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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.23 Lisboa set. 2009

 

A Primavera dos Povos de 1989

A transformação dos princípios fundamentais da política externa polaca

Roman Kuz´niar *

 

Para analisar o impacto da situação internacional da segunda metade dos anos 1980 nas transformações ocorridas na Polónia devemos considerar três acontecimentos: as políticas do Presidente americano Ronald Reagan; o colapso interno do sistema comunista juntamente com as tentativas do líder soviético Mikhail Gorbachev para o travar; assim como a Conferência de Segurança e Cooperação Europeia. Ao mesmo tempo, a ascensão do movimento Solidariedade representou um prenúncio e um sintoma da crise mundial do comunismo. Deste modo, a batalha da Polónia para recuperar a plena soberania alcançou resultados que seriam impensáveis apenas três ou quatro anos antes, nas vésperas da Primavera dos Povos da Europa Central de 1989.

Palavras-chave: Polónia, política externa, movimento Solidariedade, comunismo

 

The 1989 Spring of Nations: transforming the basics of Polish foreign policy

To examine the international situation of the second half of the eighties as a factor impacting changes in Poland we must consider three developments: US President Ronald Reagan's policies, the internal breakdown of the communist system together with Soviet leader Mikhail Gorbachev's attempts to halt this breakdown through reforms, and the Conference on Security and Cooperation in Europe. Both an omen and a symptom of world communism's crisis was the rise of Solidarity. Poland's battle to regain full sovereignty had yielded a result that would have been unthinkable just three to four years earlier, on the eve of the Central European Spring of Nations of 1989.

Keywords: Poland, foreign policy, Solidarity movement, communism

 

Os acontecimentos de 1989, que viriam a ter profundas repercussões, não resultaram apenas da acção isolada de Gorbachev. Foi necessário um fenómeno a que eu chamaria «tornar possível o impossível». O tipo de fenómeno que os profissionais da Realpolitik – incluindo os da Europa de Leste da altura – raramente conseguem antever.1

Tadeusz Mazowiecki

Para demonstrar de que modo as alterações internacionais estabeleceram as condições que permitiram uma transformação interna na Polónia e tornaram possíveis os primeiros passos da nova Polónia na cena política internacional, este artigo começa com uma breve revisão das alterações no sistema internacional.

Para analisar a situação internacional da segunda metade da década de 1980 como um factor de mudança na Polónia há que ter em conta três aspectos: a linha política do Presidente norte-americano Ronald Reagan; a derrocada interna do sistema comunista, em conjunto com os esforços do líder soviético, Mikhail Gorbachev, para travar a queda do regime através da introdução de reformas; e a Conferência de Segurança e Cooperação Europeia (CSCE).

Tendo sido o primeiro presidente dos Estados Unidos a defender a derrota do comunismo em vez da coexistência entre os dois sistemas, Reagan optou precisamente por uma estratégia política que visava provocar a queda do bloco comunista. E, como se viria a verificar, conseguiu transformar os seus objectivos em realidade. Tal como nos mostram os relatórios da CIA, no início dos anos 1980 o sistema comunista entrou em crise estrutural e em ruptura sistemática. A escolha da estratégia adequada poderia contribuir para acelerar o seu colapso. De facto, foi essa a estratégia seguida pelos Estados Unidos, e as suas consequências surgiram com uma rapidez inesperada2. Com efeito, no final dos anos 1980 os Estados Unidos já se preocupavam em abrandar o ritmo da queda do bloco comunista (incluindo a manutenção da estabilidade da URSS) de modo a evitar que as convulsões da morte do regime afectassem a segurança do bloco ocidental. A estratégia ofensiva dos Estados Unidos consistia, por um lado, numa reacção à expansão do Bloco de Leste que se verificara nos anos 1970 - a qual, na verdade, foi o seu canto do cisne - e, por outro, numa tentativa de tirar partido das fragilidades que o sistema começava a revelar no início da década de 1980.

Ao mesmo tempo, na Polónia, a ascensão do movimento Solidariedade representava um prenúncio e um sintoma da crise mundial do comunismo, tal como a resposta das autoridades comunistas polacas, que entenderem que a única forma de travar a revolta (nacional, diria eu) dos operários era o recurso à força, materializado na declaração da lei marcial em 1981.

Quando os comunistas fazem uso da força contra os operários perdem toda a legitimidade. Mas não se tratou de um fenómeno exclusivamente polaco. Influenciados pelos acontecimentos na Polónia e pelas crescentes falhas do sistema comunista, outros começaram a procurar saídas para a crise. Uma das respostas foi o conjunto de reformas soviéticas iniciadas por Gorbachev (a perestroika e a glasnost), que outros estados comunistas interpretaram como um sinal. Mas - à semelhança do que haviam previsto críticos como Zbigniew Brzezinski e Samuel P. Huntington - acabou por se chegar à conclusão de que, na sua essência, o sistema comunista era irreformável. Na verdade, as reformas que visavam romper com a estagnação não faziam mais do que precipitar o seu fim. E, com efeito, a queda do sistema comunista coincidiu com o crescimento da autonomia, que daria luga à independência, dos estados que haviam pertencido à esfera de influência soviética.

Devemos ainda ter em consideração um outro factor. O final da Guerra Fria não foi apenas moldado pela política estratégica de Reagan em conjunto com a crise estrutural do comunismo. Igualmente essencial foi o apoio demonstrado pelo Ocidente em relação à liberalização do sistema comunista. Até certo ponto, os parceiros do Ocidente neste processo eram um conjunto de líderes comunistas que desejavam uma reforma do sistema. Mas mais importante do que isso foi a oposição democrática que começou a emergir em meados dos anos 1970 no seio de alguns estados comunistas (os primeiros grupos da oposição anticomunista não tinham qualquer apoio por parte do Ocidente).

O processo da CSCE veio criar as condições que possibilitaram tudo isso. Da conferência resultaram os Acordos de Helsínquia, assinados pelos líderes ocidentais e do Leste da Europa. Os acordos obrigavam os seus signatários a respeitar os direitos humanos, o que permitia a ligação dessa vertente com outras esferas das relações entre estados, incluindo as questões económicas e de segurança. Os princípios da Acta Final abriam a possibilidade de os estados ocidentais usarem o comércio e as políticas de empréstimos para exercer pressão sobre os governos comunistas. Esses princípios também acabaram por lançar as bases da legitimação das actividades da oposição democrática. Questões de direitos humanos, liberdades fundamentais e a autodeterminação nacional eram o tópico primordial de debate e de negociação durante a CSCE. No decorrer das negociações os estados comunistas aperceberam-se de que se não fizessem concessões naquelas áreas ver-se-iam isolados e privados do apoio ocidental para as suas reformas económicas3.

