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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.21 Lisboa mar. 2009

 

Os caminhos da NATO. O que foi, o que é, o que deve ser

António José Telo [1]

 

As visões americana e europeia quanto aos objectivos da NATO são distintas desde a sua formação em 1949. A revisão do conceito estratégico da NATO em 1991 e 1999 e o documento aprovado em 2006 demonstram os ajustamentos que a organização teve que fazer face às alterações ocorridas no sistema internacional. Ao avaliar a evolução da nato nos últimos sessenta anos conclui-se que a Aliança deve transformar-se numa organização política, motor de um entendimento privilegiado entre a Europa e a América.

Palavras-chave: NATO, União Europeia, Estados Unidos, relações transatlânticas

 

NATO’s paths – what it has been, what it is and what will be

The American and European visions of the main goals of NATO are distinctive since its formation in 1949. The revision of the strategic concept in 1991 and 1999, and the document of 2006 show us the adjustments that the organization has had to make facing the changes in the international system. The evaluation of NATO’s tendency through the last sixty years allows concluding that NATO should grow to a political organization, support of a privileged understanding between Europe and America.

Keywords: NATO, European Union, United States, transatlantic relations

 

 

O QUE FOI

É normal dizer-se que a NATO é uma organização político-militar, querendo com isto sublinhar-se que ela é fundamentalmente política. Na realidade, outra acepção não seria possível, pois não se compreende que o uso militar da força não esteja subordinado a uma política. Este entendimento seria válido em qualquer circunstância de composição, mas é particularmente importante tendo em conta que os membros actuais da NATO são todos democracias pluralistas de tipo ocidental – o que não era o caso quando da sua fundação.

A dúvida pode estar somente em saber a que política obedece a NATO e a resposta não é simples. Uma primeira constatação é que tem obedecido, não a uma política central única, mas sim à conjugação de múltiplas políticas, ao ponto de encontro flexível da anulação de políticas sempre divergentes, quando não contraditórias. Uma segunda constatação é que a política oficial raramente é a real, ou, dito de outro modo, as reais intenções e objectivos dos seus membros raramente podem ser expressos com todas as letras em documentos públicos.

Para compreender melhor estas duas constatações, vou utilizar como exemplo a situação quando da formação da NATO, em 1949. Nesta altura, a visão estratégica global dos Estados Unidos era expressa sobretudo pelas análises do National Security Council (NSC), que apontavam para uma realidade perturbadora: desenhava-se uma rivalidade global incontornável com a URSS e eram possíveis dois cenários. O primeiro, partia do princípio que os Estados Unidos conseguiam manter no seu sistema de alianças três dos quatro centros industriais e tecnológicos do planeta (os quatro centros eram os próprios Estados Unidos, a URSS, a Europa Ocidental e o Japão), o que significava que o tempo jogava a seu favor; o segundo cenário, considerava a possibilidade de a Europa Ocidental cair total ou parcialmente para o lado soviético, o que significava que o tempo estaria contra os Estados Unidos, ou seja, que o peso relativo dos pratos da balança se iria inclinar com o tempo para o lado soviético.

É bom recordar que, nesta altura, não era claro como iriam evoluir os principais estados da Europa Ocidental. O continente estava em crise, sofria ainda os efeitos da devastação da guerra, os partidos comunistas eram a segunda força mais votada na França e na Itália, o Exército soviético estava em Viena, Berlim e Praga, e a Alemanha não existia.

A conclusão do NSC era que, caso o primeiro cenário se concretizasse, os Estados Unidos deviam apostar numa estratégia de longo prazo no conflito com a URSS, pois o tempo acabaria por jogar a seu favor; caso o segundo cenário se concretizasse, então os Estados Unidos deviam provocar a guerra de imediato, de modo a aproveitar as grandes vantagens relativas (nomeadamente o monopólio do arsenal nuclear) antes destas desaparecem (o que viria a acontecer dentro em breve). Tudo dependia, em resumo, da Europa Ocidental continental e de saber para que lado se iam inclinar a França e a Itália, pois ninguém duvidava da posição do Reino Unido. Disto dependia igualmente o futuro da Alemanha.

A resposta americana foi digna da dimensão do desafio. A primeira opção foi a de apostar tudo numa estratégia de longo prazo e só caso esta falhasse por completo adoptar a alternativa. A segunda, foi a de lançar três gigantescos programas para trazer a Europa Ocidental para o seu sistema de alianças: o primeiro foi o Plano Marshall, que visava reorganizar a economia global favorecendo a recuperação europeia e o comércio atlântico, algo essencial para a economia americana ultrapassar a estagnação por falta de exportações que enfrentava; o segundo foi um plano multifacetado centrado na esfera política que visava refazer o tecido político europeu e, em particular, o alemão, favorecendo o crescimento dos partidos e organizações democráticos. Os resultados destes dois projectos, um público e divulgado pela propaganda, outro discreto e oficialmente inexistente, excederam as expectativas: o «milagre económico europeu» arrancou, as democracias cristãs tornam-se os partidos dominantes da Alemanha e da Itália, os partidos comunistas tradicionais recuam em todos os campos, inclusive no domínio do movimento sindical, não tardando a surgir o «eurocomunismo» e a Europa não ocupada pelo Exército soviético envereda de forma clara pelo caminho do crescimento económico acelerado e da democracia tipo ocidental.

A NATO foi o fecho da abóbada desta grande estratégia, o terceiro programa, que completava os outros dois e lhes dava a conclusão lógica. O seu principal objectivo na visão americana era o de ancorar militarmente a Europa no bloco ocidental, transformando as forças armadas da Europa no processo. Isto passava por uma imensa «americanização» das forças armadas europeias, com um gigantesco programa de «ajuda militar», que servia igualmente para favorecer o arranque da indústria pesada europeia. O projecto foi extremamente bem-sucedido: em poucos anos as forças armadas europeias adoptam no essencial o figurino americano, aceitam a lógica de subordinação ao poder político das democracias, isolam os núcleos radicais no seu seio e passam a funcionar com as técnicas, armamento, métodos, práticas e, em larga medida, mentalidades americanos.

A alavanca que justificava todo o processo era a necessidade de provocar um crescimento dos efectivos militares que compensasse a superioridade evidente soviética em forças convencionais. Este pretexto era, como se imagina, muito popular entre os militares, o que fazia deles os grandes defensores da adesão à NATO em todos os estados – nomeadamente em Portugal, onde a direcção política tinha fortes dúvidas e reservas.

A NATO, assim que se forma, elabora planos para resistir a uma ofensiva convencional da URSS, em diferentes linhas na Europa mais ou menos avançadas. Simplesmente, durante toda a década de 1950, os reais planos de guerra americanos, que não eram comunicados aos europeus, apontavam para a impossibilidade de defender a Europa Ocidental (com a excepção do Reino Unido) perante uma ofensiva em força da URSS, o que significava que as forças americanas estacionadas no continente eram para sacrificar. Os reais planos americanos colocavam como inevitável nos primeiros seis meses de guerra um recuo generalizado na Europa e no Médio Oriente, que levaria as forças soviéticas até Lisboa, ao canal da Mancha e ao canal de Suez, sendo só duvidoso se conseguiriam ocupar a totalidade da Arábia (grande parte do Médio Oriente, incluindo o Iraque e o Irão, cairia nos seis meses iniciais). Neste período, a prioridade americana era a de mobilizar a sociedade e fazer crescer as forças próprias, que seriam concentradas nas bases da futura contra-ofensiva: no Norte de África e Índia. No Reino Unido seriam colocadas somente forças que apoiassem a sua defesa, mas considerava-se que não era uma base apropriada para a contra-ofensiva futura. Os Estados Unidos iniciariam igualmente nos primeiros seis meses a ofensiva aérea estratégica nuclear e convencional, graças à qual se esperava destruir cerca de 30 por cento da capacidade industrial soviética (o arsenal nuclear americano era então muito reduzido).

Só numa segunda fase, muito provavelmente no segundo ano, seria possível desencadear as primeiras contra-ofensivas terrestres e estas seriam lançadas no Médio Oriente e não na Europa. Estes eram os reais planos americanos em caso de guerra, que pouco tinham a ver com os planos NATO e não podiam ser comunicados aos aliados europeus (com a excepção do Reino Unido) por razões evidentes.

