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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.22 Lisboa jun. 2009

 

As manobras secretas de Washington no PREC

Maria Inácia Rezola*

 

BERNARDINO GOMES, TIAGO MOREIRA DE SÁ

Carlucci vs. Kissinger – Os EUA e a Revolução Portuguesa

Lisboa,

Dom Quixote,

2008, 492 páginas

 

A publicação, em 2008, da obra Carlucci vs. Kissinger – Os eua e a Revolução Portuguesa teve um entusiástico acolhimento por parte da imprensa nacional. O seu lançamento foi amplamente noticiado, proporcionando títulos como «Carlucci comandou acções da CIA no pós-25 de Abril»1 ou «Franco recusou uma intervenção militar em Portugal»2. A transcrição de passagens da obra, como aquela em que, em entrevista aos autores, o ex-embaixador norte-americano confessa ter dirigido acções da CIA em Portugal no Verão de 1975 – «Tudo o que a CIA fez foi sob o meu comando. Qualquer acção que possa ter desenvolvido destinava-se a executar a política dos Estados Unidos, que era apoiar as forças democráticas em Portugal. A CIA era parte da equipa [da embaixada] e eles faziam o que lhes mandava» – rapidamente chamaram a atenção da imprensa e do público. Depois de anos de «esquecimento», o polémico Frank Carlucci volta à ribalta, adensando-se a curiosidade sobre eventuais segredos da actuação norte-americana durante a revolução portuguesa.

 

O CONTEXTO INTERNACIONAL DA REVOLUÇÃO PORTUGUESA

O interesse do estudo de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá transcende, no entanto, o seu impacto mediático. Antes de mais porque vem colmatar uma lacuna na historiografia contemporânea. Num momento em que cresce o interesse e se multiplicam os estudos sobre a transição portuguesa, são poucas as obras que se debruçam sobre a sua dimensão internacional. O norte-americano Kenneth Maxwell teve o grande mérito de chamar a atenção para a importância dos factores externos na evolução do processo revolucionário português: apesar de admitir que «os factores internacionais só por si não explicam o resultado das lutas sociais e políticas», para Maxwell «o contexto internacional foi sempre um pano de fundo importante para os acontecimentos em Portugal»3.

Tiago Moreira de Sá tinha anteriormente publicado Os Americanos na Revolução Portuguesa (1974-1976) (Editorial Notícias, 2004), um estudo introdutório onde, contrariando a tese dominante, procurava já fundamentar a ideia de que a intervenção de Washington fora importante no contexto das lutas políticas do PREC. Curiosamente, poucos meses antes da publicação deste Carlucci vs Kissinger, o jornalista Nuno Simas reunira em livro as suas crónicas do Diário de Notícias. Este Portugal Classificado com muitos e interessantíssimos Documentos Secretos Norte-Americanos (1974-1975) fazia já empolgantes revelações que, em muito, contribuíram para aguçar o interesse pelo tema.

A par do seu carácter pioneiro, a obra de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá destaca-se pelo equilíbrio, rigor e meticulosidade. Fruto de um extenso trabalho de investigação, o livro nasceu no âmbito de um projecto de investigação patrocinado pelo IPRI – UNL e pela FLAD cujo objectivo último era o de analisar a forma como os norte-americanos acompanharam a evolução política portuguesa entre 1974 e 1976.

Apesar de, desde as primeiras páginas, os autores enfatizarem a ideia de que não tiveram qualquer pretensão em escrever uma história da revolução portuguesa, o certo é que essa história saiu amplamente beneficiada e renovada. Isto porque os novos elementos e revelações de Carlucci vs Kissinger não só conferem um novo «colorido», como ainda permitem interpretar de forma diversa os acontecimentos já conhecidos e o papel dos protagonistas da complexa transição portuguesa. Em suma, uma obra fundamental e incontornável para todos os que se propõem estudar a transição portuguesa.

Neste contexto cabe enfatizar que uma das mais-valias da obra é o abundante recurso a documentação de arquivo. Antes de mais dos arquivos norte-americanos (National Archives, Ford Library e Library of Congress), muitos dos quais só recentemente foram disponibilizados à consulta; depois, os nacionais (Ministério dos Negócios Estrangeiros e Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra) e particulares. Sendo este um dos pontos fortes da obra, é também neste domínio que cabem os poucos reparos ou observações críticas que lhe podem ser feitos. Isto porque, entusiasmados com a documentação encontrada, os autores por vezes se excedem na extensão das passagens transcritas. Um problema facilmente ­ solucionável recorrendo a extratextos ou remetendo para anexo esses mesmos documentos.