Como hoje sabemos, o resultado cumulativo destes processos foi a derrocada espantosamente rápida, embora relativamente pacífica, do comunismo, primeiro nos países da Europa Central (1989) e pouco depois na União Soviética (1991). Esses acontecimentos na Europa Central receberam a designação de "Primavera dos Povos", embora, erradamente, alguns autores polacos lhe chamem o "Outono dos Povos". Trata-se aqui de uma "primavera" metafórica (à semelhança do que aconteceu com a original Primavera dos Povos, em 1848, que na verdade teve início em Fevereiro), uma Primavera que consistia na independência renovada das nações daquela região4. De facto, a Primavera de 1989 começou em Abril, com o acordo da Mesa-Redonda polaca, um enorme triunfo para a oposição democrática, tendo dado origem a eleições parlamentares parcialmente livres, cujos resultados foram um golpe esmagador para o Partido Comunista no Governo.

A aceitação destes resultados por parte de Moscovo, inclusive com a formação de um governo sob a liderança do não comunista Tadeusz Mazowiecki, representou um sinal para o resto da região. Na sequência disto os eventos deram-se a uma velocidade assombrosa. Em Novembro, a incapacidade de deter a vaga de refugiados oriundos da Alemanha de Leste, que entravam na Alemanha Ocidental através da Hungria e da Polónia, levaria à queda do Muro de Berlim. Ao mesmo tempo a Checoslováquia vivia a sua Revolução de Veludo, enquanto a Hungria passava por mudanças semelhantes. O derradeiro evento deste processo - que ganhou notoriedade devido ao derramamento de sangue - foi o derrube da ditadura de Ceausescu na Roménia (com o ditador e a sua mulher executados à margem da lei, tal como eles próprios tinham governado) no final de Dezembro de 1989. E desta forma a chamada "comunidade de estados socialistas" praticamente deixou de existir5.

No entanto, enquanto a União Soviética se mantivesse de pé, as mudanças na Europa Central não estavam garantidas; a independência destes países era ameaçada pela existência da hegemonia do antigo bloco. Importa recordar que o domínio de Moscovo sobre estas nações a partir de 1945 tinha motivos ideológicos (os imperativos do comunismo), mas também geopolíticos, resultantes da Realpolitik imperial da Rússia soviética.

Ora, os sinais vindos de Moscovo ao longo dos três anos após 1989 eram muito inconsistentes e, na maioria dos casos, acentuavam a incerteza relativamente à verdadeira posição da União Soviética perante a Primavera dos Povos que se ia desenrolando do lado de fora das suas fronteiras. O putsch falhado em Agosto de 1991, que pretendia travar a desintegração da União Soviética, demonstrava que havia forças na Rússia que não aceitavam o colapso do comunismo e a desintegração do bloco. Mas as forças centrípetas mostraram-se mais fortes. A 12 de Dezembro de 1991, os líderes da Rússia, da Ucrânia e da Bielorrússia confirmaram a desagregação da URSS. Isto não significava que Moscovo passava a renunciar às suas ambições hegemónicas na região, mas deu à Polónia a margem de manobra que lhe permitiria proceder a mudanças internas e pôr em marcha uma revisão integral da sua política externa. Um elemento importante desta situação que teve um desenrolar acelerado (em especial desde o ponto de vista polaco, mas que também dizia respeito aos soviéticos) foi a reunificação da Alemanha. Os alemães queriam assegurar o êxito desta dificílima empresa, e por isso procuraram evitar quaisquer acções que pudessem incomodar Moscovo, para que não lhes levantassem obstáculos. Por si só a reunificação da Alemanha vinha criar uma nova realidade geopolítica na Europa - o que representava um importante desafio para muitos países, incluindo a Polónia. A reunificação alemã tornou premente o estabelecimento de novas estruturas de tratados, e, no caso da Polónia, trouxe a lume a necessidade da confirmação da fronteira comum aos dois estados. Alguns países ocidentais assumiram posturas muito cautelosas a respeito destas mudanças - especialmente a França, que deixou claro que os seus interesses se centravam na manutenção da ordem internacional preexistente, incluindo a ordem no seio da Europa, e não demonstrou qualquer entusiasmo acerca das consequências geopolíticas da Primavera dos Povos de 1989. Tal como o historiador polaco Andrzej Paczkowski comentou,

"Há momentos na história em que o Espírito começa a soprar como quer… Algo parecido aconteceu na Europa em 1989. O ímpeto polaco mostrou-se decisivo contra as fraquezas militares do império e o crescente abandono da ideologia marxista-leninista… Teve, então, início um longo período - que ainda perdura - de Desconhecido, de conflitos sociais, que chegaram a um impasse, de batalhas ou de disputas étnicas, que caíram, podres, da arca congeladora comunista, onde tinham repousado durante décadas num estado de hibernação. O fim de uma história tornou-se o início de uma nova história."6

O INÍCIO DAS TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS NA POLÓNIA

A era final da República Popular da Polónia foi caracterizada pela estagnação económica, que resultou numa ruptura do Estado, na apatia social, e na insatisfação assente num sentimento de falta de esperança. O sistema comunista tinha perdido os seus últimos vestígios de legitimidade em 1980-1981, durante a revolução do Solidariedade e com a lei marcial que o esmagaria. O elemento de novidade foi o facto de os líderes comunistas polacos terem a permissão por parte de Moscovo para encontrarem o seu próprio caminho para saírem do impasse estrutural em que se encontravam. A existência de uma oposição democrática forte na Polónia, que tinha sobrevivido às perseguições do início dos anos 1980 e que conseguiria reconstruir a sua organização no final da década, proporcionou aos governantes uma solução potencial para a crise: o diálogo com a oposição. A estratégia dos governantes era cooptar parte da oposição, recorrendo a concessões políticas cuidadosamente escolhidas, de modo a partilhar com ela a responsabilidade da governação do país. Dessa forma, aqueles recuperariam para si alguma legitimidade política. Contudo, a oposição não estava interessada em participar na governação do país, mas sim na reforma do sistema (na verdade, naquela altura o derrube do sistema ainda parecia uma impossibilidade).

Os primeiros contactos preliminares com os líderes do Solidariedade tiveram lugar no Verão de 1988. Nas primeiras conversações a Igreja Católica desempenhou um papel importante: estas conversações não teriam sido possíveis sem o envolvimento da Igreja a servir de mediador e garante da integridade dos participantes. O primeiro reflexo público das negociações entre as autoridades e a oposição representada pelo Solidariedade foi uma aparição televisiva de Lech Walesa, presidente do então ilegal sindicato Solidariedade, juntamente com o presidente do sindicato oficialmente sancionado, em Dezembro de 1988. O seu debate perante a audiência polaca resultou numa vitória retumbante para o vencedor do Prémio Nobel, Lech Walesa. Mas também serviu para legitimar a oposição aos olhos da sociedade. Por isso as autoridades começaram a dar novos passos no sentido de permitir a participação da oposição na vida pública. As condições dessa participação seriam determinadas na Mesa-Redonda, uma invenção polaca que levou a uma revolução sem derramamento de sangue e à transição política.

