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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.21 Lisboa mar. 2009

 

A crise financeira e económica internacional

Vítor Bento*, José Ferreira Machado** e António Nogueira Leite***

 

A crise financeira e económica continua a ser um assunto de relevo no debate internacional, reflectindo-se nas políticas interna e externa de cada Estado. A R:I procurou saber a opinião de três economistas portugueses, propondo a resposta a três perguntas:

 

1. A actual crise financeira internacional tem origem no sistema vigente de regulação financeira e no governo das sociedades e instituições. Concorda? Porquê?

2. Que decorrências se devem tirar em termos da regulação das relações económicas internacionais?

3. A actual crise pode ser vista como o «canto do cisne» do modelo económico em que temos vivido?

 

 

VÍTOR BENTO

 

1

Esta crise, que começou por ser financeira, mas que já é económica, resultou da conjunção de múltiplas causas. A sua verdadeira interpretação só será conseguida mais tarde, com mais distanciamento e mais informação do que agora se dispõe. Tal como a crise de 1929, é muito provável que daqui por dez ou vinte anos ainda se continue a escrever sobre ela e a procurar novos ângulos de interpretação sobre o que aconteceu.

Apesar da sua dimensão sistémica e do seu impacto sobre a economia global, que, só por si, lhe dá um relevo inusitado e a torna praticamente única, nela podem ver-se os sinais típicos de uma bolha especulativa, como muitas outras verificadas ao longo da história, como nos relatou Charles Kindleberger, no seu livro Manias, Panics, and Crashes: A History of Financial Crises (Nova York: Basic Books, 1978), e como se continuou a ver em vários casos subsequentes. Deste ponto de vista, o que esta crise tem de diferente é que a bolha encheu muito mais e rebentou com maior estrondo.

A criação, e explosão, destas bolhas resulta quase sempre da combinação do mesmo conjunto de ingredientes: um período de prosperidade que, fundando um comportamento baseado em expectativas adaptativas – o que aconteceu funda a expectativa do que vai acontecer –, acaba por gerar a falsa convicção de que a valorização dos activos – reais ou financeiros – é imparável. Esta falsa convicção acaba por alienar quase toda a gente num comportamento irracional, de ganância incontrolada, e que se alimenta a si próprio – o sucesso visto na experiência dos outros inspira os hesitantes a imitar o seu comportamento – gerando uma mania colectiva. À medida que mais gente vai entrando no alienante movimento, mais os activos se valorizam, num boom que muitos acreditam ser infindável, que gera uma incomensurável riqueza artificial, mas que sendo percebida como real alimenta níveis de consumo e de investimento insustentáveis. Até que… não há mais ninguém para entrar no jogo!

Quando isso acontece, o que até então sempre subiu, começa a descer e com isso cessa o irracional optimismo que levou o valor dos activos até injustificadas alturas. As primeiras perdas atiçam o receio, que rapidamente se transformou em pânico, de se não conseguir sair a tempo do jogo, dando início a um novo movimento incontrolável, mas muito mais acelerado e de sentido inverso, conduzindo à queda abrupta do valor dos activos que, pouco antes, todos acreditavam que só poderia subir. Este movimento descendente, mais uma vez, acaba por se justificar a si próprio: as pessoas querem vender porque acreditam que o valor vai baixar e o valor baixa porque todas as pessoas querem vender. E é assim que se dá um crash desordenado, eliminando não apenas a riqueza artificial, criada escrituralmente sem fundamento, mas destruindo no caminho muita riqueza que, noutras condições, seria sustentável. E o seu reflexo no consumo e investimento é mais uma vez inevitável, conduzindo à recessão económica.

De quem é a culpa desta situação? De muita gente, embora com quotas diferentes. Dos reguladores, que não viram a tempo, e por isso não preveniram, as condições que alimentaram a insustentável inflação dos activos; dos bancos centrais, que mantiveram taxas de juro excessivamente baixas por demasiado tempo; de gestores e profissionais pouco escrupulosos, que criaram e venderam gato por lebre, acreditando, ou fazendo os outros acreditar, numa nova alquimia transformadora; de teóricos que acreditaram, e fundamentaram a crença de outros, na infinita capacidade auto-reguladora dos mercados. Mas também de todos os especuladores – apostadores num investimento arriscado – que alimentaram toda a espiral ascendente. E os especuladores não são apenas aqueles sujeitos que a imaginação popular representa como parasitárias aves de rapina, geralmente muito ricos, que se comprazem em explorar a ingenuidade e a boa-fé dos outros, cidadãos normais. Especuladores são também todos aqueles que se endividaram até ao limite das suas capacidades em condições ideais (senão mesmo para além disso), os que, ingénua ou conscientemente, procuraram explorar as promessas de ganhos fáceis e rápidos, esquecendo o princípio prudencial que avisa de que quanto mais rendimento prometido, mais risco associado. Enfim, são muitos de nós e são, em muitos casos, os próprios governos, que estimularam ou puseram em prática políticas insustentáveis.

