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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.21 Lisboa mar. 2009

 

Sangue e raiva: a cultura do terror

António de Araújo *

 

Michael Burleigh

Blood & Rage. A Cultural History of Terrorism

Londres,

Harper Press,

2008, 545 páginas

 

 

Escrever nos nossos dias um livro sobre terrorismo é um gesto audacioso. Michael Burleigh teve essa coragem. De resto, não é a primeira vez que Burleigh, um dos mais conhecidos historiadores da actualidade, se aventura por caminhos há muito percorridos. Integrando-se na mais recente vaga da produção historiográfica anglo-saxónica sobre a II Guerra Mundial, o autor já havia escrito The Third Reich. A New History, que ganhou em 2001 o Prémio Samuel Johnson. Michael Burleigh, aliás, possui uma grande ligação à Alemanha, sendo membro do Institut für Zeitgeschichte de Munique. Grande parte da sua obra é dedicada à história desse país, sobretudo ao período do nazismo e, mais particularmente ainda, à questão racial e ao genocídio do povo judeu.

Mais recentemente, deu à estampa Earthly Powers e Sacred Causes, duas obras sobre as relações entre religião e política desde a Revolução Francesa aos nossos dias. Porventura por ter sido o primeiro a ser publicado, Earthly Powers, que cobre um arco temporal que vai de 1789 até à Grande Guerra, foi aclamado pela crítica. Mas, em nosso entender, Sacred Causes é um livro muito mais apelativo e susceptível de interessar o grande público.

E é ao grande público que se destinam os livros de Burleigh. Tal não significa considerá-lo um «vulgarizador» no pior sentido do termo. Mas é inquestionável que os seus volumosos livros (este Blood & Rage tem 545 páginas) são concebidos com um propósito, por assim dizer, «comercial» e são escritos para cativar os leitores, terreno em que Burleigh se revela excepcionalmente dotado. A sua prosa é, de facto, extremamente sedutora, não só pelas qualidades da escrita, pela capacidade que o autor revela em descrever uma situação complexa num simples parágrafo, mas também porque Burleigh encontra detalhes e faz cruzamentos inesperados de factos aparentemente sem qualquer ligação entre si.

Este programa, naturalmente, comporta riscos. O primeiro deles, claro está, reside na simplificação por vezes excessiva dos seus trabalhos, todos ou quase todos dedicados a «grandes questões» (a Prússia, a Alemanha nazi, religião e política, terrorismo). Mas em lugar algum se pode dizer que Burleigh ceda ao facilitismo ou sacrifique o rigor dos factos à elegância da escrita. O que pode dizer-se, isso sim, é que os livros de Burleigh – e refiro-me em particular a Sacred Causes e a Blood & Rage – possuem uma estrutura interna linear e «límpida» mas evitam qualquer análise global do tema sobre o qual incidem. Em Sacred Causes, por exemplo, encontramos páginas apaixonantes sobre o misticismo na Alemanha em crise do primeiro pós-guerra, mas não temos uma interpretação global da questão das relações entre política e religião no século XX. Tal como não existe em Blood & Rage uma digressão teórica sobre o fenómeno do terrorismo. É o leitor que, por indução, é convocado a fazer esse trabalho – o que nem sempre constitui uma tarefa fácil.

 

O QUE É O TERRORISMO?

No caso de Blood & Rage, Burleigh fornece na primeira página uma definição de terrorismo e não vai mais além. «Terrorism is a tactic primarly used by non-state actors, who can be as acephalous entity as well as a hierarchical organisation, to create a psychological climate of fear in order to compensate for the legitimate political power they do not possess» (p. IX). O prefácio, onde se contém esta definição, possui não mais do que três páginas. Aí, existem frases de efeito poderoso: «If you imagine that Osama bin Laden is going to evolve into Nelson Mandela, you need a psychiatrist rather than an historian.» Ou: «the millieu of terrorists is invariably morally squalid, when it is not merely criminal.»

De seguida, Burleigh apresenta, numa vertiginosa sequência, diversos casos: os terroristas irlandeses do princípio do século XX, os niilistas e os revolucionários russos, os anarquistas, as lutas de libertação nacional e, numa das partes mais felizes do livro, o crescimento da «internacional do terror» (para usarmos uma expressão famosa de Claire Sterling), o terrorismo «juvenil» das Brigate Rosse e do Rote Armee Fraktion, concluindo, obviamente, pelo terrorismo islâmico. Não há, todavia, um fio condutor entre os diversos capítulos, como não há uma explicação convincente para o autor ter escolhido estes casos, mas omitindo outros, como os Tupamaros e as FARC, a guerrilha urbana na América Latina ou os tamil do Sri Lanka. E, por outro lado, se Burleigh considera que o terrorismo é, por natureza, uma realidade alheia ao Estado, ficam por explicar muitas das atrocidades perpetradas pelos franceses na Argélia, que aqui são descritas de forma notável. É certo que, para explicações teóricas, até excessivamente teóricas e demasiado conceptuais, possuímos livros como Inside Terrorism (1998), de Bruce Hoffman, só para citar um caso entre a inabarcável literatura. É certo, também, que outras obras, como o estudo clássico de Walter Laqueur, abriram pistas que não necessitavam ser aqui repisadas. Mas não pode deixar de se reconhecer que, para uma compreensão global do terrorismo, o contributo deste livro é manifestamente pobre. Para mais, o subtítulo, «A Cultural History of Terrorism», firma um compromisso com o leitor que de forma alguma é cumprido nestas mais de quinhentas páginas. Desengane-se quem procure encontrar nesta obra uma história compreensiva da «cultura do terrorismo». O que temos, isso sim, são «casos», apresentados de forma cumulativa, mas sem que do conjunto possamos concluir, no final, pela existência de uma percepção mais rica da evolução do terrorismo enquanto fenómeno cultural. Aliás, dando prevalência a descrições factuais, a recriação da «cultura» em que emergem determinados fenómenos terroristas – e até do «apoio» que os terroristas beneficiam de muitos caracteres da cultura dominante – sai claramente relegada para um plano secundário.