 

NOVOS DADOS SOBRE A REVOLUÇÃO

Merece também um elogio especial o trabalho de levantamento dos materiais de imprensa, das memórias e testemunhos de protagonistas da Revolução e, sobretudo, as entrevistas, directamente conduzidas pelos autores, a algumas das figuras nacionais e norte-americanas que tiveram um papel de destaque nos acontecimentos retratados nesta obra. Neste domínio, a maior proeza dos autores reside provavelmente no facto de terem conseguido que, depois de décadas de silêncio, Frank Carlucci fizesse revelações cruciais sobre a sua actuação em Portugal. É pois fácil concluir que são muitas as novidades de Carlucci vs. Kissinger e que, em muitos aspectos, elas transcendem o âmbito do mero conhecimento da influência norte-americana na transição portuguesa. A título de exemplo, podemos fazer alusão à interessantíssima descrição da personalidade e do perfil dos membros do I Governo Provisório feita num telegrama enviado pelo então embaixador em Lisboa, Stuart Nash Scott, ao Departamento de Estado a 16 de Maio de 1974; ao documento em que percebemos como, com oito dias de antecedência, Scott analisou correctamente as implicações da iniciativa da maioria silenciosa e o 28 de Setembro; aos dados sobre a agitação e a acção dos movimentos independentistas nos Açores; à leitura norte-americana sobre o significado das eleições para a Assembleia Constituinte, consideradas por Kissinger como «um concurso de popularidade sem significado», e a sua antecipação do resultado eleitoral; etc. Passagens que por si só justificam uma leitura da obra.

A par dos múltiplos dados sobre os acontecimentos em curso, são também feitas revelações sobre a forma como os norte-americanos interpretaram o papel e - posicionamento de algumas das mais destacadas figuras da vida político-militar dos anos 1974-1976. Costa Gomes é frequentemente invocado, sendo mais de uma vez apresentado como o «fiel da balança», e rotulado pelo secretário de Estado norte-americano como «um seguidor perspicaz» mais do que «um verdadeiro líder». São também de Henry Kissinger alguns comentários pouco elogiosos sobre o secretário-geral do PS, assim como várias observações sobre Melo Antunes (não hesita em classificar a sua concepção sobre o «futuro da democracia» como «ingénua»). Quanto ao controverso primeiro-ministro Vasco Gonçalves, a preocupação dominante parece ser a sua filiação ou não no PCP, tema sobre o qual Kissinger e Carlucci estão em desacordo: se para o primeiro Vasco Gonçalves é um comunista não «assumido e filiado», Carlucci rotula-o como um «nacionalista esquerdista», «emocional e idealista», «atento e inteligente».

 

AS RELAÇÕES LUSO-AMERICANAS

No que diz respeito às relações luso-americanas, os autores têm a preocupação de, logo nas primeiras páginas, fazer cair por terra a tese segundo a qual os Estados Unidos nada sabiam sobre a conspiração dos Capitães. Primeiro, relatando o episódio da passagem por Lisboa, nas vésperas do 25 de Abril, de Bob Bentley (antigo secretário da embaixada entre 1967-1971). A sua análise da situação portuguesa leva-o a informar Washington sobre a iminência de «uma mudança de regime em Portugal». A ideia é fundamentada com outros documentos onde se dá conta de que os norte­americanos estavam informados sobre a grave crise política que Portugal atravessava desde inícios de 1974. Particularmente curioso e importante é o documento do embaixador Scott, datado de 22 de Março de 1974, em que se faz alusão a um clandestino «Movimento» de oficiais intermédios (movimento dos capitães) e se revela como Washington reagiu a essa informação, instruindo os seus funcionários para que se afastassem do Movimento, de António de Spínola e ou de qualquer outro «conspirador»/«conspiração». Conclusão: os norte-americanos tinham conhecimento das conspirações em curso para derrubar Marcelo Caetano.

Depois, destacam-se os dados sobre as divergências entre Kissinger e Carlucci quanto à posição a assumir perante a realidade portuguesa e o eventual apoio ao processo de democratização; sobre as pressões norte-americanas e europeias sobre os dirigentes portugueses e as tensões no seio da NATO; os estreitos e frequentes contactos entre Carlucci e o Grupo dos Nove; as informações sobre a estratégia de alguns partidos políticos e as suas relações com os Estados Unidos; os dados sobre o alcance da contribuição norte-americana na ponte aérea Portugal-Angola; etc.