Depois de resolverem algumas dificuldades relativamente ao modelo da Mesa-Redonda e à composição da delegação da oposição, as conversações começaram no início de Fevereiro. Dois meses mais tarde terminaram com um acordo que delineava um cenário de novas mudanças na Polónia. Isto incluía eleições parlamentares parcialmente livres, a legalização do sindicato Solidariedade e um aumento significativo da liberdade da comunicação social.

Usando as palavras de um imperador romano, poderíamos dizer que a 4 de Junho de 1989, com as eleições parlamentares, "os dados estavam lançados", e o resultado foi um espectacular êxito para o campo do Solidariedade7. Mas foi só a 12 de Setembro que "se atravessou o Rubicão", quando Tadeusz Mazowiecki, proeminente intelectual católico e oposicionista democrata, se tornou primeiro-ministro do primeiro governo não comunista da Polónia desde a II Guerra Mundial8.

O novo vice-primeiro-ministro para os Assuntos Económicos foi o economista relativamente desconhecido Leszek Balcerowicz, um professor do Instituto de Economia de Varsóvia, que se tornou o arquitecto de uma transformação alargada do sistema económico. A Polónia iniciou então um período de profundas mudanças de sistema em todos os domínios, mudanças que foram acompanhadas por crises, instabilidade política e agitação social. A princípio, a "terapia de choque" de Balcerowicz, que visava passar de uma economia estatal planeada e centralizada para uma economia de mercado aberto, em simultâneo com uma reestruturação acelerada da economia, acentuou ainda mais o declínio económico. Os cofres do Estado, já muito debilitados, e a dívida externa privaram o Governo dos recursos necessários para criar uma rede de segurança social durante a reforma económica, incluindo a possibilidade de travar a rápida ascensão dos níveis de desemprego. As dificuldades que acompanharam a mudança de sistema fizeram subir a temperatura da competição política durante os primeiros anos da III República. Foi o preço inevitável das mudanças que restituiriam a Polónia à Europa.

Contudo, aquele período de quatro anos extremamente difícil e politicamente instável - o nascimento de uma nova república - foi suficientemente longo para transformar completamente a política externa polaca. E isto deveu-se ao facto de o arquitecto do novo modelo de política externa, o professor Krzysztof Skubiszewski, ter conseguido manter a sua independência, mesmo no meio da dura batalha política interna. Um factor adjuvante foi o consenso informal no seio da classe política polaca acerca dos princípios fundamentais da política externa: a orientação para a Europa e as relações com o Leste. Com efeito, embora a nível doméstico a classe política dividida fosse incapaz de dar um verdadeiro apoio àquele modelo de política externa, o facto é que também não lhe levantou dificuldades. A fragilidade económica da Polónia foi um grave problema durante este período, o que implicou limitações materiais no modo de pôr em prática a nova política externa.

POLÍTICA EXTERNA: "O REGRESSO À EUROPA"

"O interesse nacional da Polónia requer que nos próximos anos confirmemos a nossa soberania recuperada, que asseguremos a segurança do nosso Estado, que apoiemos o desenvolvimento económico e civilizacional da nossa nação e da nossa sociedade, e que reforcemos a nossa posição na cena internacional, especialmente na Europa", disse o ministro Skubiszewski no decurso de um dos debates parlamentares acerca do tema do interesse nacional da República Polaca9, que teve lugar no quarto ano de definição e materialização da soberania polaca. Para que isto fosse possível era necessário estabelecer os novos elementos da política externa polaca: primeiro, os seus princípios e objectivos, e depois as suas direcções, as suas formulações e o seu novo conteúdo.

O assunto mais importante era a recuperação da soberania. Este tema já estava bem presente no discurso histórico de Mazowiecki no Sejm, a 12 de Setembro de 1989: "Desejamos viver com dignidade num Estado soberano, democrático, governado por leis." O primeiro-ministro da nova Polónia acrescentou que "as relações internacionais baseadas na soberania e na parceria são mais estáveis do que a ordem assente no domínio e na força", e que "as relações com a União Soviética devem ser estruturadas com base no respeito pela soberania do nosso Estado, sendo nós completamente livres para formarmos a nossa própria política interna". Skubiszewski apresentou esta ideia de forma ainda mais clara na primeira aparição internacional no desempenho das suas novas funções, num discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas a 25 de Setembro de 1989. Referindo-se às implicações militares da localização geoestratégica da Polónia (e de toda a região), Skubiszewski declarou que "é possível lidar com as consequências deste facto objectivo", e basear a política externa polaca "nos fundamentos da soberania externa e da independência doméstica"10. Isto queria dizer que o Governo devia continuar o que a sociedade polaca já tinha começado: a transformação geopolítica da Europa de Leste. Isto representava especificamente a rejeição da divisão da Europa em esferas de influência. "Zonas de segurança não podem significar o mesmo que esferas de influência", realçou o ministro polaco perante a Assembleia Geral em Nova Iorque.

Referindo-se ao pacto Ribbentrop-Molotov, fez um apelo a que se pusesse fim à influência que "determinados acontecimentos passados exerceram sobre uma parte essencial das nossas relações internacionais contemporâneas"11.

O ano de 1989 foi o início das grandes mudanças, de que a Polónia foi simultaneamente autora e beneficiária. Mas essas mudanças estavam longe de estar concluídas. O país teria de continuar a desempenhar estes papéis por vários anos, para que essas mudanças fossem irreversíveis. A Polónia declarou a sua vontade de trabalhar para uma certa "visão de paz e de liberdade numa região que na época contemporânea tem sido demasiadas vezes uma arena de conflitos, de divisões e de dominação"12.