Mas para além dos «suspeitos do costume», acima descritos, esta crise contou também com outros importantes contributos. Ao nível macroeconómico, certos países, como a China, mantiveram as suas moedas subavaliadas, com isso acumulando vastas reservas cambiais que ajudaram a inundar os mercados de liquidez. Ao mesmo tempo que um desapercebido movimento deflacionário nas manufacturas, resultante do abaixamento dos custos de produção originado com a entrada das economias emergentes no mercado global, ajudou a conter – transferindo-as para os activos, onde passaram disfarçadas – as pressões inflacionárias criadas pelo excesso de liquidez na economia mundial.

A estes dois efeitos macroeconómicos acresce ainda o facto de se ter passado a dar cada vez menos atenção à macroeconomia e à sua gestão, descurando assim um princípio fundamental desta e que, se tido em devida conta, teria ajudado a prevenir esta crise: que o efeito da soma das decisões económicas individuais (dos agregados macroeconómicos) é, ou pode ser, muito diferente da soma dos seus efeitos.

Além disso, a moralidade social evoluiu no sentido de valorizar cada vez mais a satisfação imediata, em detrimento da sua projecção no longo prazo, e que se reflectiu, entre outras coisas, na transformação radical de comportamentos anteriormente baseados no princípio de «poupe primeiro, desfrute depois», para «desfrute agora, pague depois». Essa evolução não pode deixar também de se ver reflectida nas origens desta crise. De certo modo, pode dizer-se que essa transformação comportamental nos habitou a viver à custa do futuro e que este agora nos confrontou com a factura acumulada.

Por fim, há uma outra causa possível para a presente crise, mais telúrica, mas cujo tratamento requer elaboração mais demorada e que não cabe aqui. Trata-se dos efeitos da evolução demográfica nos sistemas de segurança social e de ambos na redução do nível de poupança.

 

2

A crise acabará por funcionar como um catalisador para uma reforma do sistema de regulação económica internacional, que muitos já vinham reclamando, desde há algum tempo, visando ajustá-lo à dimensão da nova globalização. A iniciativa que dará lugar à cimeira internacional convocada pelo Presidente americano, a instâncias da União Europeia (UE), é disso prova. Uma reforma do sistema de supervisão e coordenação mundial saído de Bretton Woods, e que não acompanhou a expansão e a mudança de natureza da globalização, deverá ser o resultado dessa ou de outras iniciativas que lhe sucedam. E daí deverá resultar, por sua vez, a redefinição do papel do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, assim como de outras instituições que têm hoje um papel que não é fácil de compreender, como o Bank for International Settlements (BIS) e a OCDE, aproveitando as experiências e o saber aí acumulados, mas assegurando-lhes uma maior eficácia, que terá de passar pela outorga de maior autoridade.

A principal preocupação que deverá nortear os dirigentes é a de evitar que, de uma eventual falta de instâncias regulatórias internacionais ou de suficiente coordenação das regulações nacionais, se não passe a um excesso de regulação que acabe por se revelar um empecilho à recuperação do crescimento económico necessário para satisfazer as necessidades e as aspirações de uma crescente população mundial.

O fim dos off-shores – que não têm qualquer justificação que possa ser tida como razoável[1] –, a eventual dificultação dos movimentos de capitais de grande volatilidade – preocupação que esteve sempre no centro da organização monetária emergente de Bretton Woods –, uma supervisão financeira internacional, eventualmente a cargo do FMI ou do BIS, à semelhança do que existe com as situações macroeconómicas e que é feita ao abrigo do artigo 4.º dos estatutos do FMI e uma monitorização mais activa, dotada de mecanismos sancionatórios, dos principais desequilíbrios de balança de pagamentos, sobretudo os que têm implicações sistémicas (mais uma vez preocupação que foi sempre central à organização saída de Bretton Woods), poderão ser alguns dos aspectos contemplados nessa revisão.

