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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.21 Lisboa mar. 2009

 

A Turquia e a ilusão do Médio Oriente

André Barrinha *

 

Com base na teoria dos complexos regionais de segurança da Escola de Copenhaga discutimos as causas imediatas e as consequências da política turca face ao conflito israelo-palestiniano, bem como apresentamos as mudanças de política externa face ao Médio Oriente ocorridas desde a eleição do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento) de Recep Tayyip Erdogan em 2002. Posteriormente, ocupamo-nos do comportamento da Turquia face à actual crise de Gaza e, por fim, analisamos as possíveis causas e consequências da potencial inflexão da política externa turca face ao Médio Oriente.

Palavras-chave: complexos regionais da Escola de Copenhaga, Turquia, Médio Oriente, conflito na Faixa de Gaza

 

Turkey and the Middle East illusion

Taking as a starting point the Copenhagen School’s theory of regional complexes, this article debates the immediate causes and consequences of the Turkish policy to the Israel-Palestine conflict, and the changes that occurred on the Turkish foreign policy for the Middle East since the AKP (Justice and Development Party) of Recep Tayyip Erdogan was elected in 2002. Furthermore it will reflect on Turkey’s behavior on what concerns the present Gaza crisis and on the causes and consequences of the potential transformation on the Turkish foreign policy for the Middle East.

Keywords: regional complexes Copenhagen School, Turkey, Middle East, Gaza Strip conflict

 

 

Independentemente do que se venha a passar nos restantes meses de 2009, a saída abrupta do primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdoğan de um painel sobre a paz no Médio Oriente durante o Fórum Económico Mundial ficará certamente como uma das imagens políticas do ano. Contudo, tal gesto mais não foi do que o corolário de uma atitude extremamente crítica por parte de Ancara relativamente a Israel, desde que este iniciou os ataques aéreos às posições do Hamas no final de Dezembro de 2008.

Neste artigo, serão discutidas as causas imediatas e os antecedentes de tal política por parte da Turquia face ao conflito israelo-palestiniano, assim como as suas eventuais consequências. Começaremos por explicar a teoria dos complexos regionais de segurança da Escola de Copenhaga, mostrando como a Turquia se situa entre vários complexos, sem que no entanto faça verdadeiramente parte de nenhum deles. Posteriormente serão analisadas, ainda que resumidamente, as mudanças de política externa face ao Médio Oriente ocorridas desde a eleição do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento) de Recep Tayyip Erdoğan em 2002. O comportamento da Turquia face à actual crise de Gaza ocupará a terceira parte deste artigo, deixando, para uma parte final, a análise das possíveis causas e consequências desta potencial inflexão da política externa turca face ao Médio Oriente, ainda no contexto da teoria dos complexos regionais de segurança.

 

A TURQUIA E OS COMPLEXOS REGIONAIS DE SEGURANÇA

A Turquia é, de acordo com a Escola de Copenhaga, um insulator, na medida em que ocupa, no quadro dos complexos regionais de segurança, um lugar entre mais do que um complexo regional, sem que no entanto pertença a nenhum deles[1]. A principal diferença entre um insulator e um Estado tampão é que enquanto este último se situa num espaço divisor de tensões, o insulator posiciona-se nas margens desses mesmos espaços[2]. A Turquia, por exemplo, situa-se nos limites de três complexos regionais de segurança: o complexo do Médio Oriente (que inclui os subcomplexos do Levante, do Golfo e do Magrebe); o complexo do ex-mundo soviético (incluindo o Báltico, a Ucrânia, a Bielorrússia e a Moldova); e o complexo europeu (com o subcomplexo balcânico).

A principal diferença entre a Turquia e outros insulators identificados pela Escola de Copenhaga (como o Nepal, Burma e o Afeganistão), reside na sua atitude activa no que diz respeito ao seu envolvimento regional. Como ex-centro do Império Otomano, a Turquia mantém laços culturais e afectivos com diferentes partes do ex-império. O papel activo que tem desempenhado nos Balcãs, assim como os problemas com a Grécia, tanto relativamente a Chipre como às ilhas do mar Egeu, são disso um claro exemplo. Contudo, em relação ao Médio Oriente a Turquia tem sido sempre menos interventiva. Com a excepção de relacionamentos ditados pelo problema curdo, a Turquia tem sido, por regra, cautelosa no que diz respeito à região: um certo distanciamento em relação ao mundo árabe (que, em certa medida, ainda vê a Turquia como ex-potência colonial) e uma relação estratégica com Israel, sobretudo após a assinatura dos Acordos de Oslo em 1993.