A transformação dos princípios da política externa polaca foi mais notória na sua reorientação geopolítica fundamental. A recuperação da soberania possibilitou o regresso da Polónia ao seu lugar na Europa. Depois de 1945 o território polaco continuava a fazer parte da Europa, e os seus cidadãos permaneciam europeus, mas o sistema comunista de que ela fazia parte opunha-se aos valores e princípios da Europa. Os polacos não puderam participar na criação de um quadro institucional para a Europa unida, e mantiveram-se fora da comunidade criada após a II Guerra Mundial pelas nações da metade ocidental do continente. Era este o sentido do slogan "regressar à Europa", que foi posto em causa por todos aqueles que não entendiam o seu significado profundo. As mudanças de 1989, e as que se seguiriam, tanto na política interna como na externa, eram a manifestação desse desejo de regresso à Europa. A orientação pró-Europa tornou-se um assunto de base na política externa após a recuperação da soberania. Claro está, a sua concretização levaria anos a ganhar forma, mas desde o começo os líderes polacos deixaram bem claro que o seu objectivo era devolver a Polónia à Europa e ao Ocidente, bem como fazer dela um país europeu (ocidental) no pleno sentido da expressão. A direcção ocidental (europeia) ocupou um lugar de destaque nos discursos oficiais do primeiro-ministro Mazowiecki e dos seus sucessores, bem como do ministro dos Negócios Estrangeiros e de outros políticos de destaque do lado do Solidariedade. Num plano mais formal, isto representava a reconstrução e o reforço das relações bilaterais com os principais estados europeus, assim como a criação de relacionamentos com as instituições multilaterais que emergiram após a II Guerra Mundial com o objectivo de consolidar o hemisfério ocidental. É certo que nos primeiros meses de Governo de Mazowiecki os discursos oficiais ainda incluíam garantias de que a Polónia estava pronta a respeitar as obrigações decorrentes das suas alianças e a cooperar com os países do Comecon (mas não a participar no conselho propriamente dito). Contudo - como se veria mais tarde -, essas garantias eram apenas uma aplicação prática do ditado "o seguro morreu de velho", com o objectivo de evitar uma reacção nervosa ou uma oposição obstinada por parte de Moscovo.

Pelos mesmos motivos, os objectivos do "direccionamento para o Ocidente" só foram revelados de forma gradual à medida que a situação na Europa foi evoluindo (evolução em que a Polónia participou activamente). Este processo de mudança de sinais na política externa polaca é visível, por exemplo, nos sucessivos discursos parlamentares de Skubiszewski, sobretudo no período de 1990-1992. Em vez de falar de ânimo leve acerca da relação da Polónia com os seus vizinhos do Bloco de Leste, o ministro dos Negócios Estrangeiros salientava que "o regresso da Polónia à Europa" e ao mundo ocidental era uma prioridade. Deixou bem claro que estava convencido de que só uma sólida implantação da Polónia na comunidade do Ocidente possibilitaria a adopção de políticas eficazes em relação aos seus vizinhos de Leste13. O direccionamento para Ocidente tinha também um profundo significado no âmbito da segurança. À medida que abandonava o Bloco de Leste, a Polónia não se podia permitir a possibilidade de vir a encontrar-se no meio de uma Europa Central instável e incerta, privada de laços institucionais com o Ocidente.

"Nunca equacionámos a neutralidade. Já o deixámos bem claro no ano passado quando começámos a desenvolver laços de forma sistemática com a Aliança do Atlântico Norte. Isto porque estávamos cientes da real desigualdade de segurança na Europa, que não está a nosso favor. Opusemo-nos de forma consistente à transformação da região onde a Polónia está situada numa região-tampão, ou numa zona cinzenta (do ponto de vista da segurança)",

escreveu Skubiszewski no início da década de 199014. Mas antes que o Ocidente pudesse estender o seu guarda-chuva político até à Polónia e a outros países da Europa Central, seria necessário "fortalecer" aquela região através do desenvolvimento de uma cooperação íntima, a nível bilateral e multilateral, primeiramente no domínio da segurança. Exemplo disso foi a criação do Grupo de Visegrad (analisado mais abaixo em pormenor).

Os criadores dos fundamentos da nova política externa polaca tinham de respeitar um elemento importante da legitimação do novo regime: o ethos do Solidariedade, que incluía as ideias que tinham sido defendidas na Primavera dos Povos de 1989. Tanto Mazowiecki como Skubiszewski se referiam com frequência a esses valores e princípios na nova política externa. Durante a sua primeira aparição internacional nas Nações Unidas em 1989, o ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou: "Esforçar-nos-emos por eliminar completamente a ideologia das relações internacionais, o que não quer dizer que rejeitemos uma moralidade internacional. A ideologia e a moralidade são duas coisas diferentes. Para nós, a moralidade e o respeito pelo indivíduo constituem os valores mais importantes." Nesse mesmo discurso salientou a necessidade de se respeitarem princípios fundamentais de direito internacional e anunciou a intenção de a Polónia assinar em breve acordos significativos de direitos humanos. Noutra ocasião fez notar a presença de certos valores intangíveis na definição do interesse nacional da Polónia: "São a honra e o respeito. Respeito por nós mesmos e pelos outros. […] Isto não exclui a possibilidade de se estabelecerem bons compromissos, que são a essência da política." E continuava: "No nosso esforço de nos transformarmos num grande país, o nosso Estado e a nação devem respeitar princípios de moralidade pública. Não devemos temer a moralidade, a moralidade que vem das nossas raízes cristãs. Não podemos separar o nosso conceito de raison d'état da moralidade e do respeito pelos direitos do indivíduo."15 Realçando os valores nacionais como imponderáveis na política polaca, Skubiszewski apontou a necessidade de "distingui-los do nacionalismo. Por outras palavras, os valores, os conceitos e as ideias que pretendemos usar têm de ser mais matizadas e mais definidas". Rejeitou decididamente a pompa conservadora nacional, que é habitualmente "cómica" e que "muitos dos oradores de rua entre nós não entendem"16. Seria um erro, contudo, considerar que a diplomacia polaca desse período era excessivamente idealista. Muito pelo contrário. Assentava firmemente em bases sólidas, e esforçou-se de forma persistente para garantir não só a segurança mas também o apoio para as suas transformações económicas e sociais do país ao longo do tempo.

O próprio Skubiszewski frisava esse aspecto - para ele, a força fundamental do Estado era sempre a economia: "Um Estado economicamente fraco vê limitadas as suas possibilidades de agir na arena internacional". As hipóteses da Polónia residem, acima de tudo, na "eficácia económica e organizacional", e o dever da política externa era "criar condições para que fosse possível o apoio externo para a reconstrução e para a modernização civilizacional do país"17.

A transformação dos princípios fundamentais da política externa teve lugar em circunstâncias externas e internas pouco favoráveis, embora só pudesse ter ocorrido, claro está, devido ao facto de o contexto internacional do país ter mudado. A transformação sistémica interna foi acompanhada da inevitável turbulência política. Anos mais tarde, Mazowiecki recordava que no final do seu primeiro encontro com Gorbachev, em Moscovo, em Novembro de 1989, o Presidente russo lhe tinha dito: "Talvez isto seja uma surpresa para si, mas espero que sejam bem-sucedidos." No entanto, este comentário não nos dá uma imagem real da situação. Gorbachev não estava só. No âmbito do tema das mudanças na Polónia o Presidente russo estava "sob várias pressões" (tal como relatado por Skubiszewski) da parte de todos aqueles que desejavam manter a posição hegemónica de Moscovo. Durante os seus primeiros meses o Governo de Mazowiecki operava ciente do seu entorno comunista mas também estava a par de "projectos intervencionistas vindos até da parte de Bucareste". Por isso, o Governo concentrou-se em ir "gradualmente criando factos e não em palavras radicais mas ocas"18. Quanto ao contexto doméstico da política externa neste período de transição, dizia-se já que a volatilidade da cena política, a fragilidade das novas instituições democráticas, e o desastre económico herdado da República Popular da Polónia nunca poderiam constituir uma fundação sólida para a diplomacia. Embora o ministro Skubiszewski tivesse conseguido alcançar uma posição fortalecida, graças à qual nunca foi alvo de grandes constrangimentos por parte dos primeiros-ministros, ainda haveria lugar para tensões e fricções: "Os governos de Olszewski foram difíceis", comentou Skubiszewski depois de deixar o cargo. "Isto deveu-se ao facto de ele ter permitido que os seus colaboradores, incluindo alguns ministros, tomassem atitudes perigosas e que interferissem no domínio da política externa. Para além disso, […] houve atrasos e impasses sucessivos. Claro que no nosso ministério tivemos de saber lidar com isso."19 E aqui temos de salientar que nos primeiros anos do Governo de Skubiszewski houve inúmeras alterações de titulares da pasta dos Negócios Estrangeiros - uma rotação superior à de qualquer outro ministério depois de 1989. O próprio ministro explica:

"Quando a natureza do Estado mudou, quando deixámos de ser dependentes dos Soviéticos, as mudanças de pessoal no ministério durante o meu mandato eram necessárias. Para ser mais específico, as pessoas que tinham sido fiéis ao bloco soviético, que tinham desempenhado as funções burocráticas de um Estado-satélite, e que além disso não eram qualificadas, não tinham condições para servir a diplomacia de um Estado independente."20

Por fim, é importante que na Polónia tenham havido, como em qualquer Estado democrático, conflitos em torno da política externa, sobre as suas prioridades e sobre as escolhas que foram feitas. As diferentes orientações e atitudes digladiaram-se entre si.

Olhando para trás já é difícil recordar a intensidade desses conflitos ou o calor dos acesos debates. Hoje em dia muitas dessas discussões podem parecer anacrónicas ou até exóticas. Mas na altura não havia muitos pontos de referência válidos. Ia-se buscar a maioria dos modelos aos exemplos da II República, decididamente datada; muitas vezes os críticos não tinham a competência ou a vontade para tentarem pacientemente perceber quais seriam os interesses da Polónia nos finais do século XX. Seria difícil procurar destrinçar até que ponto essas atitudes eram o resultado da inspiração exterior e até que ponto não passavam de simples estupidez ou de ambições pessoais mascaradas com a capa do interesse nacional. A atmosfera desse debate e as polémicas acesas podem ser encontradas numa análise cuidadosa da imprensa da época e dos estenogramas parlamentares que o leitor mais interessado talvez deseje levar a cabo.

No entanto, as ideias e as escolhas em torno das quais os conflitos se desenrolavam eram frequentemente importantes. Para além da orientação europeia (ocidental) - materializada com uma paciência e uma precisão monásticas por Skubiszewski e a sua equipa da Avenida Szucha - houve muitas outras abordagens interessantes à política externa da república renascida. De início eram bastante fortes as ideias nostálgicas de manutenção de relações próximas com a URSS e, mais tarde, com a sua sucessora, a Rússia, o que realçava as supostas vantagens que poderiam advir de relações "privilegiadas" com Moscovo e a necessidade de respeitar os seus interesses de segurança enquanto grande potência. Era uma reacção à suposta ditadura norte-americana sobre a Polónia ("A Polónia apenas trocou um ditador por outro."). Também tinha bastantes defensores a abordagem ingénua e ilusória de que a Polónia poderia tornar-se uma ponte entre o Ocidente e a Rússia, retirando daí as respectivas vantagens. Mesmo se não prestarmos atenção às fragilidades semânticas (as pontes são feitas para se passar por cima delas, experiência que a Polónia já tinha vivido várias vezes na sua história) não havia qualquer necessidade de semelhante ponte. Outra ideia popular no início era a abordagem "centro-europeia-intermarum". De acordo com esta perspectiva, a Polónia poderia desempenhar o papel de pedra-de-toque e líder da região que se estende do mar Negro ao mar Báltico. Neste caso o problema residia no facto de a Polónia não ter recursos para desempenhar esse papel e - mais importante ainda - nenhum país que tivesse o mínimo de importância na região o desejaria. Algumas vozes da direita exigiam a entrada imediata na NATO, o que em 1990-1991 era uma perfeita ilusão, quanto mais não fosse porque a NATO não tinha o menor interesse em entabular conversações acerca desse tópico. Ainda assim, a falta de esforços desenvolvidos pelo Governo nesse sentido foram o pretexto para críticas cerradas ao ministro Skubiszewski, entre outros. Alguns partidos de direita, de orientação nacional-populista, demonstraram o seu repúdio manifesto acerca do estabelecimento de relações mais próximas com a Alemanha. E expuseram os seus receios e preconceitos sob a forma de acusações contra os vários governos, em especial contra o de Skubiszewski, por "traírem os interesses nacionais". Jerzy Giedroyc e os seus apoiantes criticaram aquilo que consideravam a orientação excessivamente europeia de Skubiszewski. Nas suas palavras, "ninguém na Europa está à nossa espera" e "é inútil bater à porta dos salões europeus". Argumentavam que em vez disso a Polónia devia reconstruir os seus laços com os seus vizinhos directos a Leste21.

Perante tantas críticas e diversos tipos de pressão, Skubiszewski deu provas de uma teimosia e uma consistência dignas de admiração. Nunca permitiu que o desviassem da linha de acção que escolheu e que persistentemente seguiu. Como proponente do trabalho orgânico, sentia repúdio pelos gestos ocos e pelos floreados típicos da classe política polaca. Cada passo tinha de ser cuidadosamente preparado e devia abrir caminho a novas possibilidades. Era excelente nos debates, embora preferisse a calma, a reflexão e o equilíbrio. Aos insultos mordazes, e por vezes imperdoáveis, respondia: "Aqueles que me criticam não propõem quaisquer alternativas" (e os projectos de política externa nascidos fora do ministério "metiam dó e eram descartados"22). O professor Skubiszewski não entrou no edifício ministerial da Avenida Szucha com uma equipa escolhida por si (como foi, por exemplo, o caso da equipa de Balcerowicz no Ministério das Finanças e no Gabinete do Conselho de Ministros). Contudo, com relativa rapidez adquiriu um grupo de bons e leais colaboradores. Entre eles incluíam-se alguns que já tinham trabalhado anteriormente nos Negócios Estrangeiros, que consistiam essencialmente em pessoas com percursos diversificados (mas que eram em primeiro lugar académicos e intelectuais, incluindo antigos oposicionistas democráticos). Todos partilhavam dos seus pontos de vista e constituíam um sólido apoio para a execução das suas medidas políticas ("Estou muito grato aos meus colaboradores. Sem eles pouco teria conseguido fazer"). A reputação internacional de Skubiszewski (antes de 1989 ele era um dos mais proeminentes especialistas em direito internacional), a sua integridade enquanto pessoa, a sua rara capacidade para ouvir e debater ideias, a sua identidade marcadamente europeia (ocidental) e a abordagem intelectual que perfilhava (enraizada no cristianismo) deram-lhe a possibilidade de ser o arquitecto de uma política externa que ia de encontro às necessidades da República renascida.