Depois desta pequena explicação do que era realmente a NATO quando da sua criação, podemos voltar às teses iniciais, pois elas agora podem ser melhor entendidas. A NATO era global, na perspectiva americana. O que estava em jogo era, com a aparência de criar uma organização regional, decidir para que lado alinhava a região que era decisiva e o mais importante na equação global. O sucesso dessa grande estratégia iria decidir não só a ordem global futura, mas também a atitude de fundo perante a URSS (guerra imediata ou confrontação de longo prazo). A NATO era assim pensada em termos globais desde o seu nascimento, embora oficialmente fosse regional. A NATO, em segundo lugar, visava transformar as forças armadas europeias de acordo com o figurino americano, obtendo ao mesmo tempo o seu crescimento numérico. O que a NATO não visava era justamente aquilo que dizia pretender: defender a Europa de uma ofensiva militar da URSS. Os planos da NATO eram «políticos», eram feitos pelos militares americanos para moralizar os aliados europeus, mas sabendo-se à partida que, em caso de conflito, não eram para executar. Em resumo, a NATO era um produto da grande estratégia, que, para ser eficaz, não podia ser tornada pública. Isto era a visão americana, sendo óbvio que existiam igualmente múltiplas visões europeias sobre o assunto, nas quais não vou entrar por não serem importantes para a linha central do artigo.

A NATO continua a ser hoje exactamente o mesmo, só que em circunstâncias drasticamente alteradas.

 

O QUE É

A NATO passou por várias «crises existenciais» nos seus já longos sessenta anos, sendo a maior de todas a que viveu depois da queda do Muro de Berlim. De então para cá houve dois importantes momentos de transformação: um em 1991 e outro em 1999-2006.

 

A PRIMEIRA MUDANÇA, 1991

Até 1990 o paradigma da NATO estava muito marcado em termos formais pelo artigo 5.º, que apontava para uma defesa colectiva de resposta a ataques contra os estados-membros que ocorressem numa área limitada. O artigo 6.º definia que esta área eram os territórios dos membros na Europa e na América a norte do Trópico de Câncer, considerando como única excepção os «Algerian Departments of France», enquanto estes existiram. Significava isto que, por exemplo, o artigo 5.º não podia ser invocado perante um ataque da URSS a uma colónia europeia da África ou da Ásia. A excepção eram os departamentos argelinos da França e os Estados Unidos só aceitaram a sua inclusão porque eles eram essenciais nos planos próprios como base da futura contra-ofensiva em caso de conflito, coisa que a França ignorava.

O que foi realmente importante para a NATO não foi tanto esta formulação teórica, mas sim dois processos: a efectiva padronização de procedimentos, de logística, de tácticas e de doutrinas que se deu logo na década inicial, sob a influência da imensa ajuda militar americana; a criação de um sistema político de consultas regulares e de uma estrutura de comando permanente. É certo que esta estrutura de comando elaborava planos perfeitamente irrealistas em caso de guerra durante todo o período inicial, mas isso pouco importava porque a guerra não estalou. O que importava é que existia um elo efectivo entre os estados-membros que padronizava as suas estruturas militares de acordo com o figurino americano. Depois do desaparecimento do Pacto de Varsóvia, mais nenhuma aliança tem isso.

Foi isso que fez que, quando a URSS implodiu, ninguém pensasse seriamente na extinção da NATO e essa hipótese nem sequer se tivesse colocado fora do campo da especulação académica. A aliança tal como existia era um pólo de ordem que excedia em muito as suas funções oficiais e todos sabiam, ou sentiam, isso.

O que aconteceu foi que, mais uma vez, como era de regra, as funções reais da NATO excederam em muito a formulação oficial dos documentos. A primeira reformulação oficial foi feita pelo «conceito estratégico» de 1991. Segundo este, a NATO era chamada a responder a vagas ameaças «de natureza multifacetada e multidireccionadas, o que as torna difícil de prever» (ponto 8); estas imprecisas e indefinidas «ameaças« já não provinham principalmente de uma eventual agressão ao território dos estados-membros, «mas de consequências adversas da instabilidade que podiam decorrer de sérias dificuldades económicas, sociais e políticas» (ponto 9). Pela primeira vez, era dito igualmente que a paz na periferia «sul» da Europa era importante para a aliança (ponto 11). Mais importante ainda, era dito logo em 1991 que os riscos mudaram e que era necessário considerar como riscos importantes a proliferação das armas de destruição maciça, «os recursos vitais» (havia algum pudor em dizer petróleo) e as acções terroristas.

Uma outra grande novidade do documento de 1991 era a redefinição dos valores da NATO, que agora passava a existir «baseado em valores comuns de democracia, direitos humanos e estado de direito» (artigo 16.º), o que não correspondia de modo nenhum à formulação de 1949, embora isso não fosse acrescentado. O documento de 1991 acrescentava que a NATO precisava de articular a sua acção com «outras instituições europeias como a CE, UEO e a CSCE» que «também têm as suas funções para exercer» (artigo 21.º). De forma tipicamente optimista era mesmo referido: «A criação de uma identidade europeia de segurança e defesa irá evidenciar a preparação dos europeus para adquirirem um grande sentido de responsabilidade da sua segurança» (artigo 21.º). Um importante componente da defesa colectiva era a capacidade de evitar crises ou fazer a sua gestão (artigo 30.º), dentro de uma aproximação que visava manter o quadro geral de segurança, onde a tónica mais do que nunca estava na política – «a abordagem política da segurança irá tornar-se mais importante» (artigo 30.º).

O documento de 1991 é notável, pois indica de forma correcta o que seriam as grandes mudanças de NATO nos próximos dezoito anos e aponta para alterações que alguns ainda hoje consideram polémicas. No entanto, é preciso acrescentar que o documento, seguindo a tradição da NATO, não indica de forma clara as reais razões da sua aprovação, nem as estratégias globais que lhe estavam por detrás.  

A verdade era que, com o desaparecimento da URSS, a NATO tinha adquirido uma nova função principal que, mais uma vez, para ser eficaz não podia ser dita. Era uma função dupla: por um lado garantir a segurança externa dos principais estados do antigo Pacto de Varsóvia que procuravam uma rápida evolução com integração nas instituições europeias; por outro, e talvez ainda mais importante, facilitar a evolução destes estados para uma democracia pluralista de tipo ocidental, muito em particular a subordinação dos militares ao poder político e a aceitação das regras da vivência democrática. A NATO foi muito importante para as transições democráticas no antigo «leste» europeu, tal como tinha sido para Portugal e para a Grécia nos anos de 1970.

Esta nova função fez a NATO adoptar oficialmente a noção que a instituição se baseava «nos valores comuns da democracia», o que excluía a aceitação de qualquer Estado não democrático. São conhecidas as etapas atribuladas do alargamento a Leste, que sempre provocou fortes reservas e mesmo protestos por parte da Rússia. Estas alcançaram um tom diferente quando o alargamento ultrapassou os antigos estados do Pacto de Varsóvia, para incluir alguns estados da ex-URSS. Mesmo assim, a adesão dos estados bálticos, com as suas tradições históricas europeias e ocidentais, com um passado de democracia e com um reduzido peso militar, não levantou grandes problemas. Situação diferente é a da eventual adesão da Ucrânia e da Geórgia.

 

A SEGUNDA GRANDE MUDANÇA, 1999-2006

O caminho percorrido nos anos de 1990 leva à aprovação de um novo conceito estratégico em 1999, que retoma muitos dos pontos de 1991. Era repetido que a NATO «é baseada nos valores comuns da democracia, direitos humanos e estado de direito» (ponto 6), o que correspondia à formulação anterior, mas sublinhava-se agora que, para obter a segurança, a organização se devia envolver na gestão de crises e promover partenariados. A visão de segurança era diferente do passado, pois dizia-se: «A Aliança está empenhada numa abordagem de segurança mais ampla, que reconheça a importância de factores políticos, económicos, sociais e ambientais juntamente com a indispensável dimensão de defesa» (ponto 25). A NATO continuava, porém, a ter como objectivo central a edificação de uma «arquitectura de segurança europeia» baseada no entendimento entre as duas margens do Atlântico. Os partenariados apresentados como prioritários era com a Rússia, a Ucrânia e a área do Mediterrâneo.

