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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.23 Lisboa set. 2009

 

Tiananmen 2009

Dora Martins *

 

Beijing em 2009 é uma cidade completamente distinta de há vinte anos atrás. Beijing tornou-se numa cidade moderna com edifícios futuristas como os da Torre da Televisão Nacional e do Teatro Nacional Casca de Ovo, as infra-estruturas dos Jogos Olímpicos como o Cubo de Água e o Ninho de Pássaro, os modernos centros comerciais e os espaços de lazer de Sanlitun Village e dos distritos de arte 798 e Caochangdi, um elevado número de Maseratti e de lojas de todas as marcas internacionais, empresas de capital 100 por cento estrangeiro, uma rede de metro de dez linhas e seis estradas circulares.

Este é o resultado de uma política de reformas e abertura ao exterior de mais de trinta anos. Através desta política, aprovada em 1978 e colocada em prática através de reformas económicas e de medidas de incentivo ao investimento estrangeiro, Deng Xiaoping conseguiu impulsionar o crescimento económico da China. Estas medidas começaram em pequenos balões de ensaio em zonas costeiras e, em consequência do seu sucesso, rapidamente foram colocadas em prática em todo o território chinês, contribuindo para que a China se tornasse a potência económica que é hoje. A entrada da China na Organização Mundial do Comércio em 2001 e a organização dos Jogos Olímpicos no ano passado reconhecem à China esse lugar de destaque a nível internacional.

Esse acelerado crescimento económico resultou, contudo, em inflação e outros problemas económicos. A crescente desigualdade económica entre diferentes classes juntamente com o frustrado desejo de reformas políticas levou às manifestações que culminaram de uma forma sangrenta em Tiananmen em Junho de 1989, há vinte anos. Contudo, aparentemente a memória é curta e já ninguém se lembra desse fatídico acontecimento, nem os pais que viveram nesses tempos e que estão agora absortos em tornar-se "novos-ricos", nem os filhos que ficaram boquiabertos quando os pais lhes contaram o que se passou e que é completamente omitido dos livros escolares, nem os laobaoxing que estão demasiado ocupados em procurar melhores condições de vida, nem os líderes chineses, nem mesmo os líderes estrangeiros.

As únicas excepções são aqueles que presenciaram e participaram nesses acontecimentos e que provavelmente são agora dissidentes no estrangeiro ou em Hong Kong, os seus pais integrados na organização "Mães de Tiananmen" e um punhado de intelectuais e estudantes que assinaram a Carta 08 em Dezembro do ano passado.

A memória é curta e selectiva tal como explicam alguns médicos. Contudo, este foi um acontecimento demasiado importante para se esquecer, principalmente por parte dos líderes chineses que sempre sublinham que a história deve ser considerada um espelho quando se encara o futuro (yi shi wei jian, mianxiang weilai ).

Se compararmos a China antes e depois de Tiananmen, verificam-se diferenças abismais. Os líderes chineses estão agora severamente absortos e focalizados em fomentar o desenvolvimento da China, um país de 1300 milhões de pessoas, com severas desigualdades económicas entre o litoral e o interior, entre o campo e a cidade, com um sistema bancário ainda muito deficitário, com problemas ambientais gravíssimos, com problemas de corrupção e contrafacção por resolver, entre muitos outros. Beijing é um testemunho destes contrastes com condomínios modernos como Parkview mesmo ao lado de bairros pobres e tradicionais como Tuanjiehu, um número crescente de waidiren que todos os dias chegam às estações de comboio de Beijing sem hukou e sem emprego e vagabundos que são cada vez mais frequentes nos seus metros e um céu que nem sempre é azul. Daí que a prioridade seja o desenvolvimento económico, ou, como referem os actuais líderes chineses Hu Jintao e Wen Jiabao, a "sociedade harmoniosa" (hexie shehui ).

E tudo o que se colocar no caminho para alcançar esse objectivo será imediatamente eliminado.