A QUESTÃO DAS FRONTEIRAS E AS TROPAS RUSSAS

Dois aspectos eram essenciais para a independência e para a soberania da nova Polónia durante os seus primeiros meses de existência. O primeiro foi o problema das suas fronteiras com a Alemanha reunificada, e o segundo foi a retirada das tropas soviéticas do seu território. A questão da fronteira veio a lume depois da queda do Muro de Berlim, aquando do início das conversações "2 + 4" (os dois estados alemães e quatro grandes potências), que visavam definir as condições para a reunificação da Alemanha.

O problema para a Polónia não consistia propriamente na inviolabilidade das suas fronteiras ocidentais. Ninguém no seu perfeito juízo, na Alemanha ou em qualquer outro lugar, esperaria que a queda da Cortina de Ferro alterasse essas fronteiras. Mas o que foi um choque para a opinião pública polaca, incluindo os políticos do Solidariedade, que durante anos tinham estado envolvidos no processo de reconciliação polaco-alemã, foi a total ausência de referências às fronteiras da Alemanha com a Polónia (ou com os seus outros vizinhos) no programa de dez pontos para a reunificação da Alemanha apresentado pelo chanceler Helmut Kohl no Bundestag a 28 de Novembro de 1989. A reacção de Varsóvia foi quase instantânea. A 7 de Dezembro, Skubiszewski fez um longo discurso perante o Parlamento polaco exprimindo a posição polaca acerca desta questão. Numa breve revisão da difícil história das relações da Polónia com o seu vizinho a oeste, declarou: "No entanto, a história não é nem pode ser um factor decisivo na formação da realidade dos nossos dias. A Europa está a mudar. Não negamos essas mudanças; desejamo-las; somos seus co-criadores. Mas é nosso dever preservar o interesse nacional…". O cerne da sua apresentação era a asserção de que "o reconhecimento incondicional da fronteira ocidental da Polónia é um pré-requisito cardeal para a reconciliação polaco-alemã", assim como para a reunificação da Alemanha, que era uma componente do processo de reunificação da Europa. Esta declaração sem quaisquer ambiguidades recebeu o apoio de toda a classe política polaca e tornou-se a base dos esforços polacos para obter o apoio das quatro grandes potências que, dentro de pouco tempo e sem grande entusiasmo, se ocupariam deste assunto. A primeira a manifestar o seu apoio foi a França, que não escondia os seus próprios receios decorrentes da reunificação da Alemanha, com a consequência inevitável de alterar o equilíbrio de poderes europeu com desvantagens para Paris. O apoio francês na questão da fronteira polaco-alemã foi conseguido através de uma extraordinária visita a Paris de uma pouco habitual delegação polaca constituída pelo Presidente Jaruzelski, pelo primeiro-ministro Mazowiecki e pelo ministro Skubiszewski, a 10 de Março de 1990. Recorrendo ao slogan "Nada sobre nós sem nós", a diplomacia polaca também conseguiu incluir a Polónia na fase das conversações "2 + 4" em que se debateu o assunto das fronteiras da nova Alemanha reunificada. Entretanto, a Polónia havia já conseguido o apoio incondicional dos Estados Unidos relativamente à sua posição acerca das fronteiras23. Moscovo e Londres assumiriam posturas semelhantes. Desta forma, todas as grandes potências estavam de acordo que a fronteira Óder-Neisse pertencesse aos "aspectos exteriores da reunificação da Alemanha, juntamente com questões de segurança dos seus estados vizinhos"24. Devido a preocupações de ordem interna (as eleições parlamentares), o chanceler Kohl tinha evitado esta questão durante vários meses, o que causou preocupações em Varsóvia e levou a que se empreendessem diversas manobras político-diplomáticas. Mas entretanto Helmut Kohl aceitara a posição da Polónia, que contava já com o apoio das quatro grandes potências25.

A partir desse ponto o processo evoluiu de forma rápida e sem problemas. A 13 e 14 de Novembro de 1990 tiveram lugar conversações breves - que não mereceram sequer a designação de "negociações" - acerca da proposta de Varsóvia, que culminaram com os dois ministros dos Negócios Estrangeiros a assinar um tratado que confirmava as fronteiras polaco-alemãs existentes. Na opinião do professor Jan Barcz (um dos participantes nas conversações), o que era importante não era tanto a confirmação das fronteiras existentes, mas sim a declaração de ambos os estados segundo a qual essas fronteiras eram "invioláveis agora e no futuro", juntamente com o compromisso mútuo de respeitar incondicionalmente a soberania e a integridade territorial um do outro.

A tarefa homóloga a Leste era qualitativamente mais difícil. No plano formal e legal tratava-se de dissolver o Pacto de Varsóvia e de fazer sair as tropas russo-soviéticas da Polónia. Durante a primeira metade de 1989 essa hipótese era inimaginável para os participantes da Mesa-Redonda. O contexto internacional excluía até a discussão dessa possibilidade. Esta ideia era confirmada pelas declarações públicas do primeiro-ministro Mazowiecki e do ministro Skubiszewski no Outono de 1989 e na primeira metade de 1990. Ambos davam garantias a Moscovo acerca das suas intenções de respeitar as obrigações decorrentes das alianças bilaterais e multilaterais da Polónia, embora não deixassem de exprimir a esperança de que num futuro não muito longínquo os blocos militares deixassem de constituir a base da segurança europeia. Esta abordagem era fortemente justificada pela ordem internacional existente e pela situação interna da Polónia, pela ausência de sinais por parte de Moscovo ou do Ocidente de que seria possível alguma mudança no sistema de alianças, e pelo facto de a situação alemã (especialmente na sua vertente polaca) estar ainda por resolver. Até certo ponto era um jogo de adiamentos, que incluía a resistência às sugestões de renegociação do Pacto de Varsóvia (modificar o Pacto significaria reconhecer a sua manutenção, coisa que os polacos queriam evitar)26. Este estado de coisas começou a modificar-se na segunda metade de 1990. A resolução do problema alemão, a demissão de Jaruzelski (juntamente com a saída dos ministros da Defesa e da Administração Interna, ambos pertencentes ao regime anterior), a vitória de Walesa nas eleições presidenciais, e especialmente a contínua desintegração da União Soviética (que levava Moscovo a concentrar-se mais na tentativa de preservar a URSS do que na manutenção do bloco de influência soviética) contribuíram no seu conjunto para criar a possibilidade de liquidação das ferramentas institucionais usadas pelos soviéticos para controlar os seus estados-satélites. Em todos os outros estados do Pacto de Varsóvia tinham chegado ao poder forças não comunistas. Assim, Moscovo já não tinha parceiros para manter relacionamentos políticos ao estilo de antigamente, coisa de que o Kremlin se terá apercebido provavelmente mais cedo do que os líderes ocidentais. As tentativas de Moscovo no Verão de 1990 no sentido de manter - em níveis mínimos - a função de coordenação do Pacto de Varsóvia falharam redondamente. Três países da Europa Central decidiram tirar partido desta situação; embora ainda não estivessem prontos para criar o Grupo de Visegrad, moldaram a direcção e os tempos das mudanças na região. O trabalho conjunto que iniciaram no final do Outono de 1990 rapidamente deu resultados. Logo a 24 de Fevereiro de 1991 o comité de aconselhamento político do Pacto de Varsóvia (agora composto por chefes de Estado e já não por líderes de partidos comunistas) encontrou-se em Budapeste e decidiu liquidar o Pacto no espaço de alguns meses, e dissolveu as suas estruturas militares ainda mais cedo (em finais de Março). Os protocolos da dissolução final do Pacto de Varsóvia foram assinados pelos seus estados-membros em Praga a 1 de Julho de 1991. O acordo de dissolução do "igualmente defunto" Comecon tinha sido assinado alguns dias antes, a 28 de Junho.