As visitas a Israel da primeira-ministra Tansu Çiller, em 1994, e do Presidente Süleyman Demirel, em 1996, intensificaram as relações entre estes dois países, pois nunca até então tinha um chefe de Estado ou de Governo turco visitado Israel[3]. Em Fevereiro de 1996, a aproximação entre a Turquia e Israel levou à assinatura de um acordo de cooperação militar entre os dois países, tendo provocado ondas de choque por todo o mundo muçulmano, particularmente no Egipto, na Síria, no Iraque e no Irão[4].

Em geral, a opção de Ancara denuncia a intenção de limitar o relacionamento ao mínimo necessário com os restantes países da região; contudo, nos últimos anos, tal atitude tem vindo a conhecer alterações, particularmente desde a subida ao poder do AKP no final de 2002.

 

A SUBIDA AO PODER DO AKP E O RETORNO

DA IRMANDADE MUÇULMANA

Assente numa base eleitoral fortemente ligada aos valores islâmicos, o partido liderado por Recep Tayyip Erdoğan retomou, de certa forma, o discurso do antigo Partido Refah, liderado por Necmettin Erbakan de Maio de 1996 a Junho de 1997, ano em que viria a ser destituído pelo que ficaria conhecido como o golpe militar «pós-moderno». Durante esse período, a Turquia passou a ter um discurso sobre o Médio Oriente definido enquanto espaço de irmandade muçulmana e não tanto sobre um ponto de vista de espaço geopolítico, tendo Erbakan recebido e visitado vários líderes políticos de países muçulmanos, alguns deles com relações problemáticas com os aliados ocidentais da Turquia (como a Líbia e o Irão). O então primeiro-ministro turco chegou, inclusive, a sugerir a criação de uma NATO muçulmana, algo que foi recebido com horror em certos círculos na Turquia e entre os próprios membros da NATO.

Se Erbakan, com um discurso menos suave que o do actual Governo, não dispôs do tempo necessário para pôr as suas ideias em prática, o Governo de Tayyip Erdoğan, a cumprir o segundo mandato, tem vindo paulatinamente a consolidar uma ideia diferente quanto ao relacionamento entre o Médio Oriente e a Turquia. Em 2004, Erdoğan recusou um convite de Ariel Sharon para visitar Israel, optando por visitar Damasco no final desse mesmo ano – isto depois de ter recusado um segundo convite israelita[5] e de ter considerado os assassinatos dos líderes do Hamas – Sheikh Ahmed Yassin e Abdul Aziz Rantisi – como «terrorismo de Estado»[6]. Em 2006, em mais um gesto de irreverência para com Israel, Ancara recebeu uma delegação do Hamas, liderada por Khaled Meshaal, provocando uma grande controvérsia tanto na Turquia como junto dos seus aliados ocidentais[7].

Contudo, apesar de uma forte atitude crítica face às acções de Israel, a Turquia tem chamado a si o papel de mediador na região. Durante a crise no Líbano, no Verão de 2006, a Turquia esteve na frente diplomática que tentou acabar com os ataques entre o Hezbollah e Israel, tendo mantido um papel conciliador desde então. Desde Abril de 2008 até ao fim do cessar-fogo por parte do Hamas em Dezembro, a Turquia esteve novamente envolvida em movimentações diplomáticas com o fim de aproximar a Síria de Israel. Em boa verdade, de acordo com a entrevista concedida pelo primeiro-ministro turco à revista Newsweek, a Turquia esteve perto de colocar a Síria e Israel frente a frente. O facto de se ter estado tão perto de um importante passo na estabilização do Médio Oriente – fracassado pela quebra do cessar-fogo por parte do Hamas e pela feroz resposta de Israel – deixou Erdoğan bastante indignado.

Os ataques à Faixa de Gaza quatro dias depois de o primeiro-ministro israelita ter visitado Ancara fizeram azedar de forma considerável as relações entre os dois países. Apesar de a Turquia ter voltado a assumir a mesma atitude de pacificadora da região que tinha exibido no Líbano, agora mantinha paralelamente um discurso consistentemente mais crítico de Israel. Terá tal atitude sido somente uma resposta à violência dos ataques israelitas ou será algo mais do que isso?

