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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.21 Lisboa mar. 2009

 

Profeta ou renegado?

Bernardo Futscher Pereira *

 

 AVRAHAM BURG

The Holocaust Is Over. We Must Rise from its Ashes

Palgrave Macmillan, 2008, 272 páginas

 

 A liberdade de expressão é um dos traços principais que distingue Israel dos seus inimigos no Médio Oriente. O uso dessa liberdade serve tanto para as autocríticas mais penetrantes como para manifestações de um extremismo político e religioso profundamente alheio aos valores da democracia, tal como são entendidos na Europa. Com este livro, que é um grito de alma, Burg entra na vociferante discussão que diariamente se trava em Israel – e sobre Israel – com invulgar coragem e desassombro.

É um livro digno de nota não apenas pelo que exprime mas também por o seu autor ser quem é. Avraham Burg foi um menino de ouro da política israelita, um sabra religioso de esquerda, militante, desde a juventude, do movimento Peace Now, membro de uma família no coração do establishment do novo Estado sionista, estrela ascendente do Partido Trabalhista e, finalmente, presidente do Knesset entre 1999 e 2003. Desta posição sumamente privilegiada, Burg pôde observar, sentir, pensar e interiorizar experiências que agora destila neste livro, fruto de uma crise de consciência que o levou, em 2004, a retirar-se da vida política para dedicar-se à escrita e à vida empresarial.

Inicialmente dirigido aos seus compatriotas e agora traduzido para inglês, o livro – feito de pensamentos que, segundo diz, «me queimavam por dentro» – é um misto de incandescente denúncia do caminho que vem sendo traçado por Israel, de polémica apaixonada, da evocação comovida do seu pai e de defesa de uma nova forma de judaísmo que abrace, sem hesitações, um universalismo humanista. Livro que deliberadamente pretendia lançar uma pedrada no charco e que o transformou aos olhos de muitos dos seus pares numa espécie de renegado.

Porque, se descontarmos o tom elegíaco que usa para falar dos pais e a profissão de fé na capacidade de regeneração de Israel, com base no extraordinário património ético do judaísmo, o diagnóstico que faz da situação no seu país é brutal e pessimista; e não se refere sequer, em detalhe, ao problema palestiniano embora inevitavelmente o tema paire ao longo de todo o livro.

 

UMA NAÇÃO À DERIVA

Israel, afirma Burg, transformou-se numa «terra sem profetas», numa nação à deriva, que vive de crise em crise, em permanente estado de emergência e agitação emocional. Nessa nação atravessada por inúmeras clivagens, o discurso moderado tem, progressivamente, vindo a perder terreno para o extremismo. As posições inverteram-se: as vozes que ainda ontem apenas se faziam ouvir nas franjas do sistema político deslocaram-se hoje para o centro, abafando e marginalizando as posições que dantes o monopolizavam.

A reflexão de Burg sobre Israel é constantemente mediada pelas figuras do pai e da mãe. O primeiro, membro fundador do Partido Nacional Religioso, foi um pilar do establishment israelita desde a independência até aos anos de 1980. Um judeu alemão que só em 1939, aos 30 anos, emigrou para a terra prometida, Yosef Burg foi ministro ininterruptamente de 1951 a 1986, servindo sucessivamente com Ben Gurion, Moshe Sharret, de novo Ben Gurion, Levy-Eshkol, Golda Meir, Yitzhak Rabin, Menachen Begin e Yitzhak Shamir. A mãe fazia parte da comunidade judia de Hebron, expulsa daquela cidade durante o pogrom de 1929. A evocação que faz da família serve, em parte, para medir a distância entre o sonho que animava os fundadores do Estado e a realidade israelita sessenta anos depois.

A tese central de Burg é que o Holocausto se tornou omnipresente na consciência colectiva de Israel: o trauma do Holocausto, constantemente reiterado, tornou-se o cimento unificador da sociedade israelita, o elo simbólico que uniu, numa só nação, as comunidades da diáspora das mais variadas origens, estranhas umas às outras pela cultura e pela língua, separadas por um abismo social, e cujo único traço de união era o judaísmo.