A expulsão das tropas russo-soviéticas revelar-se-ia uma tarefa mais árdua. As negociações acerca deste assunto foram sem dúvida as mais difíceis que os diplomatas polacos tiveram de enfrentar durante os primeiros anos da III República. Provavelmente ainda permanecem como as mais difíceis negociações desde que a Polónia recuperou a sua plena soberania. Tal como no caso da dissolução do Pacto de Varsóvia, iniciativas mais sérias acerca desta questão tiveram de esperar pelo Outono de 1990. É mais fácil anular um tratado - quando ambas as partes estão de acordo - do que fazer retirar um exército. Esta não é apenas uma tarefa política; é também um desafio logístico, organizacional e financeiro. E leva tempo. Aqui, o que importava era não só o contexto político da Rússia em mudança mas também o problema simultâneo de fazer retirar forças soviéticas de uma Alemanha já reunificada (estas tropas deviam deixar o território da antiga Alemanha de Leste em finais de 1994). A Alemanha pode pagar a Moscovo uma "contribuição" fabulosa para facilitar a saída das tropas. Mesmo que Varsóvia tivesse os fundos para pagar uma "contribuição" semelhante, os polacos não achavam que deviam pagar pela retirada de forças de quase-ocupação. Para além disso, se por motivos políticos Moscovo tratava a Alemanha como um parceiro, continuava a encarar a Polónia mais como um Estado vassalo.

Em Setembro de 1990 o ministro polaco dos Negócios Estrangeiros enviou ao Governo soviético dois memorandos relativos a conversações sobre a retirada das tropas soviéticas, sobre outras questões resultantes da sua estada em território da República e sobre a travessia de tropas soviéticas pela Polónia vindas da Alemanha. As primeiras trocas de impressões revelaram graves desacordos acerca de todas as questões importantes.

A Polónia exigia a retirada de todas as tropas até ao final de 1991, reparações por danos ecológicos que elas causassem, pagamento pela sua estada após 1989, e que as tropas vindas da Alemanha regressassem por via marítima. Moscovo pretendia manter as tropas na Polónia durante todo o ano de 1994. A total falta de vontade dos soviéticos de respeitar os interesses polacos causou várias crises e incidentes durante as conversações assim como no decurso da retirada das tropas da Alemanha e, mais tarde, da Polónia.

Isto começou em Janeiro de 1991 com a aparatosa "crise dos comboios", quando a Polónia decidiu impedir a passagem de tropas soviéticas provenientes da Alemanha.

Depois da crise, Moscovo levou um pouco mais a sério a posição da Polónia nas negociações para a retirada das tropas, mas ainda assim mostrava-se relutante em assumir compromissos. Embora se tenham tornado possíveis algumas concessões relativas às datas da retirada, Moscovo manteve-se firme nas suas exigências materiais. Astutamente, os soviéticos propuseram que as instalações e materiais deixados pelo Exército soviético pudessem ser usados por novas companhias polaco-soviéticas conjuntas. Dizia a experiência que este tipo de empresas não só poria em prática negócios semilegais mas também serviria como disfarce para actividades de espionagem. Após a crise de Agosto em Moscovo as negociações avançaram a ritmo acelerado. A 26 de Outubro de 1991 os negociadores conseguiram chegar a um acordo inicial sobre a retirada das tropas, mas aquele não englobava as questões financeiras. Apesar de tudo, as tropas já tinham começado a retirar em 1990 de forma ordeira e gradual, mas este processo foi perturbado pela ruptura da União Soviética (12 de Dezembro), e pela sua substituição pela Rússia como sucessor legal e político. Como resultado da derrocada da URSS, juntamente com a partida de Gorbachev, cuja influência já decaíra drasticamente, o pensamento e a linguagem política russos foram imediatamente dominados pela escola da Realpolitik.

De forma característica, os interesses e objectivos que moldaram a política externa soviética eram agora apresentados sob a rubrica dos "interesses de segurança justificáveis" da nova "Rússia democrática". Isto resultou numa pressão russa para rever os parágrafos sobre os quais já se tinha chegado a acordo, acrescentando cláusulas e emendas que afectavam negativamente os interesses de segurança polacos. Varsóvia foi oferecendo resistência até ao dia anterior ao da assinatura, durante a visita do Presidente polaco Lech Walesa a Moscovo. O próprio Walesa teve um papel importante neste domínio, uma vez que conseguiu chegar a acordo com Boris Ieltsin (que na altura manifestou uma grande amizade para com a Polónia). O acordo, assinado a 22 de Maio de 1992, previa a retirada de todas as unidades soviéticas de combate até 15 de Novembro de 1992 e a retirada das restantes tropas até ao final de 1993. Na realidade o prazo final foi mais do que cumprido. O último soldado russo deixou o solo polaco a 16 de Setembro de 1993 (no dia anterior ao aniversário do ataque soviético em 1939)27.

Para a soberania externa da Polónia este facto teve um significado fundamental, e não só no plano simbólico. A Polónia tinha recuperado a liberdade de manobra na sua política de segurança; especialmente no contexto da já anunciada intenção de se candidatar a ser membro da Aliança Atlântica. A batalha polaca para recuperar a plena soberania e para ver reconhecidas a sua integridade territorial e a inviolabilidade das suas fronteiras tinha dado frutos que seriam impensáveis apenas três ou quatro anos antes, nas vésperas da Primavera dos Povos da Europa Central de 1989.

