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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.21 Lisboa mar. 2009

 

As Contradições do Ocidente: Visões Alternativas da Ordem Mundial

Luís António Pais Bernardo *

 

Cemil Aydin

The Politics of Anti-Westernism in Asia: Visions of World Order in Pan-Islamic and Pan-Asian Thought

Nova York,

Columbia University Press, 2007, 299 páginas

 

 

A tese de doutoramento de Cemil Aydin, defendida em Harvard, resume o percurso intelectual do autor (ainda curto, mas já significativo). Aydin tem procurado matizar a discussão académica actual em torno da história das ideias e das elites intelectuais e políticas, temáticas vulgarmente focadas nos espaços físicos e simbólicos dos impérios coloniais europeus. Com esse intuito, o autor procura alargar o escopo da discussão a outros contextos, particularmente ao mundo islâmico, com ênfase no Império Otomano após 1815, e na turbulenta história contemporânea do Japão. Além disso, Aydin inova ao legar o protagonismo aos dois contextos intelectuais já referidos, traçando a evolução dos discursos e das narrativas acerca da ideia de «sociedade internacional» que tiveram origem nos dois espaços socioculturais. O «Ocidente», ao invés do «Oriente» (para contentar os seguidores menos atentos de Edward Said), torna-se objecto de teorização e discussão. Uma das consequências previsíveis desta atitude analítica é o confronto com a tese culturalista de Samuel Huntington, subsumida na popular, mas enganadora, expressão de «choque de civilizações». Ao transformar o «antiocidentalismo» em fenómeno histórico, político e intelectual, o autor descarta a ideia de que as formulações intelectuais são tributárias de uma qualquer «cultura».

 

A GENEALOGIA DE DUAS CORRENTES INTELECTUAIS

A obra que pretendemos recensear tem, como balizas cronológicas, os anos de 1839 e 1945. Cemil Aydin efectua a descrição e discussão de duas «visões da ordem mundial», uma definida como «pan-islâmica», com origem na elite intelectual otomana, e outra definida como «pan-asiática», com origem na elite intelectual japonesa. Embora funcione numa lógica diacrónica, o autor pretende, na medida do possível, testar uma hipótese: «foi a crise de legitimidade de um sistema internacional único e globalizado que produziu visões pan-islâmicas e pan-asiáticas da ordem mundial» (p. 6). Assim, o texto está estruturado em torno de seis capítulos, que versam acerca do mesmo número de processos, com duração variável, os quais terão, na opinião de Aydin, modificado os equilíbrios da ordem mundial e a percepção dessas mutações pelas elites intelectuais otomanas e japonesas. Os seis capítulos são divisíveis em três fases, na nossa opinião: no período 1839-1882, a descoberta da imagem do «Ocidente» e início das formulações discursivas em torno da universalidade dos princípios civilizacionais preconizados pelo Ocidente (pp. 15-37); no período 1882-1905, a transição para uma pluralidade de discursos e conceptualizações do «Ocidente» enquanto imagem (pp. 39-71); e, por fim, no período 1905-1945, o surgimento do «antiocidentalismo» enquanto corrente discursiva coerente, com influência política e largamente difundida entre os grupos sociais que constituem o foco principal de Cemil Aydin (pp. 71-203).

 

A ORDEM MUNDIAL EUROCÊNTRICA EM QUESTÃO

Na primeira fase, o autor argumenta que a concorrência de dois fenómenos foi o factor essencial para a eclosão dos discursos em torno do «Ocidente»: por um lado, a descoberta das Luzes e a percepção idiossincrática da universalidade civilizacional europeia; por outro, a crescente tendência para a imperialização da política internacional. Quanto ao primeiro factor, Aydin afirma que o principal esforço foi feito no sentido de desconstruir a noção de que os princípios civilizacionais europeus teriam, como base, uma qualquer essência cultural. O progresso seria um efeito da vontade política reformista. As reformas Tanzimat, iniciadas em 1839, e a restauração Meiji, com início em 1868, são explicáveis, segundo o autor, pelo desemparelhamento entre os conceitos de civilização e essência cultural. As elites intelectuais japonesas e otomanas esperavam, através das reformas, cumprir dois objectivos. Por um lado, atingir um grau civilizacional equiparado ao do Ocidente; por outro, e com base nessa progressão, reforçar a sua legitimidade na sociedade internacional, a qual estaria estruturada em torno de uma percepção material do capital tecnológico e socioeconómico. A partir de 1880, essa percepção seria posta em causa pela progressiva imperialização da política externa europeia e pela influência crescente do discurso orientalista entre as elites intelectuais e políticas europeias.

 

O IMPACTO DA EXPANSÃO IMPERIAL

O autor escolheu a invasão do Egipto pelo Império Britânico como momento definidor da segunda fase (pp. 40-43). O momento da invasão é claramente enquadrável num movimento generalizado de expansão imperial europeia, que teria, na Berlim de Bismarck, em 1884, um momento fulcral. Em 1882, William Gladstone chefiava, pela segunda vez, o Executivo britânico, fortemente influenciado pela experiência britânica no Raj e pelo discurso de Silvestre de Sacy e Ernest Renan (pp. 40, 53 e 65-66). Renan é, aliás, objecto de discussão por parte do autor (pp. 47-54). No Japão, o gorar da expectativa em torno da vitória sobre a China, em 1895, juntou-se a uma percepção partilhada pelas elites intelectuais otomanas e japonesas. O civilizacionismo liberal e a universalidade, fundamentos da ordem mundial estabelecidos pelo Ocidente, eram desrespeitados pela discursividade ocidental, que deplorava o atraso oriental e atribuía-o a características essenciais de um «Oriente» difuso. A pluralização dos discursos e a desconstrução da «bonomia» ocidental, à medida que a expansão imperial tomava lugar, possibilitou o surgimento, em pleno, das correntes intelectuais de que a obra se ocupa: as visões pan-islâmica e pan-asiática. Contudo, tal como o autor afirma, a crítica pan-islâmica e pan-asiática «estava maioritariamente limitada ao Ocidente imperialista identificado com a ordem mundial, e, na verdade, o antiocidentalismo, neste período, continuou a fazer referência aos valores das Luzes proclamados pelo Ocidente» (p. 69).

