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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.22 Lisboa jun. 2009

 

A utopia a ferro e fogo

Carlos Leone*

 

JOHN GRAY

A Morte da Utopia

Guerra e Paz,

Lisboa,

2008, 311 páginas

(tradução de Freitas e Silva)

 

Na contracapa deste livro pode ler-se a opinião de John Banville: «qualquer leitor minimamente sensível sairá deste livro mais sóbrio e, até, mais sábio». O livro de John Gray relembra muitas vezes ao leitor um pouco mais do que minimamente sensível a frase de uma personagem de Oscar Wilde, segundo a qual, da mesma maneira que para saber se um vinho é bom não é necessário beber toda uma pipa, também para avaliar um livro bastará ler as primeiras dez páginas. Mas, por dever de ofício, o leitor crítico tem mesmo de o ler até sair para poder dar notícia. E isto não é dizer pouco, pois no caso da edição portuguesa as formigas que ilustram a capa e páginas interiores fazem a tarefa de o segurar um tanto desconfortável.

O original inglês intitula-se Black Mass, sendo que a missa negra é a missa «normal» sacrilegamente recitada de trás para a frente. A tese geral do livro (sobre a dificuldade de usar esta noção será necessário um pouco mais de espaço) consiste em afirmar que a missa negra em que vivemos desde há séculos está a terminar. Isto é, segundo o autor, a política moderna (do iluminismo para cá) é uma missa negra, que se limita a inverter a sabedoria política ocidental tradicional (sem grande distinguo entre os antigos e os medievais), prescindindo da caução teológica em nome de uma esperança no homem que Gray qualifica de utópica (logo, a morte da utopia). Assim, depois da missa, a missa negra e, agora, um mundo no qual a utopia pode sempre ressurgir mas, espera o autor, se se lograr esclarecer (passe o termo iluminista) a importância das religiões, talvez se possa evitar o ressurgimento do utopismo na forma de fundamentalismo (a esperança é escassa, no entanto). O que nos traz à tese geral do livro.

 

CIENTÍFICO OU PANFLETÁRIO?

Uma dúvida que persiste na mente após a leitura é qual o «estatuto epistemológico» (à falta de melhor termo) do ensaio: científico ou panfletário? Não é um preciosismo, pois a extensão e o aparato de citações adequam-se a um trabalho académico, embora o tom assertivo sem grandes explicações e a ordenação dos temas onde cabe tudo, desde medievalismo a considerações pessoais sobre Tony Blair, levem a lê-lo como um panfleto.

Como trabalho científico, A Morte da Utopia enferma de vícios evidentes. Radicando numa interpretação da modernidade conservadora, não refere os seus autores (Lowith) ou fá-lo de forma apenas anedótica (Schmitt), nem sequer referindo interpretações da modernidade contraditórias com a sua (Blumenberg, para não nos alongarmos no género de name dropping caro a Gray). Além disso, não apresenta nenhuma verdadeira interpretação de nenhum movimento intelectual ou político, a sua pretensão à inovação é simplesmente resultado da reiterada contradição de todos os autores que cita. Ninguém percebeu nada de coisa nenhuma até Gray escrever? Quase isso, e apesar de numerosas vezes o autor indicar outros trabalhos seus em que desenvolve as críticas que aqui faz, nunca há matizes que tornem este recurso à autocitação menos implausível. Tudo isto se agrava com o estilo de escrita (na linha de Isaiah Berlin, mas ainda menos ordenado) que procede quase por associação livre, saltando entre épocas históricas sem grande cuidado. Sem desconsideração pelas suas obras anteriores, nesta Gray exprime-se melhor nos domínios opinativos próximos do jornalismo, quando se refere à Guerra do Iraque. E talvez não seja por acaso, pois nessa matéria adopta a sabedoria convencional de se ter tratado de uma aventura imperial empreendida por ignorantes fanáticos, nunca considerando a hipótese de o principal legado da Presidência W. Bush ser de ordem interna e, para tanto, a «guerra ao terror» ter sido instrumentalizada para assegurar medidas excepcionais e a reeleição.

Sintomaticamente, se o lermos como panfleto, o livro adequa-se bem ao tom empregue na exposição e, relativamente a Blair, valoriza o lado religioso da sua actuação política de forma mais consequente do que é vulgar. Isto não basta para esconder a antipatia pessoal pelo ex-primeiro-ministro (como a de Joaquim Aguiar por Sócrates, digamos), nem permite escapar ao facto de, tal como Blair, Gray esperar muito da religiosidade (valha a verdade, o entendimento que faz da religiosidade é diverso, o de uma reconciliação com «mistérios» insolúveis da existência, nunca especificados). Em todo o caso, a eficiência do livro como panfleto pode ser comprometida quer pela extensão, quer pela dispersão dos temas. Na ânsia de afirmar os seus pontos de vista, o autor percorre toda a história do pensamento, de Zoroastro a Fukuyama, sempre sem grandes pormenores. Será que o leitor que não se dê ao trabalho de ir anotando os passos pelo caminho retém alguma coisa (que não meramente aleatória)? Na verdade, há mesmo certas passagens em que o autor parece apostado em «ajudar» os mais distraídos, fazendo deslizes retóricos que facilitem a leitura à custa da precisão (por exemplo, pp. 66-70, alternando nas referências que vai fazendo a várias «Europas» e identificando iluminismo com jacobinismo, embora também faça deste apenas uma versão daquele, mas nunca dando conta do critério a empregar), de modo a criar uma coerência de outro modo claramente ausente. Também a ilustração de cada capítulo e subcapítulo com uma citação chega a ser cansativa, pela óbvia desadequação de várias, e ainda por, pelo menos num caso, chegar a ser cómica: depois de quase duas centenas de páginas a verberar o utopismo dos jacobinos, a epígrafe avisando para os perigos do voluntarismo em política externa recorre a palavras de Robespierre (p. 197).

 

A MODERNIDADE POLÍTICA COMO TEOLOGIA SECULARIZADA

A Morte da Utopia, portanto, expõe uma série simples de ideias complexas, todas elas encurtadas para poderem ser associadas num mesmo livro, mais a mais com pretensões de análise da actualidade e não apenas de revisão histórica. Primeiro, a modernidade política é teologia secularizada; depois, esta política está fatalmente condenada (curiosamente, mesmo autores que lhe seriam próximos – como Hayek ou Oakeshott – saem mal no retrato, até por também serem retratados sumariamente); por fim, não havendo hipótese de retornar a uma idade primeva de inocência e pureza, um novo entendimento da religiosidade (como paliativo e não, fundamentalisticamente, como solução) pode devolver alguma utilidade social à política, pois os mitos antigos (Génesis, Prometeu) são mais úteis à Humanidade para uma visão clara daquilo que Gray entende ser próprio da política («arte de responder ao fluxo das circunstâncias», p. 279) do que os mitos modernos da escatologia e do apocalipse. (Claro, estes também são mitos antigos, mas percebe-se que o autor só valoriza aquilo que qualifica como suas formas modernas, embora essa valorização não seja explicitada nem fundamentada, decorrendo apenas de as utopias modernas terem tido à sua disposição meios técnicos de destruição superiores às que as antecederam.)

E a utopia, no meio de tudo isto? A breve referência (metade da página 30) a Platão e Morus indica que só se aproveita a utopia que se quer apenas teórica (embora isto mesmo seja uma leitura dos dois autores insustentável, talvez por isso não seja desenvolvida). Percebe-se a opção do tradutor, usar no título um termo conhecido e de fácil apelo, fazendo-o corresponder ao uso que John Gray lhe reserva no livro. Um uso depreciativo e vagamente sinónimo de «messianismo» e outras noções acessórias (quiliasmo, apocalipse, escatologia). Deste modo, a morte da utopia é apenas a morte de uma vasta utopia (o racionalismo em política, a imanentização da modernidade, a secularização social), não a morte do utopismo enquanto «ideia reguladora» (Gray talvez preferisse «ilusão transcendental», mas adiante). A utopia, assim, explica todos os males: a crença neoliberal nos mercados, a crença neoconservadora no modelo americano de democracia como universal (aqui, a referência a Fukuyama é quase interessante, por indicar algum matiz no juízo), a crença liberal na legalidade, a crença marxista na Revolução, etc., etc. Que este uso seja tão irrestrito que retira ao termo qualquer significado preciso e útil é de somenos, outro tanto pode ser dito da «missa negra» do original em inglês.

Esta edição parece basear-se numa tradução um pouco apressada, mas sem nada de demasiado grave. Inclui, ainda, um índice onomástico bastante útil, especialmente se se atender à proliferação de nomes invocados. As notas são agrupadas no final, o que é uma opção cada vez mais frequente e, no caso, muito adequada (quase sem excepção, indica-se nelas apenas uma fonte bibliográfica). E a inclusão do livro na colecção «a ferro e fogo» é sobremaneira acertada, o que sempre é mais do que se pode dizer do próprio livro.

 

* Doutor em História das Ideias pela FCSH – UNL. Investigador em temas de cultura contemporânea, publicou O Essencial sobre Estrangeirados no Século XX (2005) e O Socialismo Nunca Existiu?. É director da revista cultural Prelo, publicação quadrimestral da IN – CM.