Encerrado o livro, o leitor é, assim, forçado a fazer por si o trabalho que o subtítulo da obra anunciava e prometia. Por outras palavras, caber-lhe-á reconstruir, a partir do que leu, uma «teoria geral do terrorismo», tarefa que se revela francamente difícil, até pela profundidade que Burleigh dedica a cada um dos casos que descreve – mais do que analisa, insista-se. O motivo pelo qual Osama bin Laden nunca será um Nelson Mandela é algo que este Blood & Rage não permite descobrir. O livro termina algo abruptamente, sem uma conclusão geral ou um ensaio de síntese. A descodificação de um fenómeno tão complexo e plurifacetado como o terrorismo é fornecida, de forma muito aproximativa, apenas nas primeiras três páginas do prefácio, e mais com finalidades de delimitação do objecto de estudo do que de interpretação do mesmo.

Este será, porventura, um juízo demasiado severo relativamente a um livro de excepcional qualidade e a um autor que já nos deu obras tão fascinantes como Sacred Causes. Na verdade, há algo que até certo ponto redime Blood & Rage das óbvias fraquezas atrás recenseadas: os extraordinários dotes de Burleigh como narrador de factos. Estamos, sem dúvida, perante um dos mais talentosos «cronistas» da historiografia contemporânea, cujas obras possuem uma «orientação» que se pressente a cada parágrafo mas que contêm igualmente uma qualidade de «escrita da História» que as converte em objectos extraordinariamente atraentes para o leitor. Por muitas obras que tenhamos lido sobre a Argélia, as páginas que Burleigh lhe dedica oferecem, se não um novo olhar, pelo menos uma nova forma de olhar – e uma forma altamente sedutora. Compare-se, por exemplo, um clássico como A Savage War of Peace, de Alistair Horne, e este livro de Burleigh: é forçoso concluir que a leitura do segundo é muito mais atraente.

 

A NECESSIDADE DE «REGRESSAR AOS FACTOS»

Por outro lado, a proliferação em massa de obras interpretativas ou «teoréticas», ocorrida no rescaldo do 11 de Setembro, e a desigual qualidade das mesmas, tornava necessário um «retorno aos factos». Um regresso ao passado, feito de um modo límpido e cristalino, ainda que envolto numa prosa que visa nitidamente apresentar um «estilo». Daí o interesse deste livro. Se aqui é difícil receber respostas sobre o que é o terrorismo, obtém-se – o que não é pouco – uma narrativa apaixonante de alguns percursos do terror no século XX. A pertinência da selecção desses caminhos poderá ser impugnada, sem dúvida. Mas, uma vez entrados neles, dificilmente abandonaremos os trilhos por onde Michael Burleigh nos guia e conduz. Esse é o grande mérito de Blood & Rage. Numa altura em que já quase nada de novo haverá a dizer sobre o terrorismo, em que a frequência das «análises» se torna insuportável, eis que surge um livro de certo modo «novo» e refrescante. A capacidade que Burleigh tem de nos surpreender em cada linha da sua escrita é surpreendente e inesgotável. Por detrás de cada capítulo, há um árduo trabalho de investigação – algo que fica patente na história do III Reich e em Sacred Causes, porventura de forma até mais vincada do que em Blood & Rage. Não nos encontramos perante um vulgarizador simplista, mas ante um historiador com uma rara capacidade expositiva, ainda que ideologicamente «orientado». Mesmo aí, todavia, Burleigh consegue ser mais subtil ou contido do que um Paul Johnson, por exemplo (e só para citar o nome de outro grande narrador da História).

Em suma: se o leitor preferir «análises» ou «ensaios», na generalidade dos casos superficiais e efémeros, opte por outras obras. Ao invés, se quiser conviver com o terrorismo de um modo informativo e, até certo ponto, «atraente», este é um livro que se recomenda sem quaisquer hesitações. Indubitavelmente, um grande livro de História.

 

* Jurista. Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa e consultor para assuntos políticos na Presidência da República. Autor de vários estudos sobre história contemporânea portuguesa, entre os quais Jesuítas e Anti-Jesuítas no Portugal Republicano (2005) e A Lei de Salazar (2007).