O 11 de Setembro altera significativamente a postura, nomeadamente no que diz respeito a operações fora de área. O documento mais relevante que incorpora a evolução posterior é o «Comprehensive Political Guidance», aprovado na cimeira da NATO de Novembro de 2006.

Este documento refere expressamente como base da sua elaboração o conceito estratégico de 1999, para indicar depois as mudanças que se deram. Agora, a principal ameaça para a NATO «dos próximos 10 a 15 anos» é identificada como o terrorismo internacional e a difusão das armas de destruição maciça, no que é uma típica aproximação posterior ao 11 de Setembro, ainda em pleno período Bush. Uma diferença notória é que já se aceitam as operações fora de área, dizendo-se: «os futuros ataques podem ser originados fora do espaço euro-atlântico e envolverem formas não convencionais de ataques armados» (ponto 5). Nesta perspectiva, a Aliança declara-se preparada para desencadear operações «não artigo 5.º» de gestão de crises, mesmo fora de área.

Um outro ponto importante do documento de 2006 é a referência à necessidade de manter capacidades full range, desde a alta à baixa intensidade, sem esquecer as operações de estabilização e de apoio militar depois do conflito, para o que se tornava necessário desenvolver os mecanismos de cooperação com a ONU, a União Europeia (UE) e organizações não governamentais. O documento, em resumo, incorpora e aprova o que era já a prática da NATO no Afeganistão e refere que a nova situação cria exigências acrescidas, dizendo no ponto 11: «a NATO poderá manter um maior número de pequenos pedidos e operações diversas, e a Aliança deverá manter a capacidade para conduzir operações em larga escala e de alta intensidade.»

Quais as ameaças assimétricas encaradas em 2006? O documento era propositadamente vago, sublinhando a necessidade de adaptação e flexibilidade para responder ao inesperado. O seu ponto 16, porém, elenca um conjunto de novas capacidades a desenvolver, onde destaco quatro pela sua novidade: a protecção dos sistemas de informação contra ciberataques; a capacidade de identificar e eventualmente eliminar elementos hostis, mesmo em zonas urbanas, com um mínimo de danos colaterais ou não intencionais; a capacidade de coordenar operações complexas que envolvem agentes de muitos tipos e nacionalidades, de dentro e de fora da Aliança; a capacidade de desenvolver operações de estabilização.

O documento de 2006 não avança ainda para um novo conceito estratégico, mas incorpora na prática o que eram os principais eixos de evolução da NATO depois do 11 de Setembro e chama a atenção para as debilidades mais sentidas neste campo. É já dado como assente a necessidade de adoptar um conceito alargado de segurança, de conduzir operações fora de área, de dominar todo o tipo de operações e de desenvolver respostas para as debilidades mais sentidas, nomeadamente no que diz respeito a «operações de estabilização». É também evidenciado o longo caminho que a NATO tinha percorrido desde 1990, mas ainda havia muitas áreas em aberto, resultantes em larga medida das diferentes perspectivas e da rápida evolução em curso. Esta é a nossa base para tentar responder à pergunta central deste artigo: o que deve ser a NATO? Muita coisa mudou de fins de 2006 para cá, apesar do pouco tempo que decorreu.

 

O QUE DEVE SER

UM ENQUADRAMENTO GERAL

Para compreender o que a NATO deve ser, o primeiro passo é entender o que mudou e, sobretudo, o que vai mudar. Vou abordar muito resumidamente este ponto de grande complexidade [2].

Vivemos já, não no pós-Guerra Fria, nem sequer no pós-11 de Setembro, mas sim num mundo apolar posterior a 2008. São os primeiros e ainda incertos passos de uma mudança acelerada a muitos níveis. É a antecâmara de uma complexa crise civilizacional, que se vai prolongar por algum tempo, turbulenta e agitada, antes de se alcançar uma nova estabilidade com base em soluções que ainda não estão equacionadas. Estes anos difíceis de transição serão marcados por uma diluição das lideranças, uma pulverização do poder, um aumento do número de agentes de centenas para milhares, um rápido crescimento dos agentes não estatais, um aparecimento de novos desafios que tendem a tornar-se os principais. É um mundo que passou de vertical a horizontal, de hierárquico a rede, de redondo a plano, de distante a próximo, de regional a global, de simples a muito complexo, de previsível a imprevisível, de seguro a perigoso, de estável a explosivo – um mundo com tensões imensas acumuladas e em crescimento, com novos desafios e ainda sem novas soluções. É o mundo apolar, onde os antigos pólos se diluem cada vez mais e os novos ainda não nasceram, pelo simples motivo que só podem nascer quando se equacionarem as novas soluções.

É um mundo onde as antigas ameaças (que são as posteriores ao 11 de Setembro, embora já sejam «antigas») continuam, mas onde as ainda mais antigas vão renascer (nomeadamente os conflitos entre estados, exacerbados pelos escassez de recursos para uma população em rápida expansão) e novas vão aparecer. Neste mundo já não é correcto dizer, como acontecia em 2006, que o terrorismo e a difusão das armas de destruição maciça são as «principais ameaças». Elas continuam, mas perante os desafios emergentes são pequenas e até mesmo insignificantes. Na realidade, nem sequer é muito correcto falar em «ameaças»; o que há, são desafios emergentes de grande envergadura que, em si, não são ameaças e não podem ser «eliminados» no sentido militar do termo, mas podem dar origem a ameaças gigantescas de vários tipos se não forem bem geridos. Os desafios emergentes ainda dão somente os primeiros passos, mas são de tal modo importantes que já foram suficientes para refazer toda a ordem económica global – ela é hoje diferente do que era antes da crise financeira de 2008? –, sem que novos equilíbrios se tenham criado.

Os desafios emergentes são múltiplos. Cito somente dois que se vão desenvolver rapidamente e subordinar a si muitos outros problemas, que hoje ainda são sentidos como mais importantes: a escassez dos recursos perante o crescimento da população e da classe média (desde a água, à energia, matérias-primas e alimentos) e a mudança climática. O primeiro destes desafios é a materialização mais visível da crise civilizacional de um modelo de desenvolvimento não-sustentável; o segundo é a materialização mais visível de uma crise ainda mais importante e primária, a da relação do homem com o ecossistema de sustentação da vida que se chama Terra. Se as coisas forem encaradas desta forma, o que ainda não acontece numa escala significativa, facilmente se entende que, perante estes desafios emergentes, tudo o mais é pequeno, se apaga e perde importância.

O primeiro destes desafios assume diversas formas de imediato e possivelmente outras num futuro próximo. Em 2008 surgiu, por exemplo, sob a forma de uma crise energética que atingiu o ponto mais alto em Maio, para depois se assistir a uma rápida queda do preço do petróleo e alimentos. Mas, a seguir à crise energética, surgiu a explosão da bolha do imobiliário nos Estados Unidos, antecâmara de uma crise financeira e económica global. É algo diferente do passado, pois o que está em causa é o «modelo virtuoso» que alimentou a economia global nos últimos vinte anos. Era um modelo marcado pela rápida transferência da indústria para os poderes emergentes, que cresciam a taxas de dois dígitos, enquanto os estados mais ricos absorviam as suas exportações. Os estados ricos tinham taxas de crescimento muito mais baixas e, mesmo estas, eram alimentadas por um endividamento geral, que abarcava todos, desde os particulares ao Estado central. Os poderes emergentes, por seu lado, desviavam parte dos fundos imensos provenientes da explosão das exportações para alimentar o aumento do endividamento dos estados mais ricos. Era um sistema de vasos comunicantes. Foram a China, a Índia, os poderes árabes e outros que alimentaram por muitos anos o alegre endividamento dos estados mais ricos, o que era imprescindível para exportarem nas quantidades necessárias. Ao mesmo tempo, a «economia paralela ou clandestina» crescia e também ela contribuía para alimentar o endividamento geral, ao gerar fluxos financeiros imensos, que correspondiam a um quarto ou a um terço da «economia oficial». Este «modelo virtuoso» sofreu um abalo imenso em 2008 e não haverá verdadeira recuperação sem que um outro o substitua, embora não seja ainda claro qual vai ser.

