paris: L'Harmattan, 2008, 515 pp.

4 NELSON, Keith A. - Shadow Tracker: Joanesburgo: 30º South Publishers, 2007, 444 pp.

5 DEVILLE, Patrick - Equatoria. Paris: Seuil, 2009, 332 pp.

6 WANNEBURG, Gail - Africa's Pablos and Political Entrepreneurs. War, the State and Criminal Networks in West and Southern Africa. Joanesburgo: The South African Institute of International Affairs, 2006, XV - 442 pp.

7 RAMPINELLI, Waldir José - As Duas Faces da Moeda. As Contribuições de JK e Gilberto Freyre ao Colonialismo Português. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004, 158 pp.

8 LESOURD, Michel (coord.) - Le Cap-Vert Aujourd'hui. Paris: les Éditions du Jaguar, 2006 (reimpressão de 2008), 279 pp., numerosas fotos a cores.

9 NASCIMENTO, Augusto - Atlas da Lusofonia. São Tomé e Príncipe. Lisboa: Prefácio, 2008, 106 pp., fotos a cores e a preto e branco.

10 BOTHMA, L. J. - Buffalo Battalion. South Africa's 32 Battalion. A Tale of Sacrifice. Bloemfontein: edição do autor (bothmalj@mweb.co.za), 2008, 452 pp., estampas a cores.

11 VAN DER WALT, Nico - To the Bush and Back. A Story about the Last Phase of the South African Border War as Experienced by a Junior Officer of 32-Battalion. Pretória: edição do autor (P.O.Box 11447, Swartkops, Pretoria), 2008, 207 pp., fotos a cores.

12 LORD, Dick - From Fledgling to Eagle. The South African Airforce During the Border War. Joanesburgo: 30º South Publishers, 2008, 528 pp. + 16 pp. com fotos a cores, uma centena de fotos e diagramas a preto e branco.

13 THARCISSE, Matadiwamba Kamba Mutu - Espace Lunda et Identités en Afrique Centrale. Lieux de Mémoire. Paris: L'Harmattan, 2009, 190 pp., fotos a preto e branco.

14 KLÍMA, Jan - D_jiny Angoly. Praga: Nakladatelství Lidové Noviny, 2008, 402 pp., fotos a preto e branco.

15 MESSIANT, Christine - L'Angola postcolonial. Paris: Karthala, 2008, vol. I, Guerre et paix sans démocratisation, 414 pp., uma foto a preto e branco; vol. II, Sociologie politique d'une oléocratie, 431 pp., uma foto a preto e branco

16 ROCHA, Edmundo, SOARES, Francisco, e FERNANDES, Moisés (coord.) - Angola. Viriato da Cruz. O Homem e o Mito. Porto Amboim (Angola) 1928 - Beijing (China) 1973. Lisboa: Prefácio, 2008, 446 pp., fotos a preto e branco.

17 ROSENBLAD, Eberhard [RUDNER, Ione, e RUDNER, Jalmar (eds.)] - Adventure in South-West Africa (1894-1898). Windoek: Namibia Scientific Society, 2007, 184 pp., fotos a preto e branco.

18 TYGESEN, Peter - De gode menneskers land. Danmark i Mozambique. Copenhaga: People's Press, 2008, 510 pp. + 8 pp. com fotos a cores.

19 HANLON, Joseph, e SMART, Teresa - Do Bicycles Equal Development in Mozambique?. Woodbridge (Inglaterra): James Currey/Boydell & Brewer, 2008, XIV-242 pp., fotos a preto e branco.

20 TAYLOR, Stu - Lost in Africa. Joanesburgo: 30º South Publishers, 2007, 200 pp. + 16 pp. com fotos a preto e branco.

21 DISNEY, Jennifer Leigh - Women's Activism and Feminist Agency in Mozambique and Nicaragua. Filadélfia: Temple University Press, 2008, XXI-283 pp.

22 REEVE, Simon - Tropic of Capricorn. Circling the World on a Southern Adventure. Londres: BBC Books/Ebury Publishing, 2008, 376 pp. + 16 pp. com fotos a cores.

 

* Historiador especializado em questões ultramarinas portuguesas (séculos XIX e XX). Autor de uma vasta bibliografia, publicou recentemente As Campanhas Coloniais de Portugal, 1844-1941 (Estampa, 2006) e Timor em Guerra. A Conquista Portuguesa (Estampa, 2007).