 

3

Não creio que o seja, nem vejo que benefício resultaria para a Humanidade com a abolição de um modelo que, apesar das dificuldades com que se confronta, proporcionou, como nenhum outro, um considerável aumento do bem-estar geral, apesar de confrontado com um crescimento populacional que, só num século, foi maior do que em toda a história anterior da vida humana.

Acho, pelo contrário, que deverá ser missão assumida por todos os dirigentes políticos mundiais e por todos os que tenham capacidade de intervenção para o efeito, assegurar que o modelo seja restaurado tão cedo quanto possível, ainda que com os necessários ajustamentos que minimizem as suas insuficiências e traduzam novos equilíbrios mais adequados às transformações da realidade.

No entanto, e apesar de crer que o modelo continua a ser essencial para o bem-estar da Humanidade, estou convencido de que desta crise terão de resultar reajustamentos muito significativos a nível económico, social, político e geoestratégico.

Ao nível económico, terá de haver, pelo menos, um redesenho dos incentivos por forma a favorecer mais os resultados de longo prazo e a desencorajar comportamentos demasiado geradores de direitos de saque, líquidos, sobre o futuro. E algumas teorias e postulados económicos terão de ser revistos.

Ao nível sociopolítico, é muito provável que venha a ser reivindicada uma revisão dos termos do contrato social, para reduzir as desigualdades distributivas, que conseguiam ser aceitáveis enquanto o modelo satisfazia as suas próprias promessas de eficiência e de crescimento generalizado. Mas que deixam de o ser com as consequências desta crise, que muitos vêem, não sem razão, ser devida aos incentivos distributivos criados pela «gestão» do modelo. No entanto, e para que desta eventual revisão não decorra um sério embotamento da produtividade indispensável ao contínuo progresso económico, a educação deverá ser o principal recurso utilizado no sentido de aumentar os skills dos candidatos a maior participação na distribuição do rendimento.

E o conflito entre democracia e mercado poderá também conhecer novos desenvolvimentos e conduzir a novos equilíbrios.

Ao nível geoestratégico, haverá, quase certamente, uma redistribuição de poder mundial, que no fundo mais não será do que o reconhecimento de um novo equilíbrio das «placas tectónicas» da economia mundial, cujo movimento das últimas décadas é, de certo modo, uma outra explicação para esta crise. A China, por exemplo, se souber jogar a oportunidade que tem de se constituir um importante motor da retoma mundial, revalorizando a sua moeda e utilizando as vastas reservas acumuladas para dinamizar a procura – doméstica e mundial –, poderá obter como contrapartida uma importante posição nas instâncias, formais e informais, da governação mundial. E os países das economias emergentes também não deixarão de aproveitar a oportunidade para reivindicar uma maior quota de participação nessas instâncias de governação.

Tudo isso, claro, à custa dos Estados Unidos, mas sobretudo da Europa, que continua a não conseguir apresentar-se como uma frente unida, falando a uma só voz. Veja-se a composição da cimeira que aí vem e a disputa das potências nacionais europeias para ter um lugar próprio à mesa... Espera-se, todavia, que o agravar da crise não venha a desencadear comportamentos demasiado autocentrados, entre os membros da UE, que, esvaziando o princípio da solidariedade essencial à sua existência, acabem por conduzir à sua implosão.

 

JOSÉ FERREIRA MACHADO

 

1

A actual crise dos mercados financeiros é, na sua essência, aquilo que os economistas chamam um problema de selecção adversa ou de «limões» (cujo estudo esteve na origem do Nobel atribuído a Akerlof): quando um activo como um MBS (mortgage-backed security) é posto à venda na sequência do rebentamento da bolha imobiliária, os potenciais compradores não conseguem saber se tal acontece porque o vendedor necessita de liquidez ou porque está a tentar «despachar» os seus piores activos (os «limões» de Akerlof). A um nível agregado existe o mesmo problema: os bancos temem que qualquer um que necessite de liquidez esteja à beira da bancarrota. O cerne da questão reside, é claro, na assimetria de informação existente entre os dois lados dos mercados e que se traduz na dificuldade de apreçar instrumentos financeiros complexos como são os MBS ou avaliar instituições financeiras complexas como são os bancos modernos. Por outras palavras, a origem do problema reside na opacidade induzida por um excesso de complexidade (dos veículos e das instituições). Na medida em que o quadro regulatório (entendido amplamente como entidades reguladoras, agências de rating, sistemas de incentivos, práticas contabilísticas, etc., etc.) permitiu que essa opacidade medrasse pode dizer-se que é culpado pela propagação e amplificação do choque originado numa crise no pequeno segmento do crédito subprime.