Até lá, a crise financeira e económica vai estar no centro das atenções e será o pano de fundo de um qualquer quadro de segurança. O Vice-Presidente Joseph Biden foi muito claro no discurso que fez recentemente em Munique (Fevereiro de 2009): «Our physical security and our economic security are indivisible». Em resumo, a «segurança económica» vai estar nos próximos tempos no centro do pensamento da segurança e defesa, embora ainda não seja claro o que se entende por isso. A crise financeira e económica, porém, mais não é que um dos primeiros passos da crise de um modelo de crescimento não sustentável, mais complexa, mais importante, mais difícil de gerir, de mais longo prazo.

É necessário fazer uma prevenção importante. Um leitor apressado poderia concluir das linhas anteriores que tenho a visão de um caos ou catástrofe iminente. Não é assim. A crise do modelo não sustentável de desenvolvimento começou agora e será longa – estou a falar de décadas e não de anos. Ela não se vai traduzir num colapso súbito, num esgotamento rápido dos recursos, mas será lenta e gradual, como uma corda de seda que se aperta suavemente à volta do pescoço. Significa isto que não estamos na iminência de um caos ou de uma catástrofe generalizada, sendo mesmo normal que a situação melhore bastante assim que os efeitos piores da crise financeira tenham cumprido o seu papel de destruição. Estamos, isso sim, nos primeiros passos de uma crise de longa duração (décadas), imprevisível no seu ritmo e no seu desenvolvimento concreto.

A segunda vertente da crise civilizacional que se agudizou em 2008 é resumida na expressão «mudança climática». A expressão é simples, mas a sua abrangência é imensa. Para quem ainda não o entendeu, é o maior desafio da humanidade no século XXI. Trata-se de uma verdadeira caixa de Pandora da qual tudo depende, desde a mudança do nível dos mares, a migrações das populações na ordem dos milhares de milhões, drásticas alterações dos recursos alimentares, pandemias, novas rivalidades (com destaque para a água), novas zonas de conflitos (Árctico, por exemplo) e muitas outras. As suas implicações para a segurança são gigantescas, embora seja impossível prever o ritmo, intensidade e direcção da mudança em termos exactos. Trata-se de um assunto de que se fala há cerca de vinte anos, tendo-se revelado a maior parte das previsões científicas como muito modestas perante a realidade – quem acreditava em 2007 que, em 2008, ambas as passagens do Árctico seriam navegáveis?

A crise económica e financeira e a mudança climática são, em resumo, as duas maiores novidades que alteram o quadro geral de segurança em 2009 e as suas implicações são imensas, embora com uma evolução imprevisível. As ameaças posteriores ao 11 de Setembro, entre as quais o terrorismo, bem como as anteriores, continuam a existir, mas os novos desafios são simplesmente de outra escala, algo muito mais importante e abrangente. Tudo isto no quadro de um mundo mais complexo, mais vasto, mais ligado, menos liderado, mais «asiático» e com ideias mais confusas, onde quase ninguém percebe qual o fio condutor, onde está o céu e a terra e, sobretudo, onde está a espada que pode cortar o nó górdio. É este, em poucas palavras, o novo quadro de segurança em 2009. É perante esta mudança imensa que a NATO deve evoluir.

 

A HERANÇA A PRESERVAR

Que se deve fazer perante este quadro de um rápido desmoronar dos equilíbrios passados, com a criação de um mundo mais perigoso e incerto?

Em primeiro lugar, devem-se reforçar os centros de estabilidade, de lógica e de ordem, muito em particular aqueles que têm uma dimensão suficiente para serem significativos numa escala global. A NATO é potencialmente o mais importante de todos, mas para tal deve evoluir. O que é necessário é não mais uma pequena adaptação, mas uma reformulação ampla dos seus princípios, valores, prioridades, métodos e organização, ou seja, um verdadeiro renascimento que responda aos novos desafios.

Algumas coisas há, contudo, que devem ser mantidas e preservadas, enquanto outras se alteram ou são acrescentadas. Entre os elementos a manter, saliento cinco:

 

• A NATO deve continuar a ser uma aliança defensiva, o que é a única formulação possível num entendimento entre democracias.

• A NATO deve continuar a representar no essencial o elo de base entre a Europa Ocidental e a América do Norte. Em conjunto estas duas regiões representam somente 11,5 por cento da população mundial, mas são mais de dois terços da riqueza mundial, continuam a ser o principal centro tecnológico e de inovação do planeta, são a maior acumulação de força militar e de capacidades essenciais que podem ter efeitos decisivos na criação de uma nova ordem mundial, desde que usadas com visão e uma política comum. Poderá haver quem pense que um alargamento a outras regiões ou à periferia da Europa teria o efeito de aumentar ainda mais o peso da NATO. Na minha opinião um tal alargamento contribuiria sobretudo para diluir a coesão já periclitante, para impedir a elaboração e aplicação de qualquer política comum minimamente coerente e operativa, ou seja, tornaria os imensos recursos inúteis. O problema não é a dimensão, nem sequer a falta de forças ou de recursos; o problema central é a falta de um pensamento, de uma teoria aplicável que distinga o secundário do importante, a espuma das coisas da sua essência. A Europa Ocidental e a América do Norte têm uma coesão única à escala mundial em termos do tipo de regime, dos valores defendidos e da evolução histórica. A inclusão de outras sociedades que não partilhem deste legado comum seria paralisante para a NATO. O núcleo central da NATO deve, em resumo, ser preservado sem mais alargamentos significativos, enquanto o seu âmbito de acção aumenta através de parcerias e acordos diversos.

• A NATO deve continuar a ter uma formulação flexível, e algo ambígua, das obrigações efectivas. Deve manter a obrigação da defesa comum, mas deve ser flexível em termos do que se entende exactamente por isto, até porque esse entendimento tem variado e continua a variar muito depressa. Vivemos numa época em que a flexibilidade das definições é a chave do sucesso e a preocupação escolástica com o rigor e a exactidão é o caminho mais seguro para o fracasso.

• O alcance pleno do terceiro ponto só se entende no seguimento deste texto, mas é preciso acrescentar que a NATO deve continuar a assegurar uma defesa do território, pessoas e bens dos estados-membros. Isso é necessário, mas está longe, muito longe, de ser suficiente.

• A NATO deve manter e aprofundar os seus dois principais instrumentos de acção herdados do passado: uma padronização comum de procedimentos, logística, tácticas e métodos e uma estrutura de comando permanente. A primeira assegura a capacidade de operações conjuntas e combinadas, algo essencial; a segunda garante a flexibilidade necessária para montar uma operação mesmo de grande envergadura em pouco tempo.

 

Isto é o que se deve manter a todo o custo, a herança positiva do passado que não pode ser erodida ou destruída. Mas muitas outras coisas devem ser alteradas ou acrescentadas.

 

OS PILARES DA MUDANÇA

A primeira mudança diz respeito aos objectivos. O objectivo essencial da NATO de defesa colectiva era expresso no artigo 5.º, alterado no seu significado pelas revisões dos conceitos posteriores a 1990. A NATO deve manter como objectivo central a defesa, mas entendida numa acepção moderna. Isto significa em termos simples que se trata não de uma defesa do território, vidas e bens (embora isso seja necessário), mas sim da defesa de valores comuns e de uma forma de vida.

A diferença é imensa. Se adoptamos a primeira acepção estamos a falar de uma defesa passiva e reactiva, que se esgota na preparação da resposta a uma eventual agressão vinda do exterior contra um território que é determinado à partida. Pelo contrário, se adoptarmos a segunda acepção, estamos a falar de uma defesa activa, que se exerce numa escala global contra desafios e ameaças multifacetados, venham de onde vierem.

Mas, quais são os valores a defender numa escala global? Numa primeira aproximação poderíamos ser tentados a pensar que se trata de «valores democráticos», pois todos os membros da NATO são democracias semelhantes na sua lógica básica. Ao fim e ao cabo, já os conceitos estratégicos de 1991 e 1999 referem que a NATO «baseado em valores comuns de democracia, direitos humanos e estado de direito». Assim é efectivamente em termos dos regimes dos actuais estados-membros. Simplesmente, uma coisa é constatar isto, outra muito diferente é dizer que a NATO deve defender os valores da democracia numa escala global. Dar esse passo seria, na minha modesta opinião, um erro colossal.