O ano de 2008 foi um ano paradigmático. Desde a escolha de Beijing como a cidade anfitriã dos Jogos Olímpicos, todas as atenções e esforços se centraram em fazer destas umas Olimpíadas inesquecíveis.

A face da China estava em causa. Este era um momento de ouro para demonstrar ao mundo que a China era uma grande potência, um país com assento entre os grandes do mundo. Os Jogos Olímpicos eram também uma questão de orgulho nacional. Os chineses a viver em território chinês ou no estrangeiro estavam muito orgulhosos do seu país. No entanto, no melhor pano cai a mancha. Mesmo antes dos Jogos Olímpicos, alguns acontecimentos negativos perturbaram a estabilidade, incluindo catástrofes naturais mas também políticas.

Em Janeiro, um enorme nevão provocou uma grande carência de alimentos numa parte considerável da China, o que fez encarecer os bens básicos. Em Maio, o terramoto em Sichuan causou um elevado número de vítimas. As autoridades chinesas souberam aproveitar estes acontecimentos para desviar as atenções das vozes tibetanas que já se faziam ouvir aquando da passagem da tocha olímpica no mês anterior. Os esforços nacionais centraram-se em prestar apoio às vítimas e até às organizações internacionais lhes foi permitido prestar auxílio às vítimas.

A história da China é geralmente cíclica. Este ano, voltamos a assistir a datas importantes que não se pretendem manchar com acontecimentos desagradáveis. No ano em que se comemora o 60.º aniversário da RPC e dez anos do retorno da administração de Macau à China, as autoridades querem que tudo se passe da forma mais tranquila possível. Por isso, o controlo já se faz sentir. Tiananmen permaneceu ausente de todos os discursos e publicações chinesas. Os vistos começam a ser difíceis de obter, sites como o Youtube e o Facebook estão inacessíveis, a informação é detalhadamente perscrutada.

Há dez anos atrás, em Outubro, na Praça de Tiananmen, não havia notícias do massacre de 1989. A Praça da Paz Celestial era um mar de bandeirinhas verdes com flores de lótus e de bandeirinhas vermelhas de estrela amarela. Este ano, em Junho, reinava em Tiananmen uma paz aparente mas nervosa. Muitos mirones e uma enormíssima força policial zelava pela ordem em Tiananmen.

Contudo, alguns movimentos são impossíveis de prever e muito difíceis de controlar. Durante estas três décadas de reformas económicas deflagraram diferentes focos de contestação. Existe uma notória diferença entre a índole das manifestações ocorridas antes e depois de Tiananmen.

Com Tiananmen, e sobretudo a desintegração da União Soviética, os líderes chineses tomaram consciência de que as reformas políticas podem ser perigosas.

Mais recentemente, isso foi evidente nas chamadas "revoluções coloridas" que ocorreram nas antigas repúblicas da União Soviética. Desde 1989, os líderes políticos passaram a controlar severamente todas as organizações de carácter político.

A partir dessa data, todas as organizações civis tiveram de voltar a registar-se para conseguir exercer a sua actividade. O conceito de sociedade civil que estava a tomar forma ao longo da década de 1980, de repente desintegrou-se. Actualmente nenhuma organização com fins explicitamente políticos ou ligada ao Tibete é bem-vinda. Somente as organizações que procuram dar apoio às populações pobres ou com fins ambientais são incentivadas.

Essas são também as áreas onde se destacam as organizações não governamentais internacionais a actuar na China. Por outro lado, a própria classe intelectual enfraqueceu ou foi integrada no sistema, desempenhando o papel de "Conselheiros do Príncipe"1 como alguns séculos antes.