 

2 e 3

Estou seguro que muitas forças, da direita à esquerda do espectro político, que nunca esconderam as suas reservas à economia de mercado, tornar-se-ão crescentemente vocais e procurarão aproveitar a situação actual para promover uma maior intervenção do Estado na economia com formas que poderão ir da maior regulação a uma vaga de nacionalizações.

Impõem-se algumas observações que apresento de forma avulsa:

 

• O simples facto de essas forças terem estado em refluxo (intelectual, comunicacional e político) durante mais de duas décadas atesta bem o grande sucesso da economia de mercado na promoção do bem-estar e na redução das desigualdades à escala global. Para isso muito contribui o funcionamento flexível dos mercados financeiros que permitiram que o capital fluísse para onde era mais valorizado e, portanto, necessário.

• A ciência económica ensina-nos que os mercados são, em certas condições, a forma mais eficiente de promover a afectação de bens e recursos entre usos competitivos. Alguém que saiba economia jamais pretenderá que os mercados livres são o mecanismo mais adequado para alcançar outros fins como sejam, por exemplo, a igualdade social ou a «defesa de centros de decisão nacionais». Alguém que saiba economia jamais pretenderá que os mercados não falham, no sentido de não conseguirem afectar os bens e recursos de forma eficiente. O caso do «problema dos limões» acima descrito constitui uma situação bem conhecida de uma «falha de mercado». Quando o mercado falha a intervenção do Estado, em princípio, justifica-se. Escreve-se «em princípio» pois a intervenção também pode falhar, ou seja, não conseguir corrigir o problema que se propunha ou, mesmo, agudizar o problema. Face a uma falha de mercado importa pois evitar a falácia de que «a galinha do vizinho é mais gorda do que a minha».

• Glosando ainda a falácia da «galinha do vizinho» importa não esquecer as lições do passado recente (pois quem o faz está condenado a repeti-lo). Nesse passado penso, por exemplo, na Inglaterra pré-Thatcher e «nacionalizada» vivendo, angustiada, o «Inverno do nosso descontentamento». E penso, acima de tudo, no Portugal da segunda metade dos anos de 1970 e nos anos de 1980 com a indústria nacionalizada e o preço da bica regulado.

• A intervenção do Estado em auxílio do sector financeiro não justifica a intervenção do Estado em qualquer outro sector (por exemplo, para proteger certos campeões nacionais). O sector financeiro é nevrálgico e tem um impacto sistémico como nenhum outro. Quando o Estado intervém salvando um banco, mais do que os seus stakeholders, está a proteger empregos e consumidores em toda a economia.

• Robert Shimer, professor em Chicago, num post colocado no blogue gregmankiw.blogspot.com, chama a atenção para um tipo de risco diferente: o modo como se lidar com a actual crise pode destruir um importante acquis intelectual e concomitante autoridade moral dos países mais industrializados relativamente ao resto do mundo, sobre o modo de enfrentar situações desta natureza e cujos preceitos estão corporizados no «Consenso de Washington». Não é possível ter dois pesos e duas medidas, um para a Argentina outro para os Estados Unidos. Reescrever as regras do jogo nesta altura pode ter um custo bem maior do que os muitos biliões gastos directamente com o salvamento das instituições financeiras.

 

Posto tudo isto, apetece responder como Dr. Livingstone, «as crónicas da minha morte são grandemente exageradas».

 

ANTÓNIO NOGUEIRA LEITE

 

1

A crise que hoje vivemos é, na sua génese, uma crise eminentemente financeira, ainda que ocorrendo num período de profundíssimas transformações económicas. Acresce que, hoje, mais do que uma crise financeira já é também uma crise económica. Temo que venha a ser lembrada como uma crise financeira que acelerou importantes transformações económicas e ajustamentos particularmente dolorosos nalgumas regiões.