TRADUÇÃO DE JORGE GARCIA

 

NOTAS

1 MAZOWIECKI, Tadeusz - "Making the impossible possible". In Rzeczpospolita, 6 de Novembro de 2004.

2 Tratou-se de uma combinação de medidas militares (um incremento radical na corrida ao armamento), económicas (o embargo e outras restrições nas relações económicas com a União Soviética), e ideológicas (uma ofensiva ideológica, simbolizada pela descrição da URSS como o Império do Mal). Para aprofundar o tema, cf. KUZ´NIAR, Roman - Politics and Power. Varsóvia, 2005, vol. V.

3 KUZ´NIAR, Roman - "Human rights". In Law, Institutions, and International Relations. Varsóvia, 2004, vol. VIII (sobre o processo da CSCE).        [ Links ]

4 A designação "Outono dos Povos" omitiria o papel da Polónia neste processo, uma vez que a sua Mesa-Redonda e as eleições tiveram lugar na Primavera de 1989. Cf. artigo de M. Howard na Foreign Affairs (1990) - "Springtime of Nations, for a metaphorical use of the latter term to describe the events of 1989".

5 KUZ´NIAR, Roman - "From the Spring of Nations to the Great Transformation". In Polityka Polska. N.º 1, 1991; PACZKOWSKI, A. - "The Autumn of Nations'89: the end and beginning of history". In Tygodnik-Powszechny, 24 de Outubro de 2004.

6 Cf., por exemplo, HAJNICZ, Artur - The Twists and Turns of Polish Foreign Policy, 1939-1991. Varsóvia, 2006, p. 62.

7 Os candidatos do Solidariedade ganharam todos os 161 assentos do Sejm pelos quais puderam concorrer (contra candidatos oficialmente apartidários apoiados pelos governantes), assim como 99 dos cem lugares do Senado (em eleições livres).

8 Este Governo incluía representantes do Partido Comunista (que controlavam os ministérios da Administração Interna e da Defesa), assim como representantes do Partido dos Camponeses e do "Partido Democrático" patrocinado pelo Governo. Tal como Adam Michnik tinha sugerido com o seu slogan "O vosso presidente, o nosso governo", o Presidente (eleito anteriormente pela Assembleia Nacional) foi Wojciech Jaruzelski, que já tinha sido primeiro-ministro e secretário-geral do Partido Comunista.

9 SKUBISZEWSKI, Krzysztof - "Raison d'être of the Polish Republic". In Polityka Polska, 21 de Janeiro de 1993, p. 301.

10 Ibidem, p. 21.

11 Ibidem, pp. 16 e 21. Tadeusz Mazowiecki exprimiu o assunto de forma semelhante ao dirigir-se ao Sejm no dia 12 de Setembro de 1989, supracitado.

12 SKUBISZEWSKI, Krzysztof - "Raison d'être of the Polish Republic".

13 Desta forma, o ministro Skubiszewski rejeitou o paradigma da política externa polaca de Giedroyc. Giedroyc teria dado a prioridade à política em relação ao Leste, defendendo que "quanto mais importância tivermos na Europa Ocidental maior será o nosso papel a desempenhar no Leste". A falha óbvia deste pensamento era: se a Rússia impedisse a Polónia de desempenhar um papel importante no Leste europeu (a sua esfera de influência), a Polónia não teria qualquer hipótese de ocupar uma posição de destaque na comunidade europeia.

14 SKUBISZEWSKI, Krzysztof - "Polish foreign policy in 1991". In Yearbook of Polish Foreign Policy 1991. Varsóvia, 1993, p. 16.

15 SKUBISZEWSKI, Krzysztof - "Raison d'être of the Polish Republic".

16 "Foreign policy - some fundamental questions". Entrevista com Krzysztof Skubiszewski para o Polityka, 17 de Outubro de 1992 (com Krzysztof Mroziewicz e Wiesaw Wadyka).

17 Cf., entre outros, SKUBISZEWSKI, Krzysztof - "Polish foreign policy in 1991"; SKUBISZEWSKI, Krzysztof - "Raison d'etre of the Polish Republic". Dirigindo-se ao Sejm, no dia 7 de Setembro de 1990, o ministro Skubiszewski admitiu que "Dada a nossa actual situação económica, de tempos a tempos, na nossa política externa, somos obrigados a evitar várias coisas por ainda sermos economicamente tão fracos".

18 "We built the polish foreign policy from scratch", entrevista com Krzysztof Skubiszewski para o Tygodnik Powszechny, 11 de Abril de 1994 (com W. Beres, K. Brunetka e A. Romanowski); MAZOWIECKI, Tadeusz - "Making the impossible possible".

19 "We built the polish foreign policy from scratch".

20 Ibidem. O ministro Skubiszewski foi duramente criticado por essas mudanças, não só por representantes do regime cessante, que desta forma perdiam a sua influência na política externa, como por aqueles que não tinham recebido cargos de destaque, ou missões lucrativas ao serviço dos Negócios Estrangeiros, de acordo com o que achavam merecer.

21 Cf., entre outros, KUZ´NIAR, Roman - "A new Polish foreign policy". In Sprawy Midzynarodowe. 1991, p. 10; STACHURA, J. - "Political parties and Polish foreign policy". In Yearbook of Polish Foreign Policy 1992. Varsóvia, 1994.

22 Cf. entrevista para o Polityka supracitada.

23 O apoio norte-americano foi o resultado do encontro do ministro Skubiszewski com o secretário de Estado norte-americano James Baker, durante a conferência para a assinatura do Tratado sobre o Regime Céu Aberto, em Otava em 12 e 13 de Fevereiro de 1990.

24 De acordo com as palavras do comunicado emitido no final da Conferência de Otava.

25 Cf. também a excelente colecção de documentos acerca deste assunto da fronteira polaco-alemã: BORODZIEJ, Wlodzmierz (ed.) - "Poland and German reunification, 1989-1991". In Diplomatic Documents. Varsóvia, 2006. E também o volume de M. Tomali.

26 Cf. discurso do ministro Skubiszewski no Senado polaco a 7 de Setembro de 1990.

27 Acerca das negociações sobre a retirada das tropas soviéticas da Polónia, cf., sobretudo, KOSTRZEWA-ZORBAS, G. - "The Russian troops' withdrawal from Poland". In GOLDMAN, A. E. (ed.) - The Diplomatic Record 1992-1993. Boulder, 1995; MENKISZAK, M. - "Bad neighbourhood: the security issue in relations between Poland and the Soviet Union/Russia, 1989-2000". In KUZ´NIAR, Roman (ed.) - Polish Security Policy 1989-2000. Varsóvia, 2001.

 

* Doutor em Ciência Política (1981) pela Universidade de Varsóvia, onde é director da Secção de Estudos Estratégicos e de Segurança. É editor da Revista Diplomática Polaca desde 2001. Entre 2005 e 2007 foi presidente do Instituto Polaco de Relações Internacionais.