Nos últimos anos, o interesse nacional chinês tornou-se quase exclusivamente económico. Tanto a nível interno como a nível internacional, a economia é o mote. Os laobaixing estão mais preocupados em sobreviver ou em enriquecer rapidamente do que em envolver-se em actividades políticas potencialmente perigosas. Na China actual abundam revoltas constantes, a maior parte das quais resultantes das desigualdades económicas e de problemas resultantes do crescimento demasiado acelerado da economia. Empresas estatais que fecham para abrir empresas privadas, expropriação ilegal de terras para dar lugar a luxuosos empreendimentos, minas irregularmente construídas e para obter o máximo lucro de forma rápida, problemas ambientais, todos estes factos estão na base da maior parte das manifestações que actualmente ocorrem por toda a China. Por outro lado, o nacionalismo é ainda um grave problema. Em Abril do ano passado surgiram distúrbios no Tibete em nome da independência política. A agitação foi controlada violentamente. Em Julho deste ano surgiram distúrbios em Xinjiang em nome do reconhecimento dos uigures. A agitação foi novamente controlada de uma forma violenta e os órgãos de comunicação social fazem referências muito reduzidas à agitação. Preferem passar notícias sobre como tudo está a voltar ao normal ou da morte de Michael Jackson. No número 26 da revista Sanlian Shenghuo Zhoukan saiu um caderno especial sobre Xinjiang, 45 páginas sobre a vida feliz da etnia uigur em Xinjiang e somente 11 páginas dedicadas aos acontecimento de 7.5 e dos quatro dias subsequentes. A China das 56 etnias ainda não está completamente pacificada. Os confrontos com as autoridades não envolvem somente indivíduos de etnia chinesa.

Recentemente, surgiram em Guangdong distúrbios envolvendo membros da comunidade africana, devido ao controlo severo sobre a legalidade da sua presença em território chinês. Espera-se que à medida que nos aproximamos do dia 1 de Outubro, quando se comemoram sessenta anos sobre a implantação da Nova China, a segurança seja cada vez mais severamente imposta.

A segurança é a base do desenvolvimento económico. Em 1985, o Pequeno Timoneiro sublinhava que a "paz e o desenvolvimento" (heping yu fazhan )2 eram os dois tópicos principais do mundo de então. Aparentemente esses permanecem os tópicos principais da política interna e externa da China. No seu relacionamento com os outros países do mundo, a economia é ainda o factor principal. Trata-se da diplomacia económica3.

E é também em nome da economia que a China tem conseguido obter o favor dos outros países e evitado que a incomodem com assuntos politicamente sensíveis. Tal como refere Wu Guoguang, "os países europeus e os Estados Unidos da América têm-se inclinado crescentemente para as exigências políticas de Beijing no contexto de crescentes laços económicos, mesmo quando estas exigências não são consistentes com os princípios da liberdade, democracia e direitos humanos"4. Segundo este autor, trata-se de uma situação atípica uma vez que, de um ponto de vista histórico, é a primeira vez que a China usa o poder económico com fins políticos e sobretudo porque há vinte anos atrás eram os próprios países ocidentais a usar sanções económicas para pressionar politicamente a China após Tiananmen.

A China é actualmente um país fundamentalmente económico e evitará a todo o custo qualquer manifestação como a de Tiananmen.

 

NOTAS

1 BEJA, Jean-Philippe - "The changing aspects of civil society in China". In Social Research. Vol. 73, Primavera de 2006, pp. 53-74.

2 XIAOPING, Deng - "Peace and development are the two outstanding issues in the world today". In Selected Works of Deng Xiaoping, Vol. III (1982-1992) www.peopledaily.com.cn

3 MARTINS, Dora - "A nova diplomacia económica da China". In Revista de Estudos Chineses. Lisboa. Vol. 1, N.º 1, 1.º semestre de 2007, pp. 73-91.        [ Links ]

4 WU, Guoguang - "A shadow over Western democracies, China's political use of economic power". In China Perspectives. N.º 2, 2009, pp. 80-89.

 

* Directora do Centro de Política e Relações Internacionais do Instituto Português de Sinologia, vice-presidente da Comissão Asiática da Sociedade de Geografia de Lisboa e membro da Associação Europeia de Estudos Chineses. Autora de diversos artigos sobre a China contemporânea e co-editora do livro From Early Tang Court Debates to China’s Peaceful Rise (Amsterdam University Press). Oradora convidada em diversos congressos internacionais.