Na década actual assistimos à consolidação de um conjunto de efeitos que, decorrentes da globalização da economia mundial, levaram a alterações muito importantes dos equilíbrios nos mercados de factores, matérias-primas e bens finais, com reflexos importantes e diferenciados sobre a generalidade das economias mundiais. Os impactos que a abertura ao comércio e a gradual liberalização económica produziram nas principais economias asiáticas, provocando um rápido processo de acumulação de riqueza, levaram, entre outros efeitos, ao desequilíbrio entre procura e oferta nos mercados de combustíveis, de matérias-primas e de bens agrícolas, com impactos diferenciados mas relevantes nos diferentes espaços económicos. No caso da Europa e da América do Norte, estes factos tiveram um impacto considerável, não só pela pressão colocada nos preços em geral mas outrossim pelos desequilíbrios provocados em vários mercados e, de uma forma global, pelo aumento do risco de estagflação.

Na verdade, ao longo da última década, o mundo viveu um período de acelerada transformação, com a emergência e gradual consolidação de novos actores no plano internacional, originando uma alteração muito relevante quer dos fluxos comerciais, quer dos fluxos de bens e serviços. Esta alteração, de par com a inexistência de mecanismos de coordenação das políticas monetária e cambial entre os principais blocos e, nomeadamente, envolvendo os novos actores, como a China, afectaram o desempenho das economias ocidentais que mais directamente concorriam e concorrem com as novas economias emergentes. Assim, a crise financeira, originada nos Estados Unidos e com sintomas visíveis e muito explícitos desde, pelo menos, a Primavera de 2007, veio encontrar as economias ocidentais num período de razoável pressão, acentuando os desequilíbrios estruturais de algumas delas e, sobretudo, evidenciando de forma inequívoca a alteração profunda em que a economia mundial se encontrava e encontra. Acontece, todavia, que a crise financeira tem origens próprias, perfeitamente ortogonais à pressão que a mundialização tem colocado sobre as economias ocidentais – e, mormente, sobre as menos complementares com as novas potências emergentes –, mas vem claramente agravar o cenário de pressão em que se tem vivido nos últimos anos.

A crise financeira actual teve a sua origem num conjunto de factores fáceis de enumerar, mas cujo contributo relativo não é ainda claro. Como é hoje adquirido tudo começou com a degradação efectiva das práticas de risco de crédito (credit rating) no mercado hipotecário dos Estados Unidos. Num período de taxas de juro historicamente baixas assistiu-se à actuação conjunta e muitas vezes concertada de intermediários financeiros e imobiliários no sentido de atraírem um cada vez maior grupo de agentes a investir em imóveis. O grupo, nomeadamente nos Estados Unidos, alargou-se de tal sorte e as práticas para os atrair evoluíram de tal modo que surgiram, em número e importância crescentes, as hipotecas subprime.

Estas eram, essencialmente, mútuos hipotecários de alto risco e de taxa variável concedidos às famílias mais desfavorecidas, sem rendimento nem património que pudessem minimamente garantir as responsabilidades assumidas, e através de procedimentos que em muito se afastavam dos métodos tradicionais de credit scoring das instituições financeiras. Em suma, indivíduos que tipicamente não teriam tido acesso a crédito hipotecário, passaram a aceder facilmente aquele, ainda que não oferecendo nem perspectivas de rendimento nem outras garantias que assegurassem de forma satisfatória uma perspectiva razoável de cumprimento dos compromissos mutuários assumidos.

O crescimento destes créditos nos balanços de muitos bancos levou a que estes os securitizassem (isto é, convertessem responsabilidades de terceiros em liquidez por via da colocação em mercado de produtos transformados desses mútuos originais) via criação de derivados financeiros negociáveis que foram de seguida colocados no mercado e tomados por outras instituições como, nomeadamente, outros bancos, fundos de investimento e companhias de seguros, nos Estados Unidos e um pouco por todo os mundo. Ainda que assentes em activos de valor duvidoso (os créditos subprime), estes activos derivados foram, em regra, objecto de notação máxima pelas companhias de rating e subsequentemente transaccionados com base nessa notação.