 

O ANTIOCIDENTALISMO PLENAMENTE ESTABELECIDO

A partir da guerra Rússia-Japão, em 1905, esta perspectiva perderia atractividade. A ordem mundial eurocêntrica, baseada na presunção do desequilíbrio de forças favorável às potências europeias, havia perdido a legitimidade de que auferira (p. 91). Além disso, a percepção da contradição entre o discurso universalista das Luzes e a expansão imperial, a partir de 1880, deixou de ser um efeito colateral da reflexão otomana e japonesa em torno do Ocidente; passou a ser o seu núcleo constitutivo. A vitória do Japão tornava possível a ascensão de uma potência não europeia à esfera mais exclusiva da sociedade internacional, e, em toda a Ásia, o Japão foi promovido à categoria de exemplo. Assim, a perda de legitimidade da ordem mundial eurocêntrica constituía uma consequência lógica do declínio moral do Ocidente (p. 88-90). O surgimento de uma imagem decadente do Ocidente daria lugar à construção de uma imagem auto-orientalizada, que contraporia, ao materialismo decadente das potências ocidentais, a vitalidade espiritual do Oriente (p. 92). No entanto, a eclosão da I Guerra Mundial não intensificou a produção intelectual dos autores antiocidentalistas; embora as visões pan-islâmica e pan-asiática tenham exercido alguma influência nas opções estratégicas do Império Otomano e do Japão, durante o conflito, a necessidade de estabelecer alianças com potências europeias limitou a influência das visões pan-islâmica e pan-asiática. No período pós-1919, a descrição da trajectória inversamente proporcional dos nacionalismos e dos transnacionalismos é esclarecedora: a República de Mustafa Kemal Atatürk e a extinção do califado demonstra a falta de influência da visão pan-islâmica, ao passo que, no Japão, uma miscelânea ultraconservadora de nacionalismo imperial – que o autor associa à visão pan-asiática – foi um dos motores da invasão da Manchúria, em 1931. A influência dos intelectuais pan-asiáticos era evidente, mas a corrente intelectual era, igualmente, deturpada em benefício de imperativos estratégicos.

 

APRECIAÇÃO CRÍTICA

Dadas as características da obra, decidimos dividir as observações finais em duas partes. A primeira diz respeito a aspectos formais; a segunda discorrerá acerca de aspectos substantivos.

Apesar de ser uma tese de doutoramento vertida em livro, trata-se, em todo o caso, de uma obra cuja erudição impressiona pela profundidade e amplitude. A recolha documental e bibliográfica é notável, especialmente pela preocupação em utilizar documentação e bibliografia nas línguas originais. Dominar o japonês e o turco pré-reforma republicana constitui uma valência excepcional. Para além disto, a expressão escrita do autor é rigorosa e clara, característica que terá sido auxiliada pela divisão formal do texto: o encadeamento entre capítulos é irrepreensível, até porque não procura inovar em termos de periodização – embora a convencionalidade da diacronia constitua um problema que abordaremos abaixo.

Em termos substantivos, a obra é inovadora, pelos contextos submetidos a análise e pela tentativa de atribuir uma voz própria às elites otomanas e japonesas, sem deixar de localizar a produção intelectual num contexto político específico. A mesma influência está patente na atitude anticulturalista do autor, que procura descrever o carácter multiforme dos grupos sociais e ideias em questão. Além disso, o abandono da noção de periferia é uma estratégia frutuosa, na medida em que permite a Aydin explorar, por exemplo, os fluxos intelectuais existentes entre elites otomanas, japonesas e nacionalistas hindus.

A nosso ver, a obra apresenta fragilidades que se reportam a dois aspectos: a falta de teorização e a arbitrariedade da periodização. Apesar de ter delimitado o seu corpus documental em função do objecto, de ter definido uma hipótese de trabalho e a metodologia apropriada à exploração historiográfica, o autor não apresentou um quadro teórico coerente, prescindindo da definição de conceitos. O caso mais flagrante é o de «visões da ordem mundial»: embora refira que se trata de uma noção tributária da «imaginação» de Benedict Anderson, Aydin não explora as várias vertentes de uma noção tão difusa. Quanto à arbitrariedade da periodização, a escolha das balizas cronológicas não parece ser significativa, obedecendo mais a um critério de conveniência que ao rigor da análise. Julgamos que o argumento foi adaptado à diacronia convencionalmente aceite, em detrimento da inovação em termos de eventos e processos menos óbvios. A título de exemplo, a inclusão da Conferência de Bandung na narrativa também teria sido significativa.

Contudo, estes reparos são meros apontamentos, e não uma objecção empírica ou retórica. O autor efectuou uma análise política da produção intelectual otomana e japonesa de enorme relevância, abrindo novos caminhos de investigação.

 

* Licenciado em História pela FCSH – UNL. Mestrando em Política Comparada pelo ICS – UL.