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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.21 Lisboa mar. 2009

 

Razões de um aliado

Henrique Burnay *

 

BERNARDO PIRES DE LIMA

Blair, a Moral e o Poder

Lisboa, Guerra & Paz, 2008, 253 páginas.

 

 

Duas das principais virtudes da primeira obra de Bernardo Pires de Lima, “Blair, a Moral e o Poder”, são também duas qualidades do próprio autor. Em primeiro lugar, a recusa da periferia intelectual. Naquilo que escreve regularmente, nomeadamente em blogs e, mais relevante, neste livro, Pires de Lima aborda um tema do maior interesse para a compreensão das relações internacionais dos últimos anos, e talvez mesmo dos anos que aí vêm, sem se sentir limitado por este não ser um tema português nem sequer um tema falado em português. O facto de um académico nacional se sentir impelido a escrever uma análise, publicada em livro, da política externa de um líder britânico, sem que haja nisso uma agenda portuguesa, é um facto que merece destaque. A outra virtude desta obra que corresponde a uma qualidade do seu autor é a própria escrita. O Bernardo Pires de Lima, autor de um estudo académico, como é esta obra, escreve tão bem como o Bernardo Pires de Lima que lemos noutros lugares. Se essa virtude o tornar mais lido, tanto melhor. Entretanto, ser mais legível do que muitas vezes acontece com alguns escritos académicos é já de si virtuoso.

Quanto ao conteúdo, aquilo que sobressai é que há aqui uma interpretação do tempo de Blair feita com suficiente distanciamento para permitir uma análise teórica e uma leitura contextualizada dos acontecimentos sem, no entanto, ser demasiado fria, permitindo assim que a memória das discussões dos últimos anos regresse, mas agora de forma mais teórica e menos ideológica ou simplesmente alinhada com esta ou aquela posição.

Todos os tempos são interessantes, mas aquele que Blair passou no número 10 de Downing Street tem, de facto, um interesse específico que fica muito bem destacado nesta obra. Para além da revolução ideológica que introduziu nas políticas nacionais do Labour Party, Tony Blair realizou, também, uma verdadeira revolução na política externa do Partido Trabalhista. Isso, mais do que o nascimento de uma nova doutrina externa britânica, como tentaremos fazer notar, é o que marca este período e que resulta evidente na leitura deste livro.

Não é certo que o mundo se reja hoje por normas diferentes, nem é líquido que a moral e a ética que Blair queria que fossem marcas da sua política externa – e que Pires de Lima sublinha logo no título – se tenham estabelecido ou sido, sequer, os padrões de toda a sua acção, mas é evidente que o Partido Trabalhista dificilmente voltará a ser o que era antes de Blair. Isso tanto é verdade nas políticas internas, tema abundantemente tratado noutros lugares, como na política externa, aqui retratada.

 Para contextualizar devidamente o tema que escolheu tratar, Bernardo Pires de Lima faz questão de nos recordar o pensamento dominante e as causas determinantes da política externa britânica desde 1945 e as escolas de pensamento que se digladiam em matéria de Teoria das Relações Internacionais, filiando naturalmente o que irá ser o mandato de Blair nas doutrinas liberais.

Sobre o que foi essa política externa, é possível afirmar que Pires de Lima identifica dois eixos. Um, a centralidade da relação anglo-americana, comprovada pela leitura dos factos. O outro, a dimensão moral da política externa, uma actualização da doutrina da Guerra Justa, manifestamente presente nos textos políticos, mas cuja prova é difícil e, apesar do título, não é feita na obra. Muito provavelmente arriscamos porque ela não é possível para lá do domínio discursivo e de alguns momentos que claramente a sustentam (como é o caso da intervenção no Kosovo, tão oportunamente aqui recordada). Um terceiro aspecto reconhecido é a atitude de Blair face à Europa. Mais do que um europeísta no sentido continental do termo, o seu europeísmo parece filiar-se, como resulta deste próprio livro, na ideia de valor acrescentado para a Grã-Bretanha, à semelhança da lógica que preside à relação anglo-americana.