Enquanto as taxas de juro permaneceram baixas, a economia cresceu e, sobretudo, o mercado imobiliário manteve uma tendência ascendente, o sistema evoluiu sem sobressaltos, não evidenciando os problemas que mais tarde se revelariam fatais. No entanto, à medida que o tempo passava o risco potencial aumentava inexoravelmente. Infelizmente, os piores estados da natureza materializaram-se de seguida e o potencial risco resultou em perda. Na verdade, os primeiros problemas surgiram logo em 2005 quando a Reserva Federal aumentou a taxa de juros para tentar reduzir a inflação. Logo aí, o preço dos imóveis caiu, tornando impossível o seu refinanciamento para os clientes de baixo rendimento, que foram gradualmente revelando a sua incapacidade para fazer face às obrigações assumidas. Este default acabou por afectar os derivados resultantes da securitização dos créditos originais e, a partir de Agosto de 2007, criaram um problema generalizado no sector financeiro afectando as instituições originalmente envolvidas e todas aquelas que foram incluindo na sua carteira os produtos derivados e, sequencialmente, acções das instituições afectadas, activos constituídos sobre elas, etc., num efeito dominó de proporções globais. A estes efeitos de primeira e segunda ordem juntaram-se, já em 2008, os resultantes da falta de confiança generalizada na robustez das instituições financeiras, entretanto gerada.

É claro que o modelo de regulação não funcionou adequadamente ao deixar fora da área regulada actividades que o deveriam ter sido. Mais do que isso, nalguns casos falhou mesmo a própria actividade de regulação e supervisão, não só a regulação prudencial da banca como a própria regulação dos mercados. Embora não seja sequer imaginável que a regulação será sempre eficaz uma vez que mesmo com modelos perfeitos e actuações impecáveis resultariam sempre os problemas atinentes à assimetria de informação entre reguladores e regulados, esta crise deixa clara a necessidade de se repensar, melhorando, o modelo de supervisão e regulação financeira global.

Porém, uma análise destes eventos que se centre excessivamente nas dificuldades da regulação será sempre uma análise incompleta e insuficiente. Na verdade, para além da inesperada prevalência de comportamentos delinquentes, o facto é que os modelos de governo das sociedades e sobretudo a forma como esse governo foi exercido pelos órgãos de supervisão e controle societário não podem, muito pelo contrário, ser excluídos de uma qualquer explicação razoável para o que aconteceu.

De facto, a crise financeira teve várias origens com pesos relativos ainda incipientemente aferidos. Na verdade, ainda que não sendo a causa última das idiossincrasias actuais, muitos dos problemas que cerceiam o regular funcionamento dos mercados financeiros emanam de um mau exercício da função accionista em muitas instituições e também de uma sustentada dissonância entre os interesses dos accionistas e os propósitos dos gestores. Esta discrepância, natural quando aquelas entidades não coincidem, tem revelado uma enorme resiliência mesmo quando se aplicam as melhores práticas tendentes a alinhar objectivos naturalmente não coincidentes. Trata-se de um assunto a que os economistas têm dedicado grande atenção, sobretudo ao longo dos últimos quarenta anos, produzindo uma vasta literatura e algumas recomendações de clara relevância prática[2].

Este tema, em especial, ganhou particular relevância após os escândalos financeiros do início da década, onde ficou claro que não só não era líquido que os gestores envolvidos estivessem alinhados com os seus accionistas, não prosseguindo estratégias e práticas tendentes à maximização do valor das empresas que geriam, como, por outro lado, era infelizmente clara a inadequação das respectivas qualificações ético-morais. Assim, em boa parte da década actual assistimos à reacção habitual após os desmandos e os escândalos: os legisladores legislaram, os reguladores pediram, e em muitos casos obtiveram, mais poder e criou-se um verdadeiro mercado de conhecimento em governo societário, onde participaram académicos, consultores e todo um exército de autoproclamados «bons exemplos».

Acontece, porém, que na maior parte dos países, melhorou muito a forma, criaram-se excelentes novas regras de bom governo, publicaram-se inúmeros rankings sobre os bons e os menos bons praticantes, mas não mudou o essencial: a atitude manteve-se a mesma. De facto, tanto na Europa como nos Estados Unidos, a par da melhoria formal, prevaleceu uma grande dificuldade de alinhamento entre a gestão executiva e os accionistas, mormente quando estes (como acontecia e acontece mais frequentemente nos países anglo-saxónicos) são muitos e individualmente pouco representativos. Na verdade, se as comissões de auditoria forem complacentes, se os administradores independentes forem escolhidos sobretudo pelo seu carácter pacífico e acomodado, pode criar-se o pior dos mundos. Isto é, se tudo estiver bem no papel e nada tiver mudado na substância – como muitas vezes, certamente, aconteceu – os accionistas não só não alinham os interesses dos gestores com os seus como gastam muito dinheiro inútil. O governo das empresas pode até parecer bom, mas não o será.