Seria um erro colossal por vários motivos. O primeiro é que daria a impressão ao mundo que a NATO pretende exportar a democracia como sistema de governo, ou seja, impor esta forma política a outras sociedades. Ora, a democracia não se exporta e tentar fazê-lo só pode conduzir ao desastre. A democracia de tipo ocidental é o resultado final de uma evolução secular, que moldou a sociedade ao longo do tempo. Ela não é estável sem uma dada estrutura social e sem as inerentes mentalidades, que não se decretam nem improvisam com campanhas de formação rápidas. Tentar impor o regime político da democracia a uma sociedade que não tem uma coisa ou outra é o caminho certo para o desastre e, ainda mais importante, é antidemocrático. A democracia, em resumo, conquista-se, ganha-se e defende-se, mas não se exporta.

A NATO não pode pois basear a sua acção global na ideia de expandir ou exportar a democracia. Defender os valores da democracia em relação aos estados-membros, sim; exportar para o mundo, não.

O grande erro da NATO e do Ocidente nos últimos anos foi justamente o de pensar que a democracia se «exporta» e se impõe pela força, como se fosse uma questão de tirar um dirigente do poder e colocar um outro. Mas não é. A democracia é resultado de uma evolução e, se não for isso, é uma pantomina e uma aberração que só a força mantém e, logo, será de curta duração em termos históricos. A força das «revoluções democráticas» é que elas partem de dentro; quando isso não acontece, não são revoluções, são invasões. Um dos grandes erros da Administração Bush foi o de adoptar a ideia que a democracia e os seus valores eram uma aspiração geral e imediata da humanidade e eram a solução de aplicação geral a todas as sociedades, por mais diferentes que fossem.

A fonte de muitos dos problemas actuais no Iraque e no Afeganistão está em se ter passado das operações de objectivos limitados e realistas dos anos de 1990, para as operações de objectivos totais, as operações de «exportação da democracia» do século XXI, que passavam pela mudança drástica da sociedade imposta a partir do exterior, com a destruição do Estado existente e a reconstrução de um outro. Como se o que fosse bom para uns, fosse bom para todos; como se não houvesse diferenças, num mundo que tem cada vez mais diferenças. As operações de objectivos limitados e realistas produziram bons resultados com poucos recursos e quando isso não aconteceu (como na Somália) permitiram uma retirada rápida sem traumas excessivos. As operações de objectivos totais, de «exportação da democracia» à força, produziram atoleiros, sorvedouros de recursos imensos, sem fim à vista e sem saída fácil, que contribuem para a perda de prestígio dos regimes democráticos. A diferença é imensa e quem não o entenda não entende o que é a democracia.

Historicamente temos poucos casos de «exportação da democracia» à força bem-sucedidos. Os dois mais evidentes são a Alemanha e o Japão depois da II Guerra Mundial, mas as condições eram muito especiais: foi no fim da mais intensa guerra da humanidade, com o esmagamento total e completo da força armada desses estados, com a destruição de grande parte da sua economia, com a quebra da vontade de resistir. Mesmo assim, o sucesso final só foi possível porque eram sociedades economicamente desenvolvidas, urbanizadas, com numerosa classe média e, pelo menos num caso, com uma experiência anterior de regimes democráticos de tipo ocidental. Apesar disso, foi preciso uma ocupação militar de décadas e um imenso investimento de recursos a muitos níveis para estabilizar a democracia a partir do exterior nestes estados. Ninguém hoje pode ou está disposto a pagar esse preço, pelo simples motivo que os problemas reais são outros e são muito mais fortes e importantes. Não entender isto é um erro colossal.

Em resumo, a NATO deve continuar a ser uma aliança baseada internamente nos valores comuns da democracia, mas sem os pretender exportar ou fomentar pela força. Os valores comuns que a NATO deve defender para o exterior, para ser uma organização de dimensão regional mas de mensagem universal são outros. É correcto que a NATO não aceite a adesão de membros que não sejam democracias plenas, mas não é correcto que considere a exportação deste regime e dos seus valores como a sua mensagem universal, a sua forma de estar no mundo, o eixo da sua acção global. A diferença entre uma coisa e outra é imensa.

A NATO na sua acção global deve defender a médio prazo os valores de um quadro de segurança humana ligado a um desenvolvimento sustentável, equilibrado e em segurança. São estes valores e não quaisquer outros que representam a mensagem universal dos próximos tempos e, quem não o entenda, pouco percebe do que se está a passar. Há uma muito importante nuance a introduzir. De momento, ainda é cedo para dizer «um quadro de segurança humana ligado a um desenvolvimento sustentável, equilibrado e em segurança», por vários motivos que não vou desenvolver. De momento, deve dizer-se somente que a NATO promove os valores de um quadro de segurança humana, baseado nas leis e regras de aceitação internacional. A diferença das poucas palavras que faltam é muito importante e é justamente por causa disso que penso que actualmente ainda não se pode adoptar a primeira formulação – serão precisos mais alguns anos e a evolução da crise civilizacional que agora começa para que seja possível a transição de uma formulação para outra.

Que é «um quadro de segurança humana, baseado nas leis e regras de aceitação universal»? É vago, indefinido e histórico e ainda bem que assim é, pois o tempo presente o exige. Os valores de um quadro de segurança humana são, em primeiro lugar, universais e aplicam-se a todos os tipos de regime, pelo que a NATO assume como sua uma linguagem global. Isto é básico e fundamental, pois dá legitimidade, credibilidade e aceitação às operações que se venham a desencadear. Em segundo lugar, os valores de um quadro de segurança humana, são globais e não regionais. Em terceiro lugar, o quadro de segurança humana é obrigatoriamente multifacetado, implicando uma acção conjugada em múltiplas vertentes, o que obriga a NATO a crescer e a desenvolver-se para além dos seus parâmetros de acção actual. A NATO, em resumo, deve preservar os valores da democracia no território dos estados-membros através da defesa dos valores de um quadro de segurança humana para o resto do mundo.

 

VERTENTES A DESENVOLVER

Uma das consequências de dizer que a NATO deve defender na acção externa os valores de um quadro de segurança humana é que as prioridades da sua actuação se alteram. Dizia-se que a NATO era uma aliança político-militar. Se os novos objectivos forem plenamente assumidos, a NATO passa a ser uma aliança política, que utiliza para alcançar os seus objectivos uma ampla panóplia de instrumentos, sendo um deles o militar. A ferramenta da força militar passa a ser somente uma das vertentes da acção, o que, seja acrescentado, é já hoje a realidade em larga medida. Ninguém exige, por exemplo, a um carpinteiro que só use serras para fazer um móvel, pois isso é impossível.

No momento presente, há duas vertentes da segurança humana prioritárias. A primeira é a «segurança económica», como já se podia deduzir do discurso citado do Vice-Presidente dos Estados Unidos.

Que se entende por isso em termos concretos? Por enquanto é vago e indefinido. Por exemplo, ninguém duvidará que o combate à pirataria tal como se faz sentir nas costas da Somália e do Extremo Oriente é um elemento da «segurança económica». Isto não significa, porém, que a NATO deve montar de imediato operações gerais de combate à pirataria em toda a parte. Não só isso seria impossível, como iria contra um princípio básico da concentração de recursos nas áreas prioritárias. O conceito de «segurança económica» é, porém, muito mais vasto do que a liberdade de circulação. Ele inclui, por exemplo, a necessidade de assegurar o acesso a recursos vitais de forma equilibrada ou o combate a operações financeiras ilegais de larga escala que ponham em risco os equilíbrios gerais. Mais uma vez são frases que, embora possam merecer o acordo de muitos, nada dizem se não passarem pela peneira de uma estratégia de aplicação concreta, com tudo o que isso implica – e muito é. O perigo aqui, mais do que em qualquer outro campo, está nas aproximações «taleban». Dizer, por exemplo, que se deve combater a economia ilegal (onde se inclui o narcotráfico, o crime organizado, etc.) pode parecer algo correcto e louvável. Mas, a verdade é que se, por um golpe de magia, a economia ilegal desaparecesse do dia para a noite, isso representaria uma catástrofe económica global de proporções incalculáveis. Não existe esse perigo, pois a economia ilegal já alcançou uma escala global tal que a sua eventual destruição está muito acima dos recursos e meios da NATO, mesmo que uma opção política disparatada apontasse para esse objectivo. O sucesso da procura de uma «segurança económica» depende da forma como se passa dos desejos pios à realidade; depende da política para alcançar os objectivos da estratégia; depende de ter uma visão de longo prazo.