Nem sempre foi assim. A internalização do Holocausto foi um processo gradual. Na opinião de Burg, o momento de viragem a partir do qual o Holocausto assumiu o lugar central na consciência colectiva de Israel foi o julgamento de Eichmann. Burg dedica o seu livro à memória de Hannah Arendt e a ambivalência que mostra acerca deste acontecimento catártico na história do Estado judaico parece em parte ter sido influenciada por algumas das considerações feitas por Arendt na sua famosa reportagem sobre a banalidade do mal.

Burg faz sua a tese central de Arendt – de que o Holocausto foi um crime humano cometido por seres humanos – e argumenta que, ao rejeitar essa tese, Israel «nacionalizou» o Holocausto, passando a considerá-lo uma coisa só sua: a consequência lógica de séculos de anti-semitismo, um evento único, incomparável, que mais ninguém pode entender ou avaliar na sua justa dimensão e que constitui, ex post facto, a justificação inapelável do projecto sionista.

Para Burg, a omnipresença do Holocausto distorce profundamente o ethos original da experiência israelita: a nação pioneira e ilustrada, resoluta e confiante, determinada a construir, como na União Soviética, um homem novo, transformou-se num país de vítimas assustadas, com uma mentalidade de cerco, para quem qualquer inimigo é um novo Hitler e qualquer crítica um indício de anti-semitismo.

Pouco importa que Israel se tenha tornado o país mais próspero e militarmente dominante do Médio Oriente, o aliado preferencial dos Estados Unidos, o protegido da Alemanha, o parceiro privilegiado da União Europeia no Médio Oriente. Os israelitas continuam a ver-se como um povo isolado, rodeado de inimigos, inseguro, acossado e incompreendido e permanecem dominados por uma mentalidade de «nós contra eles», sendo «eles» o mundo inteiro, com a possível excepção dos Estados Unidos.

Mas o Holocausto não só tomou um lugar central na psique israelita, como passou também a ser utilizado para fins políticos. Como diz Burg, «tirámos o Holocausto da posição de santidade que era a sua e tornámo-lo um instrumento vulgar e mesmo trivial de luta política. Transformámos o Holocausto num instrumento ao serviço do povo judeu. Mais do que num instrumento, numa arma: uma arma mais poderosa que as Forças de Defesa Israelitas».

Não se trata aqui de negar que o Holocausto tenha sido único, no sentido de incomparável, pela ideologia subjacente, pelos métodos utilizados e pela sua dimensão, nem de menosprezar o significado de ter tido por alvo o povo judeu, vítima de inúmeras perseguições ao longo da História. Mas o facto de ser um episódio único e de uma importância transcendente – o maior crime da história da Humanidade – não significa que seja um acontecimento isolado, fora de qualquer contexto histórico, nem que, como sublinha Burg, seja património exclusivo do Estado de Israel.

Foi por causa do Holocausto que a figura do genocídio foi incorporada na ordem jurídica internacional. Ora, aponta Burg, em vez de denunciar o genocídio onde quer que aconteça, Israel cala e nega: nega o genocídio arménio, por causa da aliança com a Turquia, defende a Sérvia, porque, durante a guerra, croatas e muçulmanos estavam do lado da Alemanha, reage com indiferença perante os massacres no Ruanda...

 

UMA TENTAÇÃO UNIVERSAL

Estas atitudes podem ser compreensíveis à luz dos interesses do Estado israelita e são, em si mesmas, habituais na política internacional, domínio em que os interesses costumam primar sobre os princípios. Neste caso, todavia, estas omissões merecem ser sublinhadas porque existe, no Médio Oriente, uma óbvia tentação genocida – por vezes mesmo uma declarada intenção – que é importante denunciar: de certos sectores árabes e muçulmanos em relação a Israel, como é evidente, mas também – e é Burg quem implicitamente o reconhece – de sectores israelitas relativamente aos palestinianos. Burg não aborda directamente a questão palestiniana mas não deixa de denunciar a forma como a «transferência», eufemismo para a expulsão dos palestinianos, é agora abertamente discutida e proposta por políticos como Avigdor Lieberman e pelo seu partido Yisrael Beiteinu e as ideologias abertamente racistas que prosperam em Israel, propagadas não apenas por políticos de extrema direita mas também por alguns rabinos com grande influência em alguns grupos de colonos fanatizados da Cisjordânia.