Infelizmente, são hoje conhecidos múltiplos casos em que o mau governo societário se traduziu num péssimo alinhamento entre os interesses dos accionistas e as gestões executivas, com prejuízos finais para aqueles. Os exemplos conhecidos reportam-se tanto aos Estados Unidos quanto à Europa, tanto a empresas cotadas quanto a empresas mesmo de capitais públicos[3].

 

2

Há bastante tempo que muitos académicos e responsáveis políticos e empresariais têm vindo a referir a inadequação da arquitectura internacional de regulação financeira e económica a um mundo muito diferente daquele em que se instituíram as instituições que ainda hoje prevalecem. Na verdade, mesmo antes da actual crise, eram várias as vozes que apontavam a existência de novas áreas sobre as quais não incide qualquer escrutínio regulatório ou supervisão, a inadequada representatividade dos diversos interesses em alguns dos fora políticos em que as relações económicas internacionais são abordadas e a necessidade de rever a agenda e os métodos de instituições criadas nos anos 40 do século passado. Por outro lado, a diversidade dos aparatos regulatórios nacionais num mundo interligado e, mais do que isso, em certos sectores, como o financeiro, perfeitamente integrado e globalizado, coloca novas questões sobre as quais não há ainda consenso nem, porventura, pensamento suficiente.

A crise e as insuficiências hoje patentes tornaram por demais evidente a necessidade de recolocar entre as prioridades da governação económica colectiva de um mundo global a necessidade de proceder a uma verdadeira reforma do sistema de regulação económica internacional.

O sistema de regulação financeira internacional, porventura na prática reduzido a um arremedo de sistema de coordenação de políticas financeiras dos estados, adequado no pós-Bretton Woods deverá ser hoje, no mínimo, objecto de apurado escrutínio. Acredito que, mais que uma revisão e mera afinação pontual do sistema que hoje prevalece, as iniciativas em curso envolvendo a UE e os Estados Unidos, deverão conduzir à redefinição do papel do FMI e do Banco Mundial e do próprio BIS.

Se bem que o novo sistema deva cobrir áreas anteriormente não reguladas, nomeadamente levando os países a eliminar eventuais áreas não reguladas nos seus enquadramentos internos em situações em que se justifique regulação ou supervisão (e.g., como é o caso de muitas actividades prosseguidas pela banca de investimentos nos Estados Unidos), não se deve cair na punção habitual nestas ocasiões de criar um sistema espartilhado e sobre-regulado. O perigo de overshooting – aliás bem patente em alguns excessos da claramente excessiva e inoperante lei Sarbannes-Oaxleytem sido uma tentação em que muitos têm caído sempre que os factos revelaram situações de inoperância ou insuficiência do enquadramento legal e operacional até então vigente.

Uma nota final no que respeita à coordenação das políticas económicas: como acima se referiu, o papel de algumas das instituições internacionais saídas de Bretton Woods terá se ser adaptado à nova realidade, várias décadas volvidas, sendo também claro que a criação de fora onde se sentem as grandes economias de hoje e não apenas os originais G7 é imperiosa sob pena de acentuarem a inoperância já hoje revelada.

 

3

De forma alguma. A situação que vivemos e que, estou certo, atingirá momentos de grande dramatismo em, pelo menos, 2009, não corresponde ao canto do cisne da escola marginalista (originada ainda no século XIX), que tem assumido um papel absolutamente dominante na evolução do pensamento económico durante praticamente todo o século XX e início do século XXI, sobrepondo-se às demais escolas de pensamento económico.

Ao contrário do marxismo e suas decorrências, a análise económica actualmente dominante (no Ocidente e no mundo) coloca no centro da análise as necessidades humanas e a forma como os indivíduos as procuram satisfazer, acarretando uma (há cento e cinquenta anos) nova teoria do valor que rompeu com a teoria do valor-trabalho dos marxistas segundo a qual o valor dos bens é medido pelo trabalho.