Como se recorda em “Blair, Moral e Poder” a política externa Britânica do pós-guerra, e sobretudo após o “fim de facto do império”, com a crise do Suez, seguiu dois rumos fundamentais: uma sucessiva aproximação à Europa e uma relação verdadeiramente especial, da parte dos britânicos, com os Estados Unidos. Aquilo que Bernardo Pires de Lima demonstra é que Blair, contrariando a vocação anti-americana e mais esquerdista, recorrente entre militantes e chefias do Labour, ao assumir o poder segue uma linha de política externa, constante que obedece ao axioma: quanto mais próximo dos Estados Unidos, mais importante no Mundo, quanto mais importante no Mundo, mais importante junto dos Estados Unidos. O que não é inteiramente uma novidade na política externa britânica. Churchill noutro contexto e com outras prioridades seguiu-o, Thatcher claramente seguiu-o e outros líderes britânicos seguiram-no também. O que é original é o empenho com que esta linha de rumo é seguida por Blair e a consequência que o primeiro-ministro britânico daí procura extrair. Pires de Lima afirma mesmo, talvez exageradamente, que este foi o “único período em que a relação bilateral poderá ser descrita, em bom rigor, de «especial»”. Mas aquilo que não é duvidoso é que a intensidade desta orientação é um claro confronto ao que havia sido o discurso Labour, em particular durante a longa oposição nos anos Thatcher e mesmo antes.

O outro eixo aqui identificado, e constante dos discursos políticos do líder britânico, é o “espírito missionário que define a política externa de Blair”, conforme afirma o autor. Sendo menos visível, conforme cremos, ainda assim, ao recordar a doutrina por detrás da reforma do Foreign Office, o pensamento dominante da elite dos conselheiros de Blair em política externa e, muito significativamente, a intervenção no Kosovo, Bernardo Pires de Lima torna evidente a existência desse fio condutor. A política externa do Labour de Blair (e de Robin Cook, que partiu por causa do Iraque) tem como conceito central, nas palavras de Cook recordadas pelo autor “(…)fazer da Grã-Bretanha, novamente, a força pelo bem no mundo”.

Mais adiante, um pouco mais militante do que no restante do livro, mas sem qualquer prejuízo para o rigor, Pires de Lima pega na questão do Iraque e desenvolve-a com enorme interesse, procurando recordar o contexto, os argumentos e as opções que se colocavam então. Longe da leitura simplista, Pires de Lima recorda o discurso moral de Blair, para procurar acomodar a intervenção no Iraque nesse segundo eixo da política externa britânica. Apesar da qualidade dos argumentos, os factos não sustentam esta aproximação sem a outra, de resto presente de novo no final do livro.

Quanto à questão de fundo, e resumindo-a, ela coloca-se da seguinte forma: é manifesto que Blair identifica um conteúdo moral na remoção de Saddam. Mas os restantes critérios para um intervenção militar desta natureza, tão bem elencado a propósito do Kosovo, não encontram aqui acolhimento. Mais, se Blair insistiu mais nas ameaça das ADM e menos na necessidade de um regime change, se, conforme é aqui recordado, essa não era a linha de Blair, tudo indica que, apesar de haver um juízo moral sobre Saddam, aquilo que moveu o governo britânico terá sido, em última análise, entre os Estados Unidos e aqueles que se lhes opunham, escolher os Estados Unidos. De resto, como Pires de Lima recorda, havia leituras legítimas, inclusive no plano das decisões internacionais, a favor de uma intervenção. De toda a forma, confrontado com os factos e as alianças, Blair decidiu que rumo seguir. E regressamos ao que sobressai como eixo prioritário da política externa britânica: a proximidade relativamente aos Estados Unidos. Não por ser um satélite da política externa americana, mas por ter consciência de que o papel de “pivotal power”, como Blair afirmou, é o que melhor serve a quem já não pode ser Império nem tem condições de superpotência.  

Pergunta o autor: “(…) poderia a Grã-Bretanha ter-se oposto à guerra, como fizeram a França e a Alemanha? (…) poderia a Grã-Bretanha ter apenas enviado tropas após a operação militar, como o fizeram a Itália ou a Espanha? (…) poderia a Grã-Bretanha ter mantido a unidade europeia?”. A todas estas questões a resposta, segundo Pires de Lima, é não. E o seu livro explica porquê. Afinal, terá sido Blair um liberal realista? O livro de Bernardo Pires de Lima é um excelente contributo para esta discussão. O primeiro originalmente em português.

 

* Assessor político no Parlamento Europeu, mestrando do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e autor de uma coluna de opinião sobre temas europeus. Anteriormente foi director adjunto da revista Grande Reportagem e jornalista n’O Independente.