Burg ataca também a obsessão com o anti-semitismo, argumentando que nunca como agora os judeus tiveram tantos aliados na luta contra o anti-semitismo no Ocidente, nem tantas defesas e prevenções contra o seu ressurgir.

Embora Burg combata o seu próprio pessimismo e alimente a possibilidade de regeneração da sociedade israelita, não há como negar o tom profundamente crítico e negativo das suas palavras e o receio, expresso abertamente, que esteja em via de se tornar realidade «o pesadelo de um Estado Halakha» (religioso), governado por «rabinos e generais», e inspirado por «falsos messias» que «querem conquistar a terra por dentro».

Burg termina o livro com uma meditação desencantada sobre a presença, ou a negação, de Deus após o Holocausto, da qual conclui que cabe ao ser humano assumir agora a responsabilidade que antes era divina: a de dar um sentido ético à vida. Israel, por sua vez, deve abandonar o particularismo, ou como lhe chama, o «exclusivismo», e abraçar valores universais. Burg assume-se assim, sem hesitação, do lado daqueles que, acima da lealdade à nação, colocam a defesa de valores morais e espirituais.

Conforme Burg esperava e certamente desejava, o livro provocou em Israel um debate tempestuoso e uma reacção agreste. Mesmo entre os que estavam na sua área política, houve muitos que entenderam que Burg tinha ido longe de mais e que o acusaram de já não ser sionista e de ter virado as costas a Israel. Numa entrevista publicada no Haaretz com o jornalista Ari Shavit, que gerou uma acesa discussão, Burg não desmente inteiramente estas acusações. «Sou um ser humano, um judeu e um israelita», afirma. «Ser apenas israelita já não chega. Estou para lá disso», afirma.

De um dia para o outro, Burg viu-se relegado para as margens da vida política israelita. Mas o seu passado, a sua notoriedade, o próprio impacto deste livro impedem que seja completamente ostracizado e garantem que a sua voz é escutada muito para lá das fronteiras da sua terra natal. Assim, a publicação do livro valeu-lhe uma revoada dose de notoriedade internacional, com «perfis» em publicações como a New Yorker, o New York Times ou o Independent.

A política israelita não é um jogo para tímidos. O papel que desempenhou na vida política israelita leva Burg a assumir por vezes um tom ligeiramente superior que, para além do conteúdo das suas afirmações, contribui certamente para irritar os seus compatriotas. Burg afastou-se da política activa mas quer fazer ouvir a sua voz e, embora não o afirme explicitamente, pensa-se a si mesmo como um profeta capaz de apontar novos caminhos a uma nação transviada do seu rumo original.

Burg esquece-se do provérbio de que ninguém é profeta na sua própria terra. Não obstante, a todos aqueles que, partindo de uma posição de simpatia, assistem de fora, com angústia e consternação, à evolução que Israel vem sofrendo, Burg presta um grande serviço: com a autoridade que, apesar de tudo, ainda possui, põe o dedo nalgumas dolorosas feridas e diz verdades que, em bocas estrangeiras, seriam de imediato desqualificadas e capturadas para o terreno estéril da luta política sem mercê e, cada vez mais, sem esperança que se trava sobre o futuro do Estado judaico.

 

* Diplomata de carreira. Adjunto diplomático do ministro da Defesa Nacional no XIII Governo Constitucional e assessor para as relações internacionais da Casa Civil do Presidente da República. É cônsul-geral de Portugal em Barcelona.