Esta diferença essencial, plasmada em toda a evolução da teoria marginalista (desde Stanley Jevons ou Leon Walras), apontou explicações próprias e distintas dos modelos socialistas para (praticamente) todas as variáveis económicas, como o valor, o capital e o juro, a formação dos preços e dos custos, a produção e o produto, o trabalho, a utilidade dos agentes económicos. Não me parece, muito pelo contrário, que neste campo essencial algo se tenha a aprender com a actual crise que desvalorize os trabalhos dos autores atrás citados ou de outros que se lhes seguiram como Pareto, Marshall, Menger ou, do meu ponto de vista, Frederich Hayek.

Isto é, nada me leva a pensar que se esteja na antecâmara de uma nova escola. Nem mesmo no que respeita ao papel do Estado. De facto, o debate tem estado inquinado pela velha táctica trotskista de combater o adversário ideológico atribuindo-lhe as proposições mais convenientes independentemente do que ele possa ter dito. Em concreto, tal tem sido frequentemente o caso em dois aspectos essenciais: o papel da regulação económica e os mecanismos de estímulo das economias no curto prazo.

No que respeita à regulação económica convém não esquecer que ela surgiu, na forma como hoje a conhecemos, nos países anglo-saxónicos como forma de fazer aproximar do paradigma concorrencial situações que seriam naturalmente dele afastadas caso o mercado funcionasse livremente. A regulação das falhas de mercado através de mecanismos variados assume hoje um papel relevante em muitos mercados mesmo naqueles, como é o caso da Europa Ocidental, onde originalmente as falhas de mercado eram resolvidas via detenção pública do capital das entidades intervenientes no pressuposto – empiricamente contestado – de que entidades públicas se auto-regulariam reproduzindo endogenamente o óptimo social. Não houve, ao contrário, qualquer linha de pensamento minimamente relevante dentro da corrente neoclássica hoje dominante nas escolas norte-americanas e europeias que justificasse qualquer preconceito quanto à intervenção colectiva – via regulação – quando o mercado falhasse. Do mesmo modo que ninguém relevante nunca defendeu o princípio da infalibilidade do mercado que alguns opinion makers actuais tentam abusivamente colar a parte da escola neoclássica a que abusivamente chamam neoliberal.

Por outro lado, convém repetir que a generalidade dos economistas sempre reconheceu que o estímulo da procura agregada via investimento público ou redução da fiscalidade atinge objectivos de estabilização económica com relativa eficácia no curto prazo. Ou seja, a linha divisória nunca se colocou entre os que acreditaram na proposição acima – os keynesianos – e os que a rejeitaram – os monetaristas. Esta categorização das posições dos economistas só pode derivar da profunda ignorância sobre os aspectos mais conhecidos da história do pensamento económico do século XX. De facto, a questão de fundo não é essa e, quanto a mim, não deverá ser esquecida: podemos estimular a economia no curto prazo com investimento público mas não poderemos pensar em criar a prazo prosperidade e bem-estar abusando desta receita. A crise ainda não desmentiu e aposto que não desmentirá a visão ainda hoje consensual entre economistas preparados de que uma longa overdose de investimentos públicos matará qualquer economia.

 

[1] Tal como não tem, num outro plano, a emissão de notas de elevado montante por parte dos bancos centrais responsáveis por moedas de reserva internacional. Tais denominações, num mundo electronizado e de fácil movimentação de dinheiro escritural, servem apenas para fomentar transacções ilegais, onde o anonimato dos participantes é essencial. O mesmo se passa com os off-shores, que apenas servem para permitir realizar transacções ilegais (incluindo a evasão fiscal) nos países de origem dos fundos transaccionados.

[2] Destacam-se aqui, nomeadamente, os contributos da chamada managerial theory of the firm. Cf. PUTTERMAN, L. (ed.) – Economic Nature of the Firm. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.        [ Links ]

[3] Por exemplo, os bancos estaduais dos Länder alemães.

 

* Economista. Presidente da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social. Autor de Os Estados Nacionais e a Economia Global (2004).

** Director da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. Doutorado em Economia pela Universidade de Illinois (Urbana-Champaign).

*** Economista. Professor catedrático na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. Membro da Direcção do IPRI – UNL.