Em última instância, quando se fala de uma «segurança económica» inserida num quadro de segurança humana, estamos a falar nas regras da nova ordem económica mundial, que deverá sair da crise do modelo económico e financeiro de 2008. As novas regras vão-se erguendo e construindo aos poucos, num processo que está longe de ser meramente de discussão académica ou debate científico. É um processo essencialmente de força que aplica uma lógica numa escala global, criando as alianças e entendimentos necessários para impor os novos valores da ordem internacional. É o processo pelo qual se criam os pólos dos sistemas internacionais e mundiais (não são a mesma coisa). Por enquanto estamos no começo, nos primeiros e trémulos passos, pelo que ainda não é possível saber de forma exacta quais as regras futuras. Penso mesmo que, a partir de determinada altura num futuro não muito longínquo essas regras serão drasticamente alteradas; será a altura em que passará a ser necessário promover os valores de um modelo global de desenvolvimento sustentável – mas ainda é cedo, ainda não é para agora. O que é necessário de momento é entender a necessidade de ter uma acção activa, empenhada e numa escala significativa (a escala da NATO) na definição e aplicação das regras futuras.

A outra vertente prioritária para criar um quadro de segurança humana é a «segurança ambiental». Mais uma vez é muito difícil dizer o que se entende por isto de forma exacta. No essencial e em termos simples, isto passa em primeiro lugar por acordar em termos internacionais em princípios, procedimento e regras de preservação ambiental e combate ao aquecimento global – uma fase curta, mas com implicações imensas em termos sociais, de mentalidades e de formas de vida. Num segundo momento, a segurança ambiental implica impor esses princípios acordados, usando para tal vários instrumentos e criando uma organização global eficaz na fiscalização e acompanhamento do processo. A força será, neste campo, o último recurso. Mas, se, por exemplo, um Estado contrariar as regras aprovadas internacionalmente, colocando em causa os equilíbrios ecológicos planetários, penso que isso justificará futuramente uma intervenção da força para impor os limites que a vida global exige e a NATO poderá ser o fórum indicado para o fazer. Não já, até porque as regras e normas internacionais ainda não existem numa escala significativa. Não já, mas num futuro próximo.

Há muitas outras vertentes envolvidas num «quadro de segurança humana», mas não as vou mencionar. O ponto essencial que gostaria de salientar é que «defesa» já não é o que era. Antes, quando da criação da NATO, era entendida essencialmente como a preservação do território, das vidas e dos bens, pelo que a obrigação principal resultante para a NATO era a de ajudar um membro que fosse vítima de uma invasão do seu território ou de outra forma de ataque físico directo proveniente do exterior. Hoje em dia uma tal possibilidade é remota, mas a defesa é uma outra coisa. A «segurança económica» ou a «segurança ambiental», por exemplo, são elementos essenciais de um quadro de segurança humana, pelo que um atentado a estas vertentes numa escala global é bem mais importante do que uma «invasão física do território», na acepção do passado. O que está em jogo desta vez é muito mais importante e básico, embora as aparências sejam o contrário.

É por isto que NATO deve evoluir e preocupar-se com os valores alargados de um quadro de segurança humana, equacionado numa escala global. É certo que eles são vagos e imprecisos, mutáveis e em rápida evolução, sempre dependentes de entendimentos flutuantes e nem sempre identificáveis como «ameaças» que mobilizem a população. Mas o nosso tempo é assim e de nada serve olhar com nostalgia para o passado.

Um outro aspecto a salientar é que quando a NATO se preocupa com um quadro de segurança humana, está necessariamente a colocar-se num campo político e numa dimensão planetária. Significa isto que terá de lutar pela edificação de regras de aceitação generalizada para um quadro global de segurança humana, para em seguida se preocupar com o seu acompanhamento, vigilância e, se necessário for, imposição pela força.

A NATO, em resumo, deve evoluir para uma aliança política (e não político-militar). Porquê? Porque a edificação de uma visão para um quadro moderno de defesa ainda não está feita e é um trabalho essencialmente político e de criação do pensamento; porque nenhuma outra instituição pode assumir tão bem o entendimento entre as duas margens do Atlântico neste processo; porque esse entendimento tem o potencial de ser de novo o eixo estruturante da futura ordem global.

 

UMA ALIANÇA A VÁRIOS RITMOS

O grande problema da NATO é que ela cresceu muito – talvez demasiado – nos últimos anos. Os novos membros têm preocupações diversas, sendo compreensível que alguns ainda vejam a NATO como a garantia no essencial de uma defesa do território e da soberania contra ameaças externas – sejam elas as da nova Rússia ou outras. Alguns dos novos membros podem mesmo ser tentados a ver na continuação do alargamento para Leste o objectivo principal da futura NATO, pois isso reforça a sua sensação de segurança perante as ameaças tradicionais sentidas.

Para muitos dos antigos membros o panorama global é mais diversificado e complexo. O problema central não é garantir a preservação da soberania e do território contra uma ameaça localizada (seja a Rússia renascida ou outra), mas sim garantir a NATO como instrumento importante da criação de um quadro de segurança humana que seja um pilar da nova ordem global e o instrumento da sua edificação. São perspectivas diametralmente opostas, que facilmente se tornam contraditórias.

A transição necessária será difícil e complexa, pois não há unanimidade nem vai haver, pelo menos por enquanto. Este facto pode transformar a NATO numa aliança a vários ritmos. É um perigo, mas é um perigo menor perante a alternativa da paralisia ou da inacção. O pior que podia acontecer era a NATO não cumprir o papel que só ela pode desempenhar no presente, de modo a ser uma organização global com futuro. A aliança, em resumo, não pode ser o menor denominador comum da sua composição alargada actual. A unanimidade deve continuar a ser procurada, mas, quando não for conseguida, não deve impedir que se avance na direcção necessária.

Se os membros que quiserem avançar forem em quantidade suficiente, eles devem contar com o conjunto dos instrumentos ao dispor da NATO. Isto pode implicar uma aliança a vários ritmos, tal como existe uma UE a vários ritmos, o que não é o ideal, mas a alternativa da paralisia é bastante pior.

A NATO deve estar preparada, em resumo, para se assumir como uma aliança a vários ritmos, em que um grupo com peso significativo pode avançar com acções que não tenham um apoio unânime e contar os recursos centrais da Aliança para o fazer – desde que pague o preço da sua utilização.

 

A COMPLEXA ARTICULAÇÃO

Um dos problemas mais difíceis de equacionar é o da articulação da NATO com outras organizações a que alguns dos estados-membros pertencem, principalmente com a UE, dentro da sua legítima preocupação de definir uma política europeia de segurança e defesa. A NATO e a UE são obviamente complementares, mas a dificuldade da sua articulação está em conseguir duas coisas: evitar duplicações de capacidades muito caras e fazer com que os estados-membros não ficam de mãos amarradas, caso alguma vez tenham de usar as capacidades comuns para fins próprios, que alguns dos outros não partilham. É uma dificuldade real, pelo simples motivo que, embora a Europa Ocidental e a América do Norte partilhem muita da visão sobre a ordem internacional e os seus princípios, continuam a ter estratégias próprias e não totalmente coincidentes, sendo que do lado europeu existem muitas. O problema é ainda agravado pelo facto de estados importantes (como a Turquia) só fazerem parte de uma das organizações.

A resposta tem de ser flexível e passa por vários desenvolvimentos que criam uma arquitectura complexa, mas difícil de evitar. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que no futuro próximo se vai afirmar a necessidade de desenvolver rapidamente capacidades ainda embrionárias, tudo dentro do enquadramento de uma rápida revisão dos valores.