 

A TURQUIA ZANGADA COM ISRAEL

A recente invasão de Gaza conduziu a um levantar do tom de voz por parte de Ancara. Tayyip Erdoğan tem utilizado palavras duras para com Israel, dizendo, por exemplo, que a Turquia foi «desrespeitada» por Olmert, em primeiro lugar, por este ter omitido durante a sua visita a Ancara a iminência dos ataques à Faixa de Gaza e, em segundo, pela forma «sem piedade» com que Israel conduziu os ataques, numa altura em que a Turquia estava a utilizar todos os meios possíveis para garantir a paz na região[8]. Em relação aos ataques levados a cabo na Faixa de Gaza, apelidou-os em diferentes ocasiões de «desumanos»[9] e de «crime humanitário»[10], sublinhando a «brutalidade» e «crueldade» dos mesmos.

Em paralelo com esta retórica bastante repreensiva, Ancara não deixou de liderar uma intensa actividade diplomática com o objectivo de garantir um cessar-fogo na região. Diplomatas, enviados especiais e membros do Governo deslocaram-se aos quatro cantos do Médio Oriente, numa tentativa de obter algum consenso entre as várias partes envolvidas no processo. O próprio primeiro-ministro turco iniciou o ano num périplo pelo Médio Oriente, visitando Damasco, Amã, o Cairo e Riade. Como Ahmet Davutoğlu, enviado da Turquia ao Médio Oriente, fez questão de realçar, a Turquia era o único país que mantinha relações com todas as partes envolvidas no conflito – Hamas, Israel, Egipto, Síria e Fatah[11].

Para além de uma intensa actividade bilateral, a Turquia esteve igualmente empenhada no âmbito multilateral, por um lado, aproveitando a sua recente posição no Conselho de Segurança para fazer pressão junto dos restantes membros no sentido de estes adoptarem uma atitude face ao conflito; por outro, organizando e participando em diferentes fóruns internacionais, como a reunião extraordinária da Organização da Conferência Islâmica que teve lugar em Istambul.

O cessar-fogo entre Israel e o Hamas viria a ser alcançado a 17 de Janeiro, com Israel a retirar-se da Faixa de Gaza sob fortes críticas da comunidade internacional. Para Ahmet Davutoğlu, conselheiro do primeiro-ministro turco para as relações internacionais e enviado especial à região, não teria havido cessar-fogo sem o contributo essencial da Turquia[12].

 

CONCLUSÃO

Depois do conturbado período político vivido na Turquia no Verão passado, que levaria à realização de eleições antecipadas e à escolha de um novo Presidente – o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Abdullah Gül –, a Turquia está agora em novo período eleitoral, desta feita para a realização de eleições municipais no final de Março. Dentro deste contexto, todos os partidos estão claramente em período eleitoral, alguns deles tomando medidas algo surpreendentes. O passo mais significativo foi dado pelo principal partido da oposição, o kemalista Partido Republicano do Povo (CHP), que decidiu aceitar no partido mulheres que usem o véu islâmico, algo impensável até há bem pouco tempo. A integração de mulheres que usem regularmente o véu islâmico no CHP é significativo, na medida em que comprova que a ideia de uma Turquia mais «religiosa» não é totalmente despicienda. Mostra também que a base eleitoral do AKP começa a ser disputada pelos partidos da oposição, o que obriga o Partido da Justiça e do Desenvolvimento a procurar o alargamento dessa base ou o seu reforço. Toda a recente retórica assumida pela Turquia face a Israel parece dirigir-se nesse segundo sentido.

A questão que se coloca é então a de estar ou não a Turquia realmente a alterar a sua política externa de forma estrutural, passando a ser um insulator cada vez mais activo na região. Vários são os factores que nos indicam estarmos perante algo de estrutural. Em primeiro lugar, o tom crítico do actual Governo é apoiado pela esmagadora maioria da população turca, assim como pelos partidos da oposição e até, de certa forma, pelas elites militares. Tanto Deniz Baykal, líder do CHP, como Devlet Bahçeli, líder do nacionalista Partido do Movimento Nacionalista (MHP), criticaram por várias vezes nas últimas semanas o Governo por não ter sido crítico o suficiente em relação a Israel[13]. Para além do mais, as conclusões da última reunião do Conselho de Segurança Nacional (anterior ao cessar-fogo) foram igualmente bastante duras para com Israel, mostrando preocupação com a situação no terreno e apelando ao cessar-fogo e ao levantar do embargo à região[14].

Em segundo lugar, apesar da relação estratégica com Israel, a Turquia foi, no que diz respeito à Palestina, sempre bastante crítica da atitude israelita. Por várias vezes os dois países estiveram à beira da ruptura de relacionamento, com mútuas ameaças (nunca concretizadas) de retirada de representação diplomática. Ainda em 2002, por exemplo, aquando da operação israelita em Jenin, o então primeiro-ministro Bülent Ecevit, membro do CHP, classificou a operação de «genocídio»[15] por parte de Israel, mostrando que o actual discurso agressivo de Ancara não é nada de muito novo.

Por fim, a Turquia parece finalmente interessada em fazer jus à fama de ponte entre Ocidente e Oriente. O papel assumido em todo este processo por parte da Turquia foi distinguido por Javier Solana, que não deixou de felicitar Ancara pelos esforços desencadeados no sentido de alcançar um cessar-fogo[16]. Para Ahmet Davutoğlu, parece claro o perfil da política externa turca no futuro próximo: «A UE é a nossa prioridade, sim. Mas isso não significa que possamos ignorar o Médio Oriente, o Cáucaso e os Balcãs. A Turquia tem de ser activa em várias direcções ao mesmo tempo.»[17]

Mas que significa tudo isto em termos do futuro posicionamento da Turquia? De acordo com a teoria dos complexos regionais de segurança, a posição de um insulator é algo ingrata, na medida em que acaba por ser afectado pelas dinâmicas de segurança de vários complexos sem que neles possa intervir de forma estrutural. Isto é, qualquer intervenção da Turquia no Médio Oriente não deixará de ser exactamente isso, uma intervenção. A região possui dinâmicas de segurança exteriores à esfera de influência turca, que fazem que esta não possa pertencer tout court à região. Pode a Turquia então forçar a sua entrada de forma permanente nas dinâmicas do complexo regional do Médio Oriente, mantendo ao mesmo tempo a União Europeia como objectivo principal? Dificilmente.

Talvez por isso, a Turquia tem cumprido exemplarmente o seu papel de outsider na região, mesmo quando parece actuar como se dela fizesse parte. O duplo processo de crítica cerrada e de gestos simbólicos, por um lado, e de manutenção de relações estratégicas, por outro – os contratos milionários entre a Turquia e Israel, por exemplo, não aparentam, apesar de toda a tensão entre os dois países, estar em risco –, parece, com efeito, ser o modus operandi da Turquia na região. Em boa verdade, é o papel de outsider que permite à Turquia continuar a promover o seu papel de mediador na região. Assim sendo, a resposta à intensidade das críticas de Ancara a Israel pode estar mais ligada às actuais dinâmicas de política interna do que a uma mudança estrutural em termos de política externa. Contudo, importa saber até quando pode a Turquia continuar a agir de forma tão visível na região sem pôr em causa esse mesmo estatuto e, em consequência, o seu posicionamento de insulator no mapa geopolítico. De acordo com a teoria dos complexos regionais de segurança, não é possível fazer, ao mesmo tempo, parte de dois complexos regionais, pelo que uma Turquia no Médio Oriente parece ser inevitavelmente uma Turquia fora da Europa.

 

 

[1] BUZAN, Barry, e WÆVER, Ole – Regions and Powers. The Structure of International Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 41.        [ Links ]

[2] Ibidem, p. 41.

[3] KIRISCI, Kemal – «The future of Turkish policy towards the Middle East». In RUBIN, Barry, e KIRISCI, Kemal – Turkey in World Politics. An Emerging Multiregional Power. Istambul: Bogaziçi University Press, 2002, p. 133.

[4] Ibidem.

[5] Erdoğan acabaria por visitar Israel em 2005.

[6] KIRISCI, Kemal – Turkey’s Foreign Policy in Turbulent Times. Chaillot Paper n.º 92, EU-ISS, 2006, p. 63.

[7] Ibidem, p. 62

[8] TODAY’S ZAMAN – «Erdogan seeks to mobilize Arab states for Gaza truce», 1 de Janeiro de 2009.

[9] HAARETZ – «Turkey wants international monitors to  ensure Gaza truce», 5 de Janeiro de 2009.

[10] DISLI, Fatma – «Erdogan’s discourse on Gaza tragedy». In Today’s Zaman, 8 de Janeiro de 2009.

[11] HURRIYET DAILY NEWS – «Turkey ready for monitoring mission on Gaza-government official», 15 de Janeiro de 2009.

[12] Today’s Zaman, 20 de Janeiro de 2009.

[13] HURRIYET DAILY NEWS – «Turkey contributed to peace efforts for Gaza ceasefire: EU’s Solana», 7 de Janeiro de 2009.

[14] ARAS, Bülent – «Turkey and the Palestinian question». In Today’s Zaman, 19 de Janeiro de 2009.

[15] Ibidem.

[16] ÖZERKAN, Fulya – «Show of Israeli faith despite setbacks after crisis in Gaza». In Hürriyet, 8 de Janeiro de 2009.

[17] ARAS, Bülent – «Turkey and the Palestinian question».

 

* Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Kent (Reino Unido).