A observação de que a estratégia norte-americana relativamente à transição portuguesa não foi nem constante nem homogénea, leva à identificação de cinco etapas evolutivas. O 11 de Março merece especial destaque uma vez que, segundo os autores, o fracassado «golpe spinolista» coincide ou determina a conclusão da segunda fase ou ciclo da política norte-americana. Terá sido então que «a atitude de “envolvimento de baixa intensidade” foi substituída por um endurecimento da posição da Administração Ford para Portugal», destacando-se neste domínio a posição de Henry Kissinger segundo a qual «Lisboa devia ser isolada no seio da NATO de molde a tornar-se a “vacina” para o resto da Europa Ocidental». A questão complexifica-se uma vez que, de acordo com o revelado nesta obra, esta perspectiva do secretário de Estado norte-americano «não foi partilhada pelo seu embaixador em Lisboa», Frank Carlucci, que «advogou alternativamente uma política de apoio às forças “moderadas” internas, sobretudo procurando maximizar a realização das eleições para a Assembleia Constituinte». Nasce e desenvolve-se, a partir de então, um conflito entre ambos que «se foi progressivamente agudizando ao ponto de se transformar numa disputa no seio do governo dos Estados Unidos».

 

UM «VERÃO QUENTE»

Apesar da inegável importância destes dados, as páginas mais interessantes do livro são, em nosso entender, as relativas ao «Verão Quente» de 1975. Primeiro porque, como já referimos, se dá a conhecer a existência de contactos e relações entre os norte-americanos e os Nove. Veja-se, a título de exemplo, a passagem em que se conta como, quando da suspensão dos subscritores do Documento dos Nove, Carlucci informa Washington das suas intenções em «usar os seus canais junto do grupo “moderado” do MFA para instá-los a reagir, pois se não o fizessem “podiam não ter outra oportunidade”». Depois, pelo retrato minucioso da complexidade da correlação de forças na Administração Ford e da tensão / discordâncias quanto à estratégia a seguir em relação a Portugal. O capítulo «Carlucci vence Kissinger» é particularmente sugestivo, dando conta que a vitória do embaixador sobre o secretário de Estado se deveu, em grande medida, ao facto de ter conseguido apoios de peso. Além do mais, é nessas páginas relativas ao Verão de 75 que, pela primeira vez, nos surge o nome de Ramalho Eanes e são divulgados dados que nos ajudam a compreender o papel que virá a assumir no grupo dos operacionais (saliente-se, a este respeito, a informação de que terá sido o comandante das forças da NATO na Europa, Alexander Haig, a identificar Ramalho Eanes com um oficial promissor, convidando-o a participar num programa de formação da NATO). Finalmente, pelas referências à eventualidade de uma guerra civil em Portugal (alerta da intelligence para Kissinger, a 29 de Agosto de 1975), ao plano dos moderados de «instalar o seu quartel-general no Norte, declarar publicamente a sua intenção de livrar o governo e os militares de todos os comunistas […] e lançar uma operação militar em direcção a Lisboa» (p. 311) e, ainda, ao plano de contingência americano para a guerra civil portuguesa (p. 329). Ao já conhecido Plano Callaghan juntam-se agora novos dados sobre o plano e alcance da intervenção norte-americana em Portugal na eventualidade da eclosão de uma guerra civil.

Chegamos assim ao 25 de Novembro, com novas revelações sobre a forma como Washington acompanhou e interpretou as operações e movimentações político-militares desses dias. Em telegrama para Washington, Carlucci assume uma das mais bem-sucedidas teses interpretativas do 25 de Novembro ao afirmar que «uma das causas do choque militar foi a tentativa dos comunistas de forçar a recomposição do Governo Provisório, bem como do Conselho da Revolução». Desenganem-se, no entanto, os que esperam encontrar aqui revelações bombásticas sobre este nebuloso momento. Além do mais, o 25 de Novembro continua a ser apresentado como sendo «essencialmente o resultado da conjugação de factores internos». Todavia, alerta-se, «é hoje possível demonstrar que existiu uma dimensão externa no contexto do choque militar».

Em suma, conclui-se, apesar de a actuação norte-americana não ter sido «o elemento decisivo para o resultado final da transição do autoritarismo para a democracia em Portugal, residindo este na balança de poder político-militar interna», ela constituiu um contributo fundamental «para a vitória das forças democráticas».

 

NOTAS

1 Jornal de Notícias, 22 de Setembro de 2008.

2 Expresso on-line, 1 de Outubro de 2008.

3 Maxwell, Kenneth – A Construção da Democracia em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1999, p. 203.

 

* Investigadora do Instituto de História Contemporânea e docente na Escola Superior de Comunicação Social. Autora de Mitos de Uma Revolução (2007)