Uma dessas capacidades, por exemplo, é a ciber-segurança, que não pode ser equacionada somente no âmbito de um Estado. Na recente Guerra da Geórgia a estabilização da situação e contenção dos estragos passou pela capacidade americana de deslocar rapidamente uma equipa de ciberguerra e usar os recursos próprios para assegurar que os principais sistemas da Geórgia não ficavam paralisados, com o inevitável caos social ao fim de pouco tempo. Outras capacidades, já identificadas no documento da NATO de 2006, são as ligadas às operações de estabilização. Outras ainda passam pelo desenvolvimento do poder espacial (antes era normal dizer aeroespacial), ligada aos múltiplos sistemas residentes no espaço.

Penso que, se queremos que a NATO se afirme no futuro como organização global com real capacidade de actuação é necessária uma aproximação integrada, mas de arquitectura muito flexível, de modo a permitir os «vários ritmos» e sensibilidades da organização e das outras organizações que com ela se articulam. As arquitecturas políticas para o conseguir são muito variadas. Um exemplo vem do passado e é dado por um projecto da NATO que funciona com sucesso há muitos anos: a unidade de aviões radar E-3A Sentry, que funciona a coberto das cores do Luxemburgo (um dos mais pequenos estados da NATO), mas com uma composição internacional. É o caso de uma capacidade muito cara mas imprescindível desenvolvida em comum com um chapéu-de-chuva que tanto pode ser da NATO como da UE. Desde que os estados envolvidos tenham garantias que, em caso de crise, esta capacidade comum pode ser utilizada por uma coligação significativa que esteja disposta a pagar os custos, mesmo sem o acordo de todos, não haverá a tentação da duplicação. O que é indispensável é ultrapassar o paralisante estigma da necessidade da unanimidade e colocar as capacidades comuns ao dispor de coligações de vontade parciais, desde que tenham a dimensão necessária (há nisto um princípio muito simples: se conseguirem pagar o preço da utilização concreta, então é porque têm a dimensão necessária).

Em termos da gestão de crises é necessário ultrapassar rapidamente a ideia de uma gestão «civil» e outra «militar», muito ligadas ao conceito errado que existe um soft power como entidade independente de um hard power. Deve avançar-se, em primeiro lugar, para a ideia de uma gestão integrada, onde as várias capacidades são utilizadas em todas as fases, embora numa composição que varia de acordo com as circunstâncias concretas. Num segundo momento, deve avançar-se para a ideia, defendida por Portugal durante a presidência da UE, que a gestão integrada de crises se deve incorporar num conceito mais vasto de «desenvolvimento em segurança», com tudo o que isso implica, sendo esse o melhor caminho para a prevenção de crises. São poucas palavras, mas as implicações são imensas.

 

NÚCLEO REDUZIDO E PARCERIAS ALARGADAS

As teses anteriores apontam para um aparente paradoxo: a NATO deve manter uma composição regional, mas ter uma acção global. Uma coisa parece chocar com a outra.

Penso que isso não acontece em termos práticos, pois a dimensão global é dada pelos valores que defende e pelas teorias a eles ligadas, enquanto a composição regional é essencial para assegurar a coesão mínima. A dificuldade está em criar mecanismos operativos na ordem global, mantendo o núcleo regional. A solução está no aprofundamento da política de parcerias, agora com um novo conceito.

A NATO deve começar por promover a procura de regras, procedimentos e princípios de aceitação geral para edificar um quadro de segurança humana, dando prioridade aos problemas mais sentidos em cada região, o que é uma arquitectura política. Deve, em seguida, promover a criação de parcerias nas regiões prioritárias que defendem os princípios acordados, tendo em conta que os seus substanciais recursos podem ser decisivos para a implementação das soluções. As parcerias têm na base um entendimento regional, eventualmente alargado de modo a incluir estados da NATO que fazem parte dessa região e, em seguida, devem ser reforçadas com um acordo concreto com a NATO como um todo. Dou um exemplo: um quadro de segurança humana do Mediterrâneo pode incluir os estados mediterrânicos da NATO e deve ser reforçado com um acordo com a Aliança Atlântica como um todo; o mesmo se diz em relação a um quadro de segurança humana que abarque o Atlântico (incluindo o Sul).

A prioridade na criação destas parcerias vai para três regiões na periferia imediata da NATO: o Atlântico Sul (a integrar num quadro de segurança humana do Atlântico), o Mediterrâneo e a zona do Cáucaso e Ásia Central. A tónica na edificação destas parcerias deve variar de acordo com as regiões consideradas, pois os problemas prioritários são diferentes. No caso do Atlântico Sul, é prioritária a criação de um quadro geral de segurança humana na região, centrado no Brasil, que tenha como campos de acção principais a delimitação e controlo das zonas económicas, a livre circulação, os desafios ambientais, o controlo das migrações ilegais, o combate ao terrorismo, o apoio a estados frágeis ou em colapso (quando tal se justifique) e a definição de regras de acesso aos substanciais recursos da região. Já no caso do Cáucaso e da Ásia Central, o quadro de segurança humana para a zona passa essencialmente pelo problema energético e implica um entendimento de fundo e de longo prazo com a Rússia.

Não se trata de «exportar democracias» ou valores democráticos; trata-se de criar um quadro de segurança humana virado para a resolução não violenta dos problemas mais sentidos actualmente. Não é uma resposta a «ameaças»; é uma resposta a «desafios», o que é diferente. É a diferença entre o antes e o depois de 2008.    

No campo das parcerias o pilar europeu da NATO, muito em particular o núcleo dos estados fundadores, tem grandes responsabilidades. Os estados europeus fundadores devem ter o discernimento e a coragem para avançar de imediato, mesmo sem um apoio generalizado. É particularmente importante a criação de um quadro de segurança humana do Atlântico Sul e do Mediterrâneo. Portugal, em particular, deve empenhar-se fortemente em ambos os campos onde pode ter um importante papel apesar da reduzida dimensão, promovendo a liderança do Brasil num dos casos e da França no outro. O que interessa não é a liderança circunstancial e momentânea, até porque ela é cada vez mais diluída e interligada. O que interessa é defender as teorias e ideias que garantam um quadro de estabilidade mínimo num futuro que se adivinha conturbado e violento.

 

A TENTAÇÃO DA DISPERSÃO

Vivemos num mundo instável, imprevisível e perigoso e tudo indica que esses factores vão acentuar-se no futuro imediato. As crises, de vários tipos e de pequena ou grande dimensão, vão aumentar, seja por efeito das dificuldades financeiras e económicas ou dos problemas ambientais, com a proliferação das catástrofes naturais e humanitárias.

A NATO, ou qualquer outra organização de dimensão global, vai ter muitas solicitações para intervenções dos mais variados tipos. Será impossível responder a todas. O ponto essencial é ter uma política clara, saber onde estão as prioridades, focar no que é essencial, perceber que as tendências futuras ainda dão os primeiros passos e evitar as tentações de ambições excessivas. Deve-se fugir das generalidades simplistas dos princípios ditos morais e basear a acção numa compreensão das mudanças em curso e do seu sentido.

Um dos maiores perigos são as operações de «objectivos absolutos», aquelas que visam algo praticamente impossível de alcançar, como seja mudar radicalmente uma sociedade em pouco tempo, impor a «estabilidade» pela força ou impedir que um Estado se torne um «santuário de terroristas», o que implica obviamente mudar radicalmente a sociedade. Uma única destas operações pode ser um sorvedouro imenso de recursos, que impede a sua concentração em áreas prioritárias onde seriam mais produtivos, desgasta a imagem internacional da NATO e cansa a opinião pública interna ao fim de muito pouco tempo. Estas operações são «atoleiros», zonas de areia movediça, onde é muito fácil entrar e muito difícil sair. São as operações típicas dos maus políticos, dos que entendem o mundo a partir do olhar distorcido de uma visão dita moral, dos que pensam que o que foi será, dos que odeiam a complexidade, dos que não entendem a diferença, dos que acham que a força tudo pode, dos que não têm visão de longo prazo. O Ocidente tem infelizmente um historial triste de «missões impossíveis» deste tipo, tanto em termos de Portugal (antes do 25 de Abril), como da França ou dos Estados Unidos.

A política tem de estar sempre no comando e deve haver uma consciência dos limites do uso da força. Quando esta for necessária, os objectivos do seu empenhamento devem ser claros, realistas e de curto prazo; deve evitar-se sempre que possível a colocação de forças militares em ambientes com uma geografia humana hostil. Em certo sentido, e digo-o apesar de saber que vou ser muito criticado por isso, é necessário um regresso às operações de objectivos limitados, ditas cirúrgicas e à distância, dos anos de 1990 (as tais que funcionavam, lembram-se?), onde se aproveitava plenamente a vantagem da superioridade tecnológica, evitando-se colocar a força militar no seio de massas humanas hostis. Alguns leitores mais seguidores da moda dirão, talvez, que é impossível evitar isso, sendo necessário colocar as «botas no terreno», mesmo quando o «terreno» é do mais hostil possível. Penso que não, ou, pelo menos, não na esmagadora maioria dos casos. É tudo uma conjugação de objectivos realistas com a visão de longo prazo e a consciência dos limites do uso da força. O que não se pode é apontar para operações militares de «objectivos absolutos», para a ideia de que a força militar tudo pode e tudo faz.

 O problema central não é o de organizar muitas operações de modo a intervir em todas as crises. Esse é o caminho do desastre certo. O problema central é o de entender o que é importante e criar o quadro político que permita soluções realistas para crises muito diferentes. Deve ser entendido que em certos casos as crises têm de seguir o seu caminho, de modo a que o novo possa nascer, pelo que uma intervenção que vise meramente «evitar a destruição» mais não faz do que adiar e agigantar o problema, sem o resolver.

A política deve estar sempre no comando, as operações militares são sempre político-militares e o fio condutor é a visão dos grandes objectivos estratégicos e não a aplicação generalista de princípios ditos morais e apresentados como universais. Quando não houver soluções militares claras e de curto prazo, não se pede à força militar que faça milagres; adoptam-se estratégias alternativas e deixa-se que o tempo faça o seu trabalho.

Estamos aqui no terreno entre a justificação oficial da política e a política real, uma fronteira sempre muito difícil. Deixem que volte à parte inicial deste artigo sobre o que era a política real americana em 1949 e a forma como ela era apresentada publicamente. É um bom exemplo para compreender que a política real não pode ser dita no momento em que é aplicada, sob pena de perder eficácia, mas ai de nós se ela não existe. Quando isso acontece, caímos nos atoleiros, nas zonas morais de areia movediça, nos becos sem saída que causam os grandes traumas.

 

UM FACTOR ESTRUTURANTE DA NOVA ORDEM GLOBAL

A NATO tem o potencial para ser um factor estruturante da futura ordem global. Nenhum dos seus componentes considerados de forma isolada tem esse potencial – nem os Estados Unidos nem a Europa, independentemente de saber se estamos a falar na Europa-NATO ou na Europa-UE, que não são completamente coincidentes.

É certo que num horizonte de médio prazo o centro da ordem global tende a deslocar-se para Oriente, mas isso não significa que este se torne o eixo estruturante da futura ordem global. Uma das dificuldades para que tal aconteça é que o «Oriente» tem vários centros, desde a China, à Índia, ao Japão, à Rússia e outros. O que é mais, estes vários centros não têm a coesão histórica, de mentalidades e de partilha de valores da NATO, pelo que o entendimento entre eles é muito mais difícil que no caso da bacia do Atlântico.

A transferência do centro do poder global para Oriente a todos os níveis é o principal motivo porque a NATO deve assumir os valores universais de um «quadro de segurança humana» e não os valores de um «sistema de democracias de tipo ocidental».

A NATO deve transformar-se numa organização política, como sendo a base de um entendimento privilegiado entre a Europa e a América. A NATO inicial era uma forma de incluir a Europa Ocidental na grande estratégia americana dentro da vertente militar; a NATO futura pode ser uma forma de incluir os Estados Unidos na grande estratégia europeia numa vertente fundamentalmente política. O que pretendo dizer com isto, é que a Europa deve ver na NATO o instrumento fundamental para criar uma dimensão significativa em termos globais, agregando a si os Estados Unidos. Isto é particularmente importante numa altura em que os Estados Unidos podem ser tentados a alterar o seu posicionamento tradicional e procurar os aliados principais do lado do Pacífico e não do lado do Atlântico. Não se pretende com isto dizer que o entendimento com a China e os restantes poderes da Ásia não seja positivo e importante. O que se pretende dizer é que, do ponto de vista europeu, o entendimento central tem de continuar a ser com os Estados Unidos e que a NATO, e só a NATO, tem actualmente o potencial para ser um eixo estruturante da ordem futura, desde que ultrapasse os fantasmas do passado.

A questão que continua em aberto é a de saber quais os princípios, as soluções e os entendimentos que estarão na base da futura ordem, a que sairá da actual desordem. Disto, que é essencialmente uma questão teórica, depende a formação do eixo central da futura ordem. Se a Europa o entender bem, a janela de oportunidade está aberta. Caso contrário, os Estados Unidos farão as opções inevitáveis. A janela de oportunidade não vai permanecer sempre aberta.

 

SERÁ O QUE DEVE SER?

Será a NATO aquilo que deve ser? Em termos simples, não hesito em responder «não». Pelo menos, no curto prazo não será. O peso do passado é demasiado forte, tal como é demasiado forte o peso das adesões recentes. As pessoas ainda não entendem o que se está a passar, ainda não perceberam que é algo de radicalmente novo.

O que vai prevalecer no curto prazo – entendendo por isto a Cimeira de Strasbourg, em 2009, e possivelmente a de Lisboa – será uma solução de compromisso. A NATO vai evoluir, não para o que deve ser, mas para o que pode ser.

Há várias e importantes reservas no seio da NATO para impedir um seu renascimento imediato. Reservas por parte de quem continua a ver nela essencialmente a garantia de uma defesa territorial contra agressões do Leste; reservas por parte de quem encara a NATO como forma de avançar com estratégias regionais próprias, a olhar para o Sul; reservas por parte de quem não entende que a Europa ou será global ou não será; reservas por parte dos Estados Unidos, ainda muito marcados pela arrogância da visão Bush, que ainda não entenderam que precisam refazer o elo com a Europa para continuar a ser o eixo da futura ordem global.

Tudo indica assim que vamos ter mais um compromisso no curto prazo. Vamos ter não a mudança que os tempos pedem, mas uma pequena alteração, um passo no bom sentido, mas ainda modesto e tímido. Será um ponto de encontro entre visões muito diferentes, marcado pelos preconceitos herdados do passado.     

E no médio prazo, será possível aproveitar a janela de oportunidade e transformar a NATO num dos elementos estruturantes da ordem futura? Não o sei ao certo e penso que ninguém o sabe. Depende sobretudo da velocidade da evolução, das pessoas e do impacto das suas ideias e teorias. A janela de oportunidade está aí e é real. Tudo depende de saber se prevalece uma teoria global lúcida e flexível, ou as preocupações mesquinhas de curto prazo, sem qualquer futuro, mas com muito presente.

Para que a NATO cumpra o seu papel precisa de uma profunda alteração, que não será fácil nem simples. Precisa de passar de uma organização passiva para uma activa; de regional para global; de político-militar para política; precisa de avançar nas respostas aos desafios emergentes, com prioridade para a segurança económica, ambiental, energética e das informações; precisa de ser mais rápida nas respostas; mais flexível e projectável; precisa de assumir como seus os valores universais da construção de um quadro de segurança humana; precisa de consolidar o núcleo central; precisa de consolidar à volta deste núcleo parcerias regionais, com as três prioridades referidas; precisa sobretudo de entender a grande mudança em curso. Não vai ser fácil ou rápido, mas o que está em jogo é a ordem global – é o «grande jogo» e as regras mudam muito depressa.

 

[1]Entendi este artigo como sendo de opinião pessoal. Significa isto que as opiniões aqui expressas são exclusivamente pessoais e não comprometem qualquer instituição a que possa estar ligado. Na minha opinião é assim que deve ser quando os assuntos são polémicos, porque os riscos devem ser assumidos em termos pessoais e não institucionais.

[2] Uma abordagem um pouco mais desenvolvida surge no artigo «Entre antigas ameaças e desafios emergentes – por mares nunca de antes navegados» (Nunca de Antes – Anuário do IDN, a publicar em 